Pacote Anticrime

Acordo de não persecução penal nos crimes eleitorais

Seria estranho se o Ministério Público Eleitoral pudesse oferecer acordo apenas para crimes conexos

Crédito: Roberto Jayme/Ascom/TSE

A Lei 13.964/2019, apelidada de “Pacote Anticrime”, nasceu marcada pela polêmica: antes mesmo do começo da produção de seus efeitos, viu-se submetida a conflitantes decisões do Supremo Tribunal Federal. Por força da decisão mais recente, do Min. Luiz Fux, parte significativa da lei, em especial a relativa ao juiz de garantias, encontra-se suspensa.

Todavia, ao apreciar o pedido liminar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 6.299, o Ministro considerou constitucional o “acordo de não-persecução penal”, previsto na nova redação dada ao Código de Processo Penal, indeferindo, assim, a medida cautelar pretendida.

Para o Ministro:

d1) a possibilidade do juiz controlar a legalidade do acordo de não-persecução penal prestigia o sistema de freios e contrapesos no processo penal e não interfere na autonomia do membro do Ministério Público (órgão acusador por excelência).

d2) O magistrado não pode intervir na redação final da proposta de acordo de não persecução penal de modo a estabelecer as suas cláusulas. Ao revés, o juiz poderá a) não homologar o acordo ou; b) devolver os autos para que o parquet – de fato o legitimado constitucional para a elaboração do acordo – apresente nova proposta ou analise a necessidade de complementar as investigações ou de oferecer denúncia, se for o caso;

d3) medida cautelar indeferida”

O texto do artigo 28 permite o acordo para crimes sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos1. A propositura é do Ministério Público e as condições estão elencadas na lei, sendo as principais a obrigação de reparação do dano ou a restituição da coisa, renúncia a bens e direitos indicados como instrumento, produto ou proveito do crime, a prestação de serviços a comunidade em período equivalente ao da pena mínima do crime, pagamento de prestação pecuniária ou cumprimento de outra condição apresentada pelo parquet. São condições que poderão ser aplicadas cumulativa ou isoladamente.

O acordo não poderá ser celebrado se a pessoa já obteve anteriormente transação penal, suspensão condicional do processo ou outro acordo de não persecução penal. Não valerá para crimes de violência doméstica, nem para o criminoso reincidente ou habitual. Tampouco, caberá nos crimes que admitem transação penal.

O juiz poderá ou não homologar o acordo a ele submetido pelo órgão do Ministério Público, podendo devolvê-lo para adequação das condições. Cabe ao juiz também procurar as instâncias superiores do Ministério Público caso o órgão com atribuição para a causa não quiser oferecer o acordo. Cumpridas as condições, extingue-se a punibilidade do agente; descumpridas, será possível oferecer denúncia.

A possibilidade de acordos entre acusação e defesa, mitigando, de forma regrada, a obrigatoriedade da promoção da ação penal, já vinha prevista em nossa ordem jurídica desde a Lei 9.099/95, para os crimes de menor potencial ofensivo. Posteriormente, veio com a roupagem da colaboração premiada na Lei 12.850/2013, das organizações criminosas, que propiciou largo emprego desse tipo de acordo. A Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público, permitia em termos amplos o acordo de não persecução mas, norma infralegal, suscitava controvérsia sobre sua constitucionalidade.

Somos favoráveis a esse tipo de flexibilização da obrigatoriedade da ação penal, bem como da desjudicialização que ele promove, evitando processos-crime que podem ser demorados, trazer gravame para o réu e se revelar, afinal, inefetivos.

Um bom acordo pode preservar o interesse da sociedade em evitar e desestimular o crime e o interesse de ampla defesa do réu, sendo suficiente que o Poder Judiciário zele por sua legalidade.

O presente estudo investiga se este tipo de acordo é cabível também no ambiente do processo-crime eleitoral, no qual representará verdadeira revolução. É que, com apenas três exceções, todos os crimes têm pena mínima inferior a quatro anos, sendo, portanto, elegíveis ao acordo. As exceções são o artigo 72 da Lei 9.504/97 (fraude no sistema eletrônico de apuração de votos), o artigo 302 do Código Eleitoral (concentração de eleitores no dia da votação) e o crime da Lei 6.091/74 (transporte irregular de eleitores).

Nosso entendimento é pela aplicabilidade do acordo de não persecução penal aos crimes eleitorais.

