Série Observatório para a Qualidade da Lei

Por que o Relatório de Impacto da LGPD ainda é frágil?

Instrumento para controle dos efeitos sobre direitos e liberdades é aquém do necessário num cenário de alta complexidade

Crédito: Pixabay

O aprofundamento e a expansão do processo da digitalização da vida social, ocorrida especialmente na última década, colocam o Direito diante de novos e grandes desafios.

A “digitalização profunda” (deep digitalization), impulsionada por avanços tecnológicos como big data, aprendizado de máquina (machine learning), algoritmos inteligentes, inteligência artificial e soluções avançadas de interação em rede, desafia o jurista contemporâneo a conseguir discernir como promover a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais diante dos potenciais usos e efeitos daquelas tecnologias.

Isso é especialmente desafiador perante infraestruturas digitais “semi-autônomas” dotadas de uma funcionalidade cada vez menos acessível e transparente ao grande público (e até às autoridades governamentais).

Trata-se de um cenário de alta complexidade, cujos efeitos são transversais a quase todas as dimensões da vida humana, desde a distribuição do poder político, econômico, chegando até aos níveis psicológico e antropológico.

Por isso, a digitalização da vida social pede de forma ainda mais contundente a aplicação de metodologias da Ciência da Legislação (Legística) para a regulamentação dessas novas searas, especialmente a aplicação de mecanismos de avaliação de impacto, tanto previamente à feitura da lei quanto posteriormente à sua aplicação concreta.

É nesse sentido que se compreende a inserção de mecanismos como o “relatório de impacto” (XVII do Art. 5º c/c o parágrafo único do art. 38) e “análise de impacto regulatório” (§ 2º do Art. 55-J) na Lei de Proteção de Dados Pessoais (LGPD, Lei 13709 de 14 de agosto de 2018, alterada pela lei 13853 de 2019), a qual parece indicar uma crescente e bem-vinda adesão ao uso de ferramentas de avaliação de impacto, observada desde as leis Lei 13.848 e 13.874, ambas de 2019.

Todavia, tal como desenhado o mecanismo do “relatório de impacto” na LGPD – e sem ainda se poder levar em conta a futura regulamentação da recém-criada Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ele estabelece deveres aquém do necessário para prevenir ofensas aos direitos fundamentais das pessoas naturais, tendo em conta o contexto atual de grande complexidade e periculosidade, alta concentração de poder tecnológico e informacional[1] e a evolução regulatória internacional.

O “Relatório de Impacto” da LGPD e a “Avaliação de Impacto” do Regulamento 2016/6791 da União Europeia

Uma forma de melhor iluminar algumas fragilidades do Relatório de Impacto é compará-lo ao instrumento de “Avaliação de Impacto de Proteção de Dados” (Data Protection Impact Assessment, DPIA) do Regulamento Geral de Proteção de Dados[2], por ser tratar do arcabouço normativo mais desenvolvido até o presente no que tange proteção de direitos.

Seu tratamento é dado pelo art. 35 c/c o art. 36 (dever de consulta prévia), devendo-se ainda observar os considerandos 84, 90 ao 94, e as orientações da Diretriz[3] sobre Avaliação de Impacto do Grupo de Trabalho Artigo 29 (Working Party 29).

Ao compararmos a descrição dos dois institutos das respectivas legislações, depreendem-se diferenças importantes na natureza, alcance, finalidades e procedimento: 

Da forma como redigida, a descrição do mecanismo da LGPD destaca como finalidade principal do Relatório de Impacto a atividade de simples registro (“documentação”) das atividades potencialmente danosas e das eventuais medidas mitigadoras do risco tomadas.

Sendo assim, o instrumento da LGPD tende a ser executado após os tratamentos de dados potencialmente lesivos aos direitos, de forma que não há também a possibilidade de a Autoridade Nacional fazer um controle prévio desses tratamentos.

A palavra “relatório”, escolhida para designar o instituto, reforça essa conclusão: derivada da palavra “relato”, caracteriza-se pelo objetivo principal de narrativa objetiva e descritiva de fatos, eventos, motivos. Mesmo quando culmine numa opinião (como num parecer), um relatório volta-se sempre para o passado.

Por sua vez, o DPIA deverá ser sempre realizado antes do processamento se este apresentar alto risco latente aos direitos e liberdades das pessoas naturais, tendo em vista o contexto, âmbito, finalidade e alcance.

Seu objetivo é uma avaliação, ou seja, um julgamento: o apurar e avaliar os riscos aos direitos e liberdade, sopesá-los com a proporcionalidade, necessidade e legitimidade das operações; verificar as possíveis medidas de mitigação de riscos, existentes ou a serem criadas pelo controlador, incluídas garantias aos titulares e medidas de segurança.

Se mesmo diante da adoção de medidas de mitigação de risco este ainda subsista, deverá a autoridade competente (no caso, a European Data Protection Board) ser consultada para autorizar ou não o processamento (art. 36).

