“Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”. A frase é atribuída a Joseph Goebbels, Ministro da propaganda de Adolf Hitler de 1933 a 1945, na Alemanha Nazista. Mas qual a relação de Goebbels e a Súmula 112 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)? A atual jurisprudência aplica a Súmula 112 em total desacordo com o Código Tributário Nacional (CTN) e com o Código de Processo Civil (CPC), não fazendo a devida distinção entre os casos julgados e aqueles que deram ensejo à referida súmula.
Há repetidas decisões aplicando a Súmula 112 de modo equivocado, entendendo que todo e qualquer pedido de substituição de depósito judicial por seguro-garantia ou fiança bancária – pedido muito comum em tempos de pandemia, dada a necessidade de caixa dos contribuintes – ou o oferecimento de seguro-garantia em vez de depósito integral – situação muito menos onerosa para os contribuintes – não poderia garantir a suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
Tais decisões adotam a premissa, baseada em uma leitura parcial da Súmula 112, de que a única possibilidade de suspensão da exigibilidade do crédito tributário é aquela do inciso II do artigo 151 do CTN[1], isto é, a realização do depósito judicial integral dos valores controvertidos. Essa conclusão equivocada será o objeto da análise do presente artigo.

A súmula: o que diz e o que abrange
A Súmula 112 do STJ, foi publicada no Diário da Justiça em 25 de novembro de 1994, tendo o seguinte enunciado: “O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro.” As referências normativas foram o inciso II do artigo 151 do CTN e os artigos 9º, § 4º, 32 e 38 da Lei nº 6.380/1980, mais conhecida por Lei de Execuções Fiscais (LEF).
Os precedentes do STJ que fundamentaram a súmula são todos relacionados a pleitos de contribuintes que tentaram suspender a exigibilidade do crédito tributário mediante depósito de títulos de dívida agrária ou carta fiança. Nesse sentido, o artigo 151, inciso II do CTN é claro ao prever que o depósito do montante integral do crédito tributário é uma das formas para suspender a exigibilidade do crédito tributário.
Aplicação e reconhecimento
Diversas decisões proferidas por tribunais Brasil afora estão distorcendo a aplicação da Súmula 112 do STJ, inclusive em julgados recentes. Exemplo disso é o acordão publicado no dia 1º de julho de 2021, proferido nos autos do Recurso Especial nº 1.737.209-RO, pela 2ª turma do STJ, tendo como relator o eminente Ministro Herman Benjamin.
Nesse processo, para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, os contribuintes depositaram em juízo a totalidade do valor controvertido. Posteriormente, devido a dificuldades financeiras, os contribuintes requereram a substituição do saldo remanescente depositado por apólice de seguro-garantia. O pleito de substituição, contudo, foi negado em razão de supostamente afrontar a Súmula 112 do STJ.
Importa mencionar que o artigo 151 do CTN, também, prevê outras cinco possibilidades de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, além do depósito do montante integral, quais sejam: a moratória; as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; a concessão de medida liminar em mandado de segurança; a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; e o parcelamento.
Diante da análise da letra da lei, resta evidente que não é somente o depósito em montante integral que suspende a exigibilidade do crédito tributário. Inclusive, outras formas de suspensão do crédito tributário, tal como a obtenção de uma medida liminar ou de tutela antecipada - assim denominada pelo artigo 151, inciso V, e que passou a ser chamada de tutela de urgência com o CPC em 2015 – sem o oferecimento de qualquer garantia pecuniária, são geralmente preferidas pelos contribuintes em razão da sua menor onerosidade.
Nesse sentido, o artigo 300 do CPC dispõe que será concedida tutela de urgência, quando houver elementos de probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. Ademais, não será concedida tutela de urgência quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão. Para mitigar o perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão e demonstrando boa-fé, os contribuintes além de requererem a suspensão da exigibilidade com base no artigo 151, inciso V do Código Tributário e do artigo 300 do CPC, oferecem garantias, tais como seguro-garantia e fiança bancária.
Vale ressaltar que a maioria das decisões que negam o uso do seguro-garantia/fiança-bancária, limitam-se a invocar precedentes e aplicar a Súmula 112, sem ao menos identificar seus fundamentos, bem como não demonstram que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.
Apenas para deixar claro que o que se busca não é equiparar a fiança bancária e o seguro-garantia ao depósito integral, o que efetivamente contraria o entendimento sumulado pelo STJ. O objetivo é esclarecer que o depósito integral não é o único meio para suspender a exigibilidade do crédito tributário e, o que se verifica em muitas decisões acerca da matéria, é a recusa do judiciário em avaliar a plausibilidade do direito invocado pelo contribuinte e o perigo de dano no caso concreto, invocando-se, para tanto, a aplicação da Súmula 112.
Nesses termos, a concessão de medida liminar ou tutela de urgência, expressamente previstas no artigo 151, V, do CTN, a qualquer momento do processo, para fins de garantir a suspensão da exigibilidade do crédito tributário e em substituição ao depósito judicial realizado nos autos, é medida que se impõe ao juiz e não encontra óbice na Súmula 112. Estando presentes os requisitos autorizadores para concessão da liminar ou tutela provisória, isto é, a plausibilidade do direito invocado, o perigo na demora e a reversibilidade dos seus efeitos, é dever do juiz realizar a avaliação do caso concreto, não podendo esquivar-se de tal mister pela mera invocação da Súmula 112.
É evidente que os Tribunais Superiores devem uniformizar a jurisprudência e os demais tribunais devem aplicar as súmulas em casos idênticos ou similares aos que motivaram o entendimento sumulado, nos termos do artigo 927 do CPC. Contudo, as decisões judiciais devem ser fundamentadas e referirem-se aos fatos do caso concreto, observando o §1º do artigo 489 do CPC, especialmente o inciso V do §1º[2] do referido artigo, sob pena de negativa de prestação jurisdicional, o que é vedado tanto pela Constituição Federal, quanto pelo CPC.
A aplicação incoerente da Súmula 112 aos casos concretos, não deve se tornar uma verdade universal. Será que um equívoco contado repetidamente viraria verdade no Poder Judiciário? Em vários casos analisados recentemente no STJ é possível perceber que a referida súmula foi aplicada de modo totalmente equivocado, restringindo a suspensão da exigibilidade do crédito tributário ao depósito integral, aplicando apenas o inciso II do artigo 151 do CTN. Não se pode permitir que uma mentira se transforme em uma verdade, mesmo que seja contada repetidamente no âmbito judicial. Os maiores prejudicados com a aplicação errônea da Súmula 112 são os contribuintes, que têm como seu último meio de defesa o próprio Poder Judiciário.
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[1] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
I - moratória;
II - o depósito do seu montante integral;
III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;
IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança.
V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial;
VI – o parcelamento.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não dispensa o cumprimento das obrigações assessórios dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela conseqüentes. (grifos apostos)
[2] § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; (grifos apostos)