Em decisão recente, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) reformou decisão de primeira instância que havia rejeitado queixa-crime contra Conrado Hübner Mendes, professor da Faculdade de Direito da USP e colunista do jornal Folha de S.Paulo, por suposto crime contra a honra do procurador-geral da República, Augusto Aras. A queixa-crime tem como base o apelido de “poste” que o professor deu ao PGR e a alegação de omissão e servilidade de Aras ao presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia.
A insistência em se criminalizar as análises de Conrado lança luz sobre a importância de suas colunas para o debate público. Há anos ele tem apontado o oportunismo, o patrimonialismo, o corporativismo e o autoritarismo no Judiciário e no Ministério Público. Essas são características frequentemente atribuídas a parcelas do funcionalismo público e da classe política. Conrado, porém, sujeita juízes e promotores ao mesmo escrutínio (muitas vezes ácido e jocoso) normalmente reservado a políticos e outros agentes públicos. Ele, assim, nos lembra que o sistema de Justiça não está imune aos mesmos problemas.
Há muito tempo a literatura sobre o comportamento dos tribunais sabe que juízes, longe de serem aplicadores neutros e técnicos de normas, possuem muita discricionariedade para decidir o quê, quando e como. E quanto mais alto na hierarquia do Judiciário, maior essa discricionariedade. Esse espaço de discricionariedade permite decisões informadas por preferências políticas e valores morais, como reconhecido (e celebrado) pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu artigo “A razão sem voto”. Também abre espaço para avaliações estratégicas de juízes que lidam com a pressão da opinião pública e dos outros Poderes, e que consideram as vantagens e desvantagens de suas decisões para si, sua classe e seu órgão em termos de volume de trabalho, carreira, recursos financeiros, prestígio e poder.
Portanto, para entender o que juízes (e promotores) fazem é preciso entender o direito, mas também aquilo que está fora dele. Apenas para citar exemplos já discutidos por Conrado, será que apenas razões jurídicas explicam por que o STF esperou o governo conceder reajuste salarial para juízes antes de revogar sua própria decisão que concedia auxílio-moradia à classe? Ou a suspensão liminar da implementação do juiz de garantias e a demora para trazer o tema para a pauta; a indicação de militares para cargos no TSE; a decisão monocrática de liberar cultos presenciais na véspera da Páscoa e no auge da pandemia; ou as decisões do procurador-geral da República de não levar adiante denúncias contra Bolsonaro.
Importa pouco se concordamos com as decisões nesses casos ou se compartilhamos da análise de Conrado Mendes sobre esses eventos ou do tom que ele utilizou. O que importa é entendermos que em uma democracia é fundamental que os motivos e as escolhas de Judiciário e Ministério Público estejam sujeitos às mesmas críticas que outras instituições e agentes públicos com amplo poder e discricionariedade deveriam tolerar.
A tolerância a críticas, porém, parece muito baixa. A ninguém de bom senso deve ter ocorrido que seria crime chamar o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad ou a ex-presidenta Dilma Rousseff de “poste”. Porém, o mesmo apelido, quando utilizado para o procurador-geral da República, é motivo de processo criminal, de acordo com o próprio PGR e uma Turma do TRF1. Cabe lembrar que tanto a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) quanto a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) manifestaram apoio ao pedido do ministro Nunes Marques para que Conrado fosse investigado por calúnia, difamação e injúria pela crítica a uma decisão sua. Mais absurda é a sugestão de que a crítica a decisões judiciais como as feitas por Conrado são comparáveis às ameaças de fechar o STF ou às insinuações de que ministros deveriam ser fisicamente agredidos, como fez o deputado Daniel Silveira.
A tolerância à crítica é baixa talvez porque questionamentos bem informados sobre os motivos, interesses e estratégias nas decisões do Judiciário e do Ministério Público são raros. Não é simples para a opinião pública leiga entender o sistema de Justiça, o que limita a capacidade de críticas profundas e bem direcionadas sobre como trabalham seus membros. Ainda que leigos possam discordar fortemente de algumas decisões, nem sempre conseguem distinguir de forma fundamentada as situações em que há simples discordância daquelas em que há possivelmente arbitrariedade e abuso.
A comunidade jurídica identifica isso com mais facilidade. O oportunismo, patrimonialismo, corporativismo e autoritarismo no sistema de Justiça são temas frequentes de conversas privadas. Porém, talvez com a exceção de processos com grandes implicações políticas como os relativos à Operação Lava Jato, raramente as críticas são feitas publicamente. De dentro do sistema de Justiça, juízes e promotores evitam criticar colegas ou superiores, seja para preservar a própria instituição ou pelos riscos de retaliações na carreira. Advogados também evitarão provocar a antipatia daqueles que julgarão as causas de seus clientes.
A academia jurídica – a comunidade das pessoas que pesquisam, ensinam e escrevem sobre o direito – tem essa função. Porém, parte grande dela sofre das mesmas limitações por ter um pé na academia e outra nas carreiras jurídicas. As críticas, portanto, tendem a ser pontuais, cautelosas, cheias de ressalva e apresentadas como divergências técnicas sobre interpretação e aplicação do direito. Não por acaso a surpresa da Turma do TRF1 ao descobrir as qualificações acadêmicas de Conrado Mendes e a visão desses magistrados de que isso, ao invés de trazer credibilidade para sua análise, deveria ser um fator limitante da sua liberdade de expressão.
Conrado Mendes incomoda porque conhece o direito e o funcionamento do sistema de Justiça. Tem uma visão fundamentada sobre o que se espera de seus membros, acompanha como exercem suas funções, e se expressa de forma direta em um espaço de grande visibilidade. Enfim, oferece perspectivas e argumentos que não são facilmente perceptíveis para leigos e que especialistas muitas vezes receiam explicitar. O que ele faz tem importância singular para o controle público sobre o sistema de Justiça.
Se, por um lado, as tentativas de se criminalizar as críticas de Conrado Mendes apenas confirmam os problemas no sistema de Justiça que ele aponta, por outro, têm um efeito dissuasório enorme sobre a liberdade de expressão e traz o risco da autocensura. Nem todos têm os recursos e a energia para enfrentar longos processos judiciais.
Há uma parcela do Judiciário que entende que o papel que exerce precisa vir acompanhado de tolerância à crítica igual ou maior que a de outros agentes públicos, que recebe questionamentos como oportunidades de aprendizado, e que pretende dar o exemplo em matéria de respeito às liberdades individuais. Enfim, que prefere ser respeitada a ser temida. Essa parcela precisa mandar uma mensagem inequívoca em casos como o de Conrado Mendes de que instituições republicanas que acreditam em sua missão não respondem críticas com tentativas de intimidação.