Em resumo, a DPIA é tanto um mecanismo de gestão do risco aos direitos fundamentais quanto um meio de demonstração de conformidade regulatória. Foi concebido como processo para auxiliar na tomada de decisões relativas ao processamento potencialmente lesivo, com ou sem a participação da autoridade pública competente, ficando o registro das atividades num plano relativamente secundário àquele.

No caso da lei brasileira, para além do dever genérico dos controladores em adotar medidas de segurança aptas à proteção e à segurança dos dados pessoais (art. 46), o único momento em que se menciona expressamente “avaliação de impacto” para mitigação de riscos é na alínea “d”, art. 50, mas elencado apenas como uma das boas práticas de governança, ou seja, não obrigatória.

Outra lacuna da lei que induz os controladores a uma posição passiva frente aos riscos latentes é a ausência de uma obrigação de comunicar a ANPD dos mesmos quando constatados, cabendo prioritariamente à ANPD a iniciativa de exigir relatórios de impacto dos controladores.

A Lei cita situações específicas nas quais a Autoridade Nacional possui ora o dever, ora a prerrogativa de exigir a sua feitura por parte do controlador, entre elas: a) quando o tratamento de dados é excetuado da aplicabilidade da LGPD (§ 3º do art. 4º.), referente a certas atividades executadas pelo Poder Público, dispostas no inciso III do art. 4º;

b) mesmo diante do “interesse legítimo” do controlador que justifica o tratamento de dados (§ 3º do art.10);

c) possibilidade de solicitação de publicação de relatórios de impacto a agentes públicos no caso de violação da lei (art. 31 c/c 32);

d) por fim, conforme art. 38, nos termos de futura regulamentação.

Ao controlador, exige-se informar a ANPD quando já ocorrido um evento danoso (“incidente de segurança”), especificamente ligado à segurança dos dados (art. 48).

A análise sistemática dos dois regulamentos (LGPD e RGPD europeu) parece indicar uma diferença de escopo entre esses que pode explicar a maior ênfase na avaliação prévia de riscos da normativa europeia.

Os mecanismos da LGPD, tomados em conjunto, voltam-se primordialmente à proteção da idoneidade, privacidade e sigilo dos dados pessoais, priorizando a ausência de incidentes com esses direitos.

O RGPD também parte desse objetivo, mas esse é englobado pelo âmbito mais amplo da proteção dos direitos e liberdades frente à inovação tecnológica, visando evitar que, por exemplo, o poder de processamento de dados pessoais em larga escala (considerando 91) possa enfraquecer o núcleo de direitos como “liberdade de expressão, liberdade de pensamento, liberdade de movimento, proibição de discriminação, direito à liberdade, consciência e religião”[4].

E é justamente nesse ponto que nossa lei parece estar aquém da complexidade do cenário atual apesar dela ter sido fortemente inspirada no arcabouço normativo europeu[5]: faltam mecanismos com critérios precisos que, à semelhança da exaustiva regulamentação comunitária europeia, leve em conta também os riscos latentes das novas tecnologias ao exercício efetivo das liberdades e direitos, para além de medidas que garantam prioritariamente o sigilo e privacidade – alinhando assim globalmente a normativa nacional aos fundamentos elencados pelo artigo 2 da própria LGPD.

Além disso, que essa tarefa de verificação dos riscos latentes de novas tecnologias seja compartilhado com os controladores – tal como se depreende das funções do DPIA – não devendo recair o encargo de tal monitoramento antecipatório exclusivamente sobre o Estado, no caso, sobre a Coordenação-Geral de Tecnologia e Pesquisa da ANPD (art. 18 do seu Regimento Interno).

No curto prazo, a tarefa de sanar as lacunas em torno do instrumento do relatório de impacto caberá, muito provavelmente, à própria ANPD (pois ao seu Conselho Diretor cabe ainda regulamentar com maiores detalhes o Relatório de Impacto) a partir dos elementos que a própria LGPD já fornece para aperfeiçoar em sede infralegal os instrumentos de mitigação de risco; o que poderá ser realizado já tendo em conta as experiências práticas tanto nacionais quanto internacionais, e ajustando-as às realidades e necessidades nacionais.


O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:


[1] Sobre o isso, ver “A Era do Capitalismo de Vigilância: a Disputa por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder” (2020), da socióloga norte-americana Shoshana Zuboff.

[2] Em vigor desde 25 de maio de 2018, revogando a Diretiva 95/46/CE

[3] Guidelines on Data Protection Impact Assessment (DPIA) (wp248rev.01)

[4] Guidelines on Data Protection Impact Assessment (DPIA) (wp248rev.01), pg. 6.

[5] Ver o processo da Comissão Especial destinada a proferir parecer ao projeto de Lei no. 4060, disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1663305&filename=PRL+1+PL406012+%3D%3E+PL+4060/2012>.logo-jota