Série Observatório para a Qualidade da Lei

Análise de Impacto para além de cálculos matemáticos

Metodologia proposta pela Legística visa apurar todos possíveis efeitos de uma norma

Crédito: Pexels

A prática de análise de impacto regulatório (AIR) é muito recente no Brasil. Resultado de uma decisão vinda de “cima”, da esfera federal, e essa, por sua vez, fortemente motivada por uma necessidade de ordem internacional (o processo de adesão do Brasil à OCDE), sua prática foi recentemente determinada a todas às agências (Lei 13848/19) e a todos os órgãos e entidades da Administração Pública Federal (art. 5 da Lei 13874/19).

Mas sem o prévio lastro metodológico e cultural que permitisse sua plena adesão e desenvolvimento homogêneo de sua prática na rotina regulamentar brasileira, ainda que sua implementação seja em si um avanço para o processo da racionalização da regulamentação.

Até há pouco tempo, a análise de impacto regulamentar brasileiro visava, em linhas gerais, apurar o impacto orçamentário das medidas estatais. Por isso, não é de surpreender que uma das críticas mais comuns que podemos encontrar à recente prática de AIR no cenário brasileiro seja justamente o fato de não raro se limitem à coleta de dados sobre o impacto orçamentário, ou a exames econométricos superficiais.

Recente relatório sobre as AIRs produzidas pelas agências reguladoras federais até o ano de 2019 demonstrou que uma parcela relevante não procedeu à mensuração dos efeitos das medidas em pauta. Os impactos são descritos em 95% dos documentos analisados, mas, segundo o mesmo relatório, “apenas cerca de 8% apresentam qualquer tipo de tentativa de mensuração”[1].

São três os principais valores que a metodologia das AIRs visa concretizar: participação social, transparência e racionalidade. A capacidade de mensurar dinamicamente causas de um problema e os possíveis efeitos da ação estatal é uma das condições para que a intervenção estatal seja racional.

A proposta do método da Legística: modelização causal e seus pressupostos epistemológicos

O grande diferencial da tradição da Legística é o de ter desenvolvido uma metodologia voltada para a mensuração ampla tanto das causas quanto dos efeitos concretos que podem ser desencadeados pela legislação, sejam eles sociais, econômicos ou ambientais, sendo esse o objeto precípuo da Legística Material.

Ao contrário de abordagens lineares e analíticos, cujo método restringe epistemologicamente a verificação do alcance do impacto latente da norma em questão, o método da Legística é interativo e sucessivo, cada etapa é o degrau necessário para a posterior, possibilitando ao gestor chegar a respostas mais realistas sobre os possíveis efeitos da norma.

São elas: Definição do problema ➔  Determinação de Objetivos ➔  Estabelecimento de Cenários Alternativos ➔ Escolha das Soluções ➔  Avaliação Prospectiva (ex-ante) ➔ Execução ➔ Avaliação Retrospectiva.

A divisão do processo de elaboração legislativa em etapas  responde  a  uma  necessidade  prática: ela facilita a apresentação do caminho e das técnicas de análise próprias a cada uma delas. É preciso, entretanto, ter sempre em mente o caráter interativo e sucessivo do processo[2].

Descrito assim pode parecer simples, mas ocorre que cada uma dessas etapas possui seus matizes, métodos e desafios epistemológicos implícitos. Torná-los evidentes e ultrapassá-los constitui um dos objetivos da investigação filosófica da Legística e da metodologia da Legística Material, respectivamente.

Por exemplo, a definição do problema requer uma reflexão crítica, pois normalmente o legislador se contenta em assumir os problemas tais como apreendidos pela sua percepção (direta ou recebida pela mídia) ou como definidos pelos atores sociais com os quais interage (como grupos de pressão).

Ora, só definição crítica, autônoma, fundada na análise da realidade, assim como a apreciação dos valores em jogo, permite ao legislador ou ao gestor decidir racionalmente a oportunidade e a natureza da intervenção normativa.

Definir um problema implica apurar uma tensão entre uma situação dada na realidade concreta, atual, e uma situação almejada; e essa por sua vez é uma concretização possível de uma dada seleção de valores, os quais raramente estão expressos.

