Entre os diversos personagens que protagonizaram a Revolução Francesa, Maximilien Robespierre (1758-1794) certamente é um dos mais controversos. O líder dos jacobinos ficou conhecido como o “Incorruptível” e ganhou fama como um ardoroso defensor das reivindicações das camadas mais pobres da França, no final do século XVIII. Ao mesmo tempo, deixou como marca perturbadora o Período do Terror, que vigorou de 10 de março de 1793 a 27 de julho de 1794 (data da sua queda). Nos cinco últimos meses de sua vida exerceu um poder tirânico sobre a França: 2.217 pessoas foram condenadas à morte na guilhotina depois que ascendeu à posição de líder revolucionário do Comitê de Salvação Pública.
O que poucos conhecem, contudo, é a trajetória pessoal de Robespierre nos anos que antecederam a Revolução. Em sua cidade natal, Arras, e em toda Província de Artois (ao norte da França), o futuro revolucionário atuava como advogado perante as Cortes que integravam o complexo sistema jurídico do Antigo Regime: o Conseil D`Artois (Conselho de Artois), a Échevinage (Corte dos Magistrados) e a Salle Épiscole (Corte dos Bispos).[1]

Por intermédio de um amigo e colega de profissão, Antoine Buissart – também conhecido como “Barômetro” Buissart, pelo interesse que detinha pela ciência experimental – Robespierre se envolveu na defesa de um cidadão de Arras, um certo M. de Vissery de Bois-Valé, advogado, botânico, cientista amador e inventor. Consta que M. de Vissery, entre outras invenções, teria criado uma técnica para preservar água pura por mais de um ano. Em 1780, desenvolveu e instalou no telhado de sua casa, em Saint-Omer, um condutor de raios – “o aparato consistia em uma parte pontiaguda de uma espada dourada afixada a uma barra de ferro de cinco metros, decorada com um cata-vento no encaixe e conectada a um cano de metal que corria ao longo da casa vizinha.[2]
Em razão de uma reclamação feita justamente pelo vizinho, disseminou-se o boato de que o condutor ameaçava a vida de todas as pessoas nas proximidades, o que deu vazão para a assinatura de uma petição por parte de alguns moradores da localidade exigindo que o aparato fosse removido. Imagina-se que o fato de o catavento decorativo exibir luminosos raios figurativos não tenha contribuído muito para arrefecer os temores de cidadãos supersticiosos e provincianos.[3]
O reclamo dos peticionários foi levado à Corte dos Magistrados que determinou que o condutor fosse removido. M. De Vissery decidiu apelar à corte superior do Conselho de Artois, contratando Robespierre para a sua defesa, após indicação de Buissart. Fora Buissart quem escrevera há pouco tempo um texto detalhado sobre o assunto, após ter buscado auxílio com outros especialistas como o afamado filósofo Marquis de Condorcet, que ocupava então o cargo de secretário da Academia de Ciência de Paris, e o futuro revolucionário Jean Paul Marat, jornalista, conhecido por pesquisas no campo da ótica e da eletricidade.[4]
O trabalho científico de Buissart foi fundamental para a defesa realizada por Robespierre perante a Corte dos Magistrados, em 1783. Sua atuação se destacou também pela evocação a cientistas e pensadores perseguidos, como Galileu e Descartes. Robespierre criticou de forma severa, mordaz e depreciativa os peticionários para os quais os para-raios perturbavam a paz e a segurança pública. Finalmente, ressalvou que instrumentos daquela natureza eram comumente utilizados na Inglaterra e, apelando ao sentimento nacional, sublinhou que a França não poderia ficar atrás na descoberta dos avanços científicos. De acordo com Robespierre, cientistas franceses haviam contribuído muito para a descoberta da eletricidade como no caso de Thomas-François Dalibard que, com um experimento realizado em Mary-la-Ville, em 1752, teria comprovado a teoria de Benjamin Franklin de que raios continham cargas elétricas. [5]
Robespierre venceu a causa, o que lhe valeu, pela primeira vez, reconhecimento e admiração não somente do seu cliente - que providenciou a publicação das peças de defesa do processo - e de seus conterrâneos de Arras e da região de Artois. Seu desempenho ganhou notoriedade para além dos limites provinciais, com uma menção elogiosa do jornal de Paris, Mercure de France.[6]
Mas, principalmente, a atuação de Robespierre na ação dos para-raios é importante para revelar o espírito que marcava a rivalidade diplomática da França Pré-Revolucionária com a Inglaterra, na competição pelo domínio do progresso técnico e pelo estímulo e proteção às inovações, ao final do século XVIII.[7] De fato, em 1791, já na vigência do regime revolucionário, a França promulgou suas duas primeiras leis em matéria de propriedade intelectual. Foram leis influenciadas pelo sistema de patentes britânico da época, visto como um instrumento sine qua non para o desenvolvimento das inovações e manufaturas da nação rival.[8]
Os acontecimentos apresentados nos estimulam a pensar acerca da necessidade de, tempos em tempos, homens públicos terem que rediscutir a adequada calibragem endógena entre as leis de proteções à propriedade intelectual de seu país e o sistema de inovação por elas regulado. Contudo, o legado negativo do sectarismo ideológico jacobino serve também como alerta para a necessidade de atentar para os benefícios do pragmatismo frente às imposições do atual sistema de poder do comércio global, especialmente quando são discutidas as normas que integram o regime internacional de propriedade intelectual. Que a História nos sirva de guia.
Bibliografia:
GALVEZ-BEHAR, Gabriel. La République des inventeurs: Propriété et organisation de l'innovation en France (1791–1922). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008.
GODELIER, Eric. Business History Review, 2011, Sum, vol. 85(2), p. 396-398.
MALAVOTA, Leandro Miranda. Sobre as Patentes de Invenção: breves considerações históricas In: A Construção do Sistema de Patentes no Brasil: um olhar histórico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
SCURR, Ruth. Pureza Fatal: Robespierre e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.
[1] Cf. SCURR, Ruth. Pureza Fatal: Robespierre e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro, 2009, p. 51-73.
[2] Ibid. p. 56-57.
[3] Ibid. p. 57.
[4] Ibid. p. 57.
[5] Ibid. p. 57.
[6] Ibid, p. 57-58.
[7] Por ser o berço da Revolução Industrial, a Inglaterra já avançara bastante, desde o século precedente, na iniciativa de erigir um ordenamento jurídico de proteção às invenções industriais. O marco, nesse contexto, foi o Estatuto dos Monopólios, de 1623. Ver MALAVOTA, Leandro Miranda. Sobre as Patentes de Invenção: breves considerações históricas In: A Construção do Sistema de Patentes no Brasil: um olhar histórico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001 (p. 1-38).
[8] Cf. GALVEZ-BEHAR, Gabriel. La République des inventeurs: Propriété et organisation de l'innovation en France (1791–1922). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008. Ver ainda a excelente resenha sobre este livro em GODELIER, Eric. Business History Review, 2011 Sum, vol. 85(2), p. 396-398.