CPC

Grupos organizados e associações de fato no processo coletivo

Legitimação para a ação civil pública

Imagem: Pixabay

Grupos organizados e associações irregulares – ou associações de fato –, embora não tenham personalidade jurídica, são sujeitos de direito, possuem capacidade jurídica e ao menos uma capacidade específica, a de ser parte. Como defendemos em outra oportunidade,[1] tais entes organizados despersonalizados titularizam situações jurídicas e podem atuar em juízo em sua defesa.

É o que se extrai do art. 75, IX, do Código de Processo Civil (CPC), que enuncia que “serão representados em juízo, ativa e passivamente: IX - a sociedade e a associação irregulares e outros entes organizados sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens”. O dispositivo é muito relevante, na medida em que consolida a distinção entre personalidade e capacidade, garantindo aos sujeitos de direito não pessoas (naturais e jurídicas) o exercício da pretensão à tutela jurídica e o acesso ao Judiciário.[2]
As possibilidades decorrentes do art. 75, IX, do CPC – que inova em relação ao CPC de 1973, que apenas tratava da “sociedade de fato” – são amplíssimas: trata-se de uma cláusula aberta para admitir que entes despersonalizados organizados (grupos), ainda que não pré-identificados (ou tipificados), integrem relações processuais e defendam os interesses relacionados às suas situações jurídicas no Judiciário.

São valorizadas a liberdade de associação e os agrupamentos sociais, aí incluídas as minorias sociais organizadas, como grupos feministas e identitários; os povos e comunidades tradicionais, como povos indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos; o Movimento Sem Terra; as comunidades de moradores; os grupos ambientalistas; os grupos acadêmicos e de pesquisa; grupos esportivos e profissionais; e, no geral, as associações sem fins lucrativos informais (porque não registradas, e, portanto, sem personalidade).

Mas não é qualquer agrupamento social que pode ser considerado um “ente organizado despersonalizado” com capacidade de ser parte. A nosso ver, é que preciso que haja: (i) união entre sujeitos de direito; (ii) com escopo comum relacionado ao desenvolvimento de atividades não-econômicas; e (iii) criando substrato corporativo, em que “a união entre os membros formaria uma realidade supra-individual”;[3] (iv) com constância e estabilidade de reunião.

Configurado o ente organizado despersonalizado e a sua consequente capacidade de ser parte, é possível afirmar que tal ente pode atuar no processo em defesa de seus direitos próprios (enquanto agrupamento que titulariza, por si, situações jurídicas, como mediante a celebração de contratos) e em defesa de direitos alheios (por exemplo, dos membros do grupo individualmente considerados).

Assim, além da análise dos casos em que o agrupamento atua em defesa de suas situações “individualmente consideradas”,[4] também deve ser objeto de estudos e reflexões a atuação de tais agrupamentos sociais organizados no processo coletivo brasileiro, em defesa dos direitos coletivos (em sentido amplo) do grupo e de seus membros.

Nesse contexto, se, por um lado não é novidade a importância das associações civis para o desenvolvimento e para a aplicação prática da tutela coletiva no Brasil, uma vez que as associações, enquanto legitimadas coletivas (art. 5º, V, da Lei nº. 7.347/1985, a Lei de Ação Civil Pública, LACP), ajuízam diversas ações coletivas sobre os temas mais diversos, muitas vezes representando de forma mais adequada e eficiente os reais os interesses e perspectivas de seus associados e dos grupos afetados pela situação conflituosa, por outro, quase nada se discute sobre a capacidade de ser parte dos grupos organizados que não estejam constituídos na forma de associações formais, mesmo após o art. 75, IX, do CPC.

Talvez isso ocorra em razão de regra contida na LACP hoje vigente, segundo a qual a associação terá legitimidade coletiva desde que tenha finalidade institucional pertinente ao objeto da ação e “esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil” (art. 5º, V, “a”, LACP).

Mas, além de o próprio enunciado normativo admitir interpretações variadas, o panorama a respeito do futuro da ação civil pública traz uma perspectiva mais otimista a respeito do tema. Afinal, os mais recentes projetos de Lei que discutem o tema e visam a revogar a atual LACP, o PL 4778/2020 e, em especial, o PL 4441/2020, trazem uma renovada abordagem a respeito da questão.

Primeiro, ambos os projetos não repetem a redação do artigo da atual LACP. Mas, mais importante: o PL 4778 reconhece legitimação às entidades e órgãos da administração pública “ainda que sem personalidade jurídica”, e, ainda mais relevante, o PL 4441 prevê a legitimação das “comunidades indígenas ou quilombolas, para a defesa em juízo dos direitos dos respectivos grupos”, na linha do art. 232 da CRFB.[5]

Nesse contexto, e considerando as premissas assentadas à luz do art. 75, XI, do CPC, é possível defender que grupos organizados sem personalidade jurídica e associações irregulares têm capacidade de ser parte e podem ser legitimados coletivos, por exemplo, ajuizando ações civis públicas, desde que haja, claro, aderência à situação conflituosa objeto da ação coletiva e ao grupo lesado.

Afinal, como bem enuncia o PL 4441 de 2020, é preciso que se demonstre, como ocorre com todos os demais legitimados coletivos, inclusive as associações formais, “representatividade adequada” para atuar no caso concreto, o que pode ser aferido, dentre outros elementos, pelo histórico na representação dos direitos dos sujeitos afetados, número de associados, tempo de constituição, credibilidade e confiabilidade do grupo.

Podem surgir, claro, indagações e críticas, considerando o aparente conflito entre a desnecessidade de constituição formal da associação ou a pré-identificação ou tipificação do agrupamento social, ora defendida, e os requisitos para aferição da representatividade adequada, como, segundo os PLs 4778 e 4441, o “tempo de constituição” da associação e a “prévia autorização assemblear ou estatutária” para ajuizamento da ACP.

No entanto, não nos parece que tais elementos de representatividade sejam contraditórios com a potencial legitimidade coletiva (que será apenas aferida à luz do caso concreto e ad actum), considerando que o registro ou a tipificação legal apenas atestam, muitas vezes, uma situação fática pré-existente. Tais requisitos podem servir de parâmetro para a identificação da representatividade nos grupos despersonalizados.

No caso dos grupos organizados e associações irregulares o tempo de constituição será identificado a partir da realidade fática, e comprovado por diversas formas, como mediante a divulgação pública de seus projetos e ações, registros de reuniões, encontros e cerimônias, data de realização de eventos, troca de correspondência entre os membros do grupo, tempo de ocupação de determinada área ou região e, em termos mais recentes, datas de posts e publicações do grupo em redes sociais.[6]

Do mesmo modo, a “prévia autorização” para ajuizamento das ações coletivas pode ser comprovada pelos mesmos meios de demonstração acerca das deliberações coletivas do grupo (votações registradas em ata; deliberações por representantes eleitos para tomada de decisões; regimentos ou normas internas do grupo; costumes etc.).

A propósito, é curioso notar que agrupamentos sociais são admitidos na tutela coletiva, com certa naturalidade, na condição de demandados.[7] A inclusão dos grupos no polo passivo de ações coletivas (gerando o complexo problema das ações coletivas passivas) é potencialmente mais nociva do que a admissão de sua atuação como demandantes (essa sim, supostamente vedada), sobretudo porque muitas vezes vem desacompanhada de mínimos critérios para identificação como grupo “organizado” (como propomos) e para identificação de seu representante, inclusive para fins de adequada citação e apresentação de defesa.[8]

Por fim, havendo capacidade jurídica e de ser parte, os grupos e associações irregulares têm potencialidade para atuar no processo em determinados centros de atuação, em variadas posições e buscando variadas finalidades, como, por exemplo, mediante o ingresso na condição do (também multifacetado) amicus curiae.[9] É o que já ocorre, por exemplo, com a participação de “grupos de pesquisa”,[10] um dos exemplos de entes organizados despersonalizados.

Há muito a ser pensado ainda sobre o tema: o que nos parece relevante, nesse momento, é o novo olhar possibilitado pelos art. 75, IX, do CPC, 232 da CRFB e as propostas legislativas sobre a LACP, especialmente o PL 4441, no sentido de admitir a atuação de agrupamentos sociais e associações de fato no processo coletivo.


O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:


[1] UZEDA, Carolina; PANTOJA, Fernanda; FARIA, Marcela Kolbach; TEMER, Sofia. “Entes organizados despersonalizados e capacidade de ser parte: grupos e associações de fato em juízo (art. 75, IX, do CPC)”. Civil Procedure Review, 2021, v. 12, n.1, p. 165-205.

[2] “Ter capacidade de ser parte é ser titular de pretensão à tutela jurídica. A pretensão à tutela jurídica, apesar de referir-se, especificamente, a matéria processual, porque diz respeito ao direito de provocar a jurisdição estatal no sentido de obter a prestação jurisdicional, que, no Brasil, resulta da incidência do art. 5º, LXXXV e LV, da Constituição de 1988, é de direito material e pré-processual, porque existe antes do processo, constituindo pressuposto para que se possa invocar a proteção da jurisdição estatal. Por isso, a capacidade de ser parte tem natureza de direito material, não processual” (MELLO, Marcos Bernardes de. Achegas para uma teoria das capacidades em direito. Revista de Direito Privado, vol. 3, p. 27). V., também destacando a relação entre entes organizados e capacidade de ser parte: DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005.

[3] LEONARDO, Rodrigo Xavier. As associações em sentido estrito no direito privado. Tese. Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, 2006, p. 119-121.

[4] No artigo conjunto que referimos na primeira nota de rodapé, nosso foco foi analisar a atuação dos entes para defesa de seus próprios interesses, considerando por exemplo as situações em que tais agrupamentos firmam contratos, instituem e cobram contribuições, movimentam recursos financeiros, fornecem serviços, possuem marca etc., e, que, a nosso ver, não invocariam o regramento da tutela coletiva.

[5] CRFB, Art. 232: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

[6] Vejamos o exemplo da Processualistas, agrupamento de que fazem parte as autoras desse texto: trata-se de associação de fato, constituída por professoras de direito processual, com intuito não econômico de criar conteúdo jurídico de Direito Processual, bem como o de promover a diversidade no meio acadêmico, em reunião estável e duradoura, desde 2016, como se vê, por exemplo, de nossos projetos públicos (como posts em nossa coluna no Jusbrasil - https://processualistas.jusbrasil.com.br/ e em nosso instagram https://www.instagram.com/processualistas/).

[7] Por exemplo, mencionando a situação dos sujeitos envolvidos nos “rolezinhos” nos shoppings, categorizados como grupo ou movimento social: ZUFELATO, Camilo. O caso ‘rolezinho’ como ação coletiva passiva e a intervenção da defensoria pública para garantir a representatividade adequada do grupo. Revista de Processo, vol. 253, mar.-2016, p. 273-298. Também identificando o problema: COSTA, Susana Henriques da; FRANCISCO, João Eberhardt. Uma hipótese de defendant class action no CPC? O papel do Ministério Público na efetivação do contraditório nas demandas possessórias propostas em face de pessoas desconhecidas. Revista de Processo, vol. 250, dez-2015, p. 315-337.

[8] No ponto, fazemos referência ao rico debate travado no evento Processo coletivo, formação de precedentes e participação: legitimação democrática da atividade jurisdicional, promovido pela AASP em 19.3.2021 e que contou com a participação das professoras Susana Henriques da Costa, Cecília Asperti, Clarisse Lara Leite, Flávia Dórea e Sofia Temer (uma das coautoras do texto).

[9] TEMER, Sofia. Participação no processo civil. Salvador: Juspodivm, 2020.

[10] Veja-se o exemplo da ADPF 663, na qual se admitiu o “Grupo de Pesquisa Constituição e Democracia: Direitos, Deveres e Responsabilidades nos Sistemas Político e de Justiça Contemporâneos, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM”. Também já foram admitidos como amici curiae o “Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia: Filosofia e Dogmática Constitucional Contemporânea (PPGD-UFPR)” e o “Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UFPR”: STF, ADI 5.543, Rel. Min. Edson Fachin, decisão de 16.9.2016, bem como a Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Clínica UERJ Direitos, um núcleo universitário vinculado à UERJ: STF, ADI 4439, Rel. Min. Luis Roberto Barroso, decisão de 9.8.2017. Embora as intervenções citadas tenham ocorrido no âmbito de ações de controle de constitucionalidade, as mesmas razões – e motivações – viabilizariam o ingresso em ACPs.logo-jota