Erros de apreciação podem surgir nos dois planos, no dos valores e no dos fatos, induzindo, por exemplo, uma preocupação com um problema falso: os fatos considerados não existem ou, se existem, não têm o caráter de gravidade que lhes é atribuído. Os valores subjacentes podem não ser os compartilhados pela sociedade ou serem inadequados aos fins almejados, ou com a escala de valores dada pela Constituição.

Por isso, tanto a situação almejada quanto os valores subjacentes devem ser pormenorizados, a fim de serem submetidos à devida reflexão crítica, seja de um órgão colegiado, seja do debate parlamentar.

Além disso, a definição de um problema não consiste meramente em justapor a maior quantidade possível de dados, como ensina DELLEY (2004). “Trata-se, antes, de articulá-los, de compreender o funcionamento do problema, identificar os atores envolvidos e sua lógica comportamental e detectar as interações existentes entre eles” (pg.111). Essa metodologia auxilia grandemente para escolha ulterior dos instrumentos de ação suscetíveis de contribuir para a solução do problema.

Por isso destacamos a lógica da abordagem da técnica da modelização causal. O gráfico de modelização causal é uma técnica de representação e de apreensão dinâmica do problema. Ele permite decompô-lo em diferentes fatores, estabelecendo os elos (relações de causa e efeito) entre esses fatores e a natureza desses elos (fortalecimento e enfraquecimento).

A vantagem dessa modelização, de natureza qualitativa, é, por um lado, facilitar a vista panorâmica do problema e de seus diferentes elementos sob uma perspectiva dinâmica – o que não é possível com a mera verbalização do problema – quanto poder articular de maneira escalonada diferentes níveis de relações de causa e efeito.

Isso permite colocar em evidência um grande número de fatores explicativos do problema e das ligações entre esses fatores, de maneira a apreender a complexidade do problema e sua dinâmica. Desse modo, o legista dispõe de uma representação da realidade que lhe permitirá, eventualmente, elaborar uma estratégia de ação adequada ao problema a resolver.

Vejamos um exemplo:

Neste gráfico[3], o problema do lixo é construído a partir da sua quantidade e natureza. Uma das questões centrais é a sua eliminação e tudo que implica para a sociedade e Poder Público. Por outro lado, suas causas podem ser articuladas a partir de questões mais gerais, como a concorrência econômica que, se por um lado trouxe maior bem-estar (representado pelo idem “nível de vida”) à sociedade pela maior gama de oferta de produtos, por outro, é uma das grandes causas da quantidade e natureza do lixo.

Logo, questões ambientais, econômicas e de bem-estar social perpassam qualquer medida a ser considerada para lidar com o lixo. (Para uma descrição mais pormenorizada da construção analítica desse gráfico, remetemos ao artigo original de Jean-Delley já citado).

A mesma abordagem pode ser aplicada para a verificação dos possíveis efeitos de uma intervenção normativa específica. Procedendo a partir da descrição dos efeitos mais imediatos, sua visualização permite a articulação qualitativa com os efeitos imediatamente sucessivos, podendo-se chegar até aos mais gerais. Isso, por sua vez, permite inserir de forma racional e harmonizada uma intervenção normativa, mesmo a mais simples e operacional, no cenário mais amplo das políticas públicas do Estado, dos seus fins mais gerais e das normas hierarquicamente superiores.

Veja que isso implica já uma diferente abordagem epistemológica, pois para se articular causas e efeitos de diferentes naturezas (desde as mais imediatas, como as de ordem orçamentária, podendo-se chegar, dependendo do caso concreto, até efeitos de longo prazo que afetam o bem-estar da população), faz-se necessário ultrapassar os limites que abordagens procedimentais lineares e burocráticas podem induzir.


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[1] LABORATÓRIO DE REGULAÇÃO ECONÔMICA – UERJ. Análise de Impacto Regulatório: Panorama Geral. Janeiro 2020, pg. 22.

[2] DELLEY, Jean-Daniel. Pensar A Lei: Introdução A Um Procedimento Metódico. Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v.7, n. 12, p. 101-143, jan./jun.2004.

[3] Fonte: DELLEY, Jean. Ob. cit., pg. 114.logo-jota

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