Rafael Custódio
advogado criminalista.
O Ministério Público é essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. São essas palavras da Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre o Ministério Público no Brasil. E é esse órgão que agora tem a palavra na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n.º 5.915, proposta pelo Psol contra o Decreto da Intervenção Federal, que tramita no Supremo Tribunal Federