A Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Quase uma década após a sanção do referido diploma normativo, editou-se a Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, que introduziu, no ordenamento jurídico, o tipo penal conhecido como “Feminicídio”.
Com efeito, incluiu-se o inciso VI ao artigo 121, § 2°, do Código Penal, prevendo que, “se o homicídio é cometido [...] contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, a pena será de reclusão, de 12 a 30 anos. Trata-se de homicídio qualificado, considerado crime hediondo conforme o artigo 1º, caput, inciso I, da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990.

Conclui-se, conforme o pequeno histórico aduzido acima, que a sociedade brasileira não mais tolera os delitos praticados contra a mulher no âmbito das relações familiares. Assim como também não mais se admite, por exemplo, a vetusta e ignóbil “defesa da honra”, em que o marido traído ceifava a vida de sua esposa – tal prática, hoje, é absolutamente contrária aos primados de nossa civilização, sendo motivo de ojeriza e, como corolário, demandando uma adequada repressão pelo Estado, para a sua devida prevenção.
Nesse contexto, nota-se um grave retrocesso na recente decisão do Supremo Tribunal Federal que entendeu irrecorrível, para a sociedade, o julgado proferido por Tribunal do Júri que absolveu réu acusado de matar sua companheira. Em apertada maioria – três votos contra dois –, a 1ª Turma do Supremo manteve a absolvição do réu que confessou ter matado sua companheira, a qual, segundo ele, havia o traído.
Com tal entendimento, sepulta-se de vez a paridade de armas, ficando a sociedade totalmente desguarnecida de proteção quanto aos delitos dolosos contra a vida, pois, segundo essa ótica, é cabível apenas o recurso daquele praticou crimes – e não mais do Ministério Público, o qual, defendendo a coletividade, deve resignar-se mesmo diante de grandes injustiças.
O princípio do duplo grau de jurisdição estabelece o reexame integral de uma decisão judicial, a ser prolatada por órgão jurisdicional diverso e, em regra, de hierarquia superior, tendo em vista a falibilidade humana. Com efeito, os jurados são seres humanos e, portanto, estão sujeitos a equívocos. Ao alcançarem um veredicto completamente destoante dos elementos acostados aos autos, surge a necessidade de um instrumento processual que permita uma nova análise da matéria, em especial por outros jurados.
E mais: o cabimento dos recursos busca o aprimoramento da prestação jurisdicional, em especial quando se está diante de um órgão colegiado formado por pessoas leigas em matéria jurídica. A partir do momento em que os jurados têm conhecimento de que o veredicto está sujeito a um possível reexame, realizado por órgão jurisdicional composto por juízes dotados de larga experiência, tem-se, em verdade, um estímulo para se evitar resultados completamente díspares das provas acostadas aos autos, tendente, ainda, ao aprimoramento da função judicante.
Impende ressaltar que, embora o duplo grau de jurisdição não esteja assegurado de modo expresso na Constituição Federal, encontra-se inserido de maneira implícita na garantia do devido processo legal (artigo 5º, caput, inciso LIV, da Carta Magna) e no Pacto de São José da Costa Rica (artigo 8º, § 2º, alínea “h”), neste último de forma ampla e irrestrita, de modo que inviável a sua restrição na esfera do Tribunal do Júri.
De outro modo, não se pode olvidar que, a partir do momento em que alguém pratica a conduta delituosa prevista no tipo penal, o Estado, que até então tinha um poder-dever abstrato de garantir a segurança pública e punir o infrator, passa a ter uma pretensão concreta de submissão do infrator à sanção penal.
Ora, afastar a possibilidade de interposição do recurso de apelação quando os jurados absolvem alguém acusado da prática de crime doloso contra a vida, votando “sim” ao quesito genérico da absolvição, impede o exercício efetivo do ius puniendi, tendente a sujeitar o autor do delito à sanção penal após a devida apreciação da matéria pelo órgão competente, em nítida afronta ao princípio constitucional da segurança (artigo 5° da Constituição).
Não bastasse, a deficiência no exercício do poder punitivo estatal, por meio do afastamento de recurso, implica a impunidade, que, por conseguinte, em um ciclo vicioso que se perde no horizonte, estimula a violência e a criminalidade. Cuida-se de um desencadeamento lógico de acontecimentos: sem punição, não há prevenção criminal geral ou específica, de sorte que os delinquentes continuam cometendo crimes e o sistema repressivo estatal fica desacreditado, deixando, por conseguinte, de inibir comportamentos criminosos.
Ademais, o artigo 593, caput, inciso III, do Código de Processo Penal, prevê o cabimento de apelação contra decisões do Tribunal do Júri, quando: a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia; b) for a sentença do juiz presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança; d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
A partir da leitura atenta do mencionado dispositivo, é inconcebível que uma decisão manifestamente contrária à prova dos autos não possa ser objeto de combate por meio de recurso de apelação, tendo em vista inexistir de qualquer limitação legal ou constitucional nesse sentido.
Por fim, no que tange ao cabimento de apelação com base na alínea “d” do inciso III do artigo 593, impende ressaltar que o Tribunal não substitui a decisão dos jurados, mas apenas reconhece equívoco manifesto na apreciação da prova pelo Tribunal do Júri. Assim, deve determinar a realização de outro julgamento pelo Júri, ou seja, prolata mero juízo rescindente, reservando aos jurados novo julgamento.
Diante desses motivos, lamenta-se a referida decisão, rogando que o Supremo Tribunal Federal altere esse entendimento, no sentido de permitir que as decisões prolatadas por Tribunal do Júri sejam passíveis de recurso, possibilitando uma justa defesa da sociedade.