Mario Fabrizio Polinelli
Sócio do escritório Carlos Eduardo Machado Advogados.
O compliance é decerto um dos mais relevantes temas em voga no universo corporativo. Seu escopo, hoje, muito mais que a criação de um canal de denúncias, é a transformação da atividade empresarial, com a criação da cultura da conformidade à lei e à moralidade.
Não é novidade que, na investigação de delitos empresariais complexos, o compliance é potencialmente uma ferramenta importantíssima. Se a pessoa jurídica adota por si só uma atitude de combate aos desvios e inconformidades, atuando para trazer à luz possíveis atos ilícitos, o Estado-investigador tem mais chances de sucesso na futura persecução penal.
Todavia, a insegurança jurídica que macula nosso sistema jurídico ainda não permitiu uma completa consolidação dessa importante ferramenta em nosso país.
Políticas de conformidade não são exatamente uma inovação no Brasil.
Embora sem a utilização da expressão “compliance”, vários diplomas legais brasileiros já impunham aos administradores de empresas deveres de conformidade. Mencione-se, a título de exemplo, a Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro, a Lei dos Crimes Tributários, a Lei de Licitações, dentre outras.
Os grandes marcos ao compliance criminal foram, de qualquer modo, a Lei de Lavagem de Dinheiro (9613/98) e a Lei Anticorrupção (12846/13).
A Lei de Lavagem de Dinheiro criou a obrigação de que empresas de determinados setores adotassem mecanismos capazes de identificar seus clientes e mantivessem os registros das transações comerciais.
Foi também imposta às empresas a manutenção de cadastro no órgão regulador ou fiscalizador de sua atividade e a adoção de controles internos correspondentes ao seu porte e aptos ao atendimento das normas legais.
No mesmo sentido, a Lei Anticorrupção (12846/13) deu contornos concretos à responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de determinados atos ilícitos, estabelecendo fatores que permitem a gradação das sanções.
Dentre esses fatores, consta a previsão de “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de código de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (art. 7º da Lei 12846/13).
Ou seja, ao passo que a lei de lavagem de dinheiro impõe uma obrigação, a lei anticorrupção incentiva a existência de programas de compliance para a redução das sanções eventualmente aplicadas.
Desde então o compliance vem sendo paulatinamente regulamentado por meio de decretos, resoluções, circulares e diretrizes, emitidos por diversos órgãos e entes do Poder Público.
Esses avanços acabaram por permitir a abertura de outras frentes de responsabilização das empresas, embora na seara penal o apenamento direto da pessoa jurídica seja possível apenas em casos de crimes contra o meio ambiente.
Diversas questões polêmicas emergem dessas formas de responsabilização. Em especial, o forte caráter penal de algumas normas sancionatórias administrativas, em decorrência da semelhança entre os ilícitos administrativos e condutas tipificadas como crimes para pessoas físicas.
A severidade de certas sanções administrativas contra as empresas chega, por sinal, a ser maior que a severidade das sanções de natureza penal previstas na legislação ambiental. Essa questão vem sendo rotineiramente apontada como uma afronta ao princípio da proporcionalidade.
As críticas não se voltam apenas à forma de responsabilização das pessoas jurídicas; há, ainda, crescente e equivocada tendência à persecução do compliance officer, figura tida como o gestor das práticas de conformidade no ambiente corporativo.
O decreto nº 8420/2015, editado pela Presidência da República para regular trechos da Lei Anticorrupção, atribui ao compliance officer a tarefa de aplicar o programa de integridade e fiscalizar seu cumprimento.
Já o artigo 3º da Lei Anticorrupção prevê que a responsabilização da pessoa jurídica, no sentido persecutório, não exclui a responsabilidade individual de dirigentes, administradores ou pessoas que figurem como autoras, coautoras e partícipes do ilícito.
Para buscar a responsabilização do compliance officer, foi construída a ideia de que teria função de garantidor, ou seja, teria a obrigação jurídica lograr êxito em coibir práticas ilícitas. Isso certamente gera insegurança ao seu ofício, pois inexiste na legislação brasileira parâmetros claros sobre como e em que circunstâncias seria possível responsabilizar tais pessoas.
Soa irrazoável e contraproducente que o mero exercício do ofício de compliance officer possibilite a persecução do titular do cargo no caso de ocorrência de um ilícito.
É princípio basilar do direito penal a proibição da responsabilização objetiva. É mandatório que se aponte concretamente como o acusado contribuiu à prática do delito, não sendo suficiente que se diga que ele não conseguiu impedir sua ocorrência.
O compliance officer, nessa toada, jamais deverá ser responsabilizado criminalmente apenas pela falha no dever de prevenção dentro da empresa. Sua obrigação é de meio, não de fim.
Embora a Ação Penal 470 tenha abordado a responsabilidade penal do compliance officer, não houve delimitação de critérios aptos à clarificação de sua hipótese de ocorrência.
A responsabilização do compliance officer voltou aos holofotes recentemente graças à Operação Lava Jato, em especial quando foi investigada a possível ação de funcionários do Banco do Brasil na facilitação de operações de branqueio de ativos.
É inevitável que se avalie, de forma criteriosa, qual o papel do compliance officer possui dentro de cada empresa, seu nível de autonomia e outros fatores importantes que podem ou não causar a sua exclusão da lista de autores de um crime.
Fora as hipóteses de responsabilização, há inúmeros outros debates que precisam ser travados: investigações internas e seu equilíbrio com o direito de defesa, whistleblower e a recompensa no caso de compliance em empresas públicas, os limites da comunicação espontânea, a análise de risco e o manejo da confidencialidade, o reflexo dessas ações na economia e muitas outras.
Não há, ainda, resposta à maiores dessas questões. Em alguns casos, o debate sequer chegou a ser devidamente travado ainda.
A ausência de previsão das consequências práticas do programa de compliance é ainda um obstáculo ao aprofundamento, no Brasil, da cultura da conformidade.
Programas de compliance devem estar em constante monitoramento, pois somente a partir da experiência prática seu aprimoramento é possível.
Fato é que a expansão da criminalidade aumentou a quantidade de atores do sistema penal e o compliance criminal é cada vez mais um poderoso instrumento na criação de uma cultura corporativa mais transparente.
Para sua efetividade, no entanto, é necessária mais intimidade com o instituto, com propostas de mudanças e aperfeiçoamento dos instrumentos legais disponíveis.
Somente assim a realidade brasileira proporcionará a segurança jurídica necessária para emplacar a mudança cultural.