É certo que há especificidades no processo-crime eleitoral, entre elas o fato de que todas as ações penais são públicas incondicionadas (art. 355 do Código Eleitoral). Os crimes eleitorais têm como vítima direta a sociedade, pois seu bem jurídico é, em sentido amplo, a lisura e legitimidade dos pleitos eleitorais. Certas disposições do novo artigo, portanto, como a que exige a comunicação do acordo à vítima, art. 28-A, parágrafo 9o, não terão aplicação (embora, em certos crimes, se deva proceder à comunicação do acordo com a vítima secundária, como a pessoa ofendida, nos crimes eleitorais contra a honra).

Não há, por igual, juizados especiais criminais eleitorais, o que não afasta a possibilidade do acordo de não persecução. No processo-crime eleitoral é o juiz eleitoral quem aplica os benefícios da Lei 9.099/95. Deste modo, se o investigado por crime eleitoral tiver direito a transação penal – boa parte dos crimes eleitorais é de menor potencial ofensivo – o acordo será incabível; se não tiver, o acordo poderá ser intentado.

Quanto a fiscalização da obrigatoriedade da promoção da ação penal não se dá, nos crimes eleitorais, com fundamento no artigo 28 do Código de Processo Penal, mas sim com base na Lei Complementar 75/93 (do Ministério Público da União), que rege a atuação do Ministério Público Eleitoral. O controle deve ser efetuado por uma das Câmaras de Coordenação e Controle do Ministério Público Federal em Brasília (atualmente, a 2a. Câmara), devendo o juiz eleitoral remeter os autos ao Procurador Regional Eleitoral de seu estado.

Por fim, homologado o acordo, o parágrafo 6o , do artigo 28-A diz que “o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal”. Esse artigo deve receber, no ambiente eleitoral, a necessária adaptação, pois incumbe ao juízo eleitoral o acompanhamento de condições não carcerárias, havendo remessa para o juiz das execuções – comum, estadual – apenas se for caso de cumprimento de pena carcerária.

Haverá de merecer interpretação específica, por igual, a destinação da prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social “a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito”, art. 28-A, parágrafo 2o, IV. Devem ser entidades que atuem no processo eleitoral, sem coloração partidária, voltadas a zelar pela lisura e transparência dos pleitos, por exemplo, ou à conscientizar os cidadãos da importância do voto.

O valor da prestação pecuniária é delimitado pelo artigo 45 do Código Penal entre 1 e 360 salários-mínimos. Para o estabelecimento do valor exato da proposta cumpre verificar os elementos objetivos trazidos pelo crime ou crimes praticados, por exemplo, seus limites de pena. Se for possível mensurar uma dimensão financeira no delito – o que nem sempre acontecerá, em razão do objeto jurídico dos crimes eleitorais, a lisura e legitimidade do pleito - este deve ser o critério para a dosimetria do valor da prestação a ser proposto pelo Ministério Público. Imagine-se que diante da divulgação de fatos sabidamente inverídicos – art. 323 do Código Eleitoral - um candidato adversário teve que gastar um valor “x” para recompor a verdade: esse dado pode aproximar o valor proposto da prestação pecuniária do seu máximo ou trazê-lo perto de seu mínimo.

É assim no referido artigo do Código Penal, ao dizer que o valor da prestação será deduzido de eventual reparação cível. Ou, noutro caso, do atual artigo 350 do Código Eleitoral, no qual se deixou de declarar valores efetivamente recebidos ou gastos na campanha eleitoral: o montante omitido deve ser o índice para busca do valor adequado para a proposta.

A lei permite que o Ministério Público proponha outra condição, a ser cumprida em prazo determinado, “desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada’, art. 28-A, V, do Código de Processo Penal. Surgirá o debate sobre a validade da condição de não se candidatar a eleições por período determinado. Cabe notar que, nos crimes eleitorais de médio ou grande potencial ofensivo, a condenação firme ou colegiada importará na inelegibilidade por oito anos, para além do cumprimento da pena (Lei Complementar 64/90). É medida de defesa social que, a nosso ver, pode ser incluída na proposta, desde que, como a lei demanda, seja proporcional.

A evitação da inelegibilidade será, certamente, uma das razões pelas quais haverá interesse nos acordos de não persecução penal, por parte de pessoas investigadas. Se a proposta incluir o mesmo tempo de inelegibilidade, as propostas terão menor chance de aceitação. Todavia, um período menor pode ser adequada medida de defesa social, sem deixar de interessar aos destinatários da proposição, por ser menos severo do que o resultante do êxito negativo no processo.

São particularidades que não infirmam a possibilidade do emprego da inovação processual no ambiente dos crimes eleitorais, onde será bastante útil. Seria estranho se o Ministério Público Eleitoral, recebendo ou realizando investigações de crimes eleitorais e conexos - artigo 35 do Código Eleitoral - pudesse oferecer acordo apenas para estes últimos.

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1“Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.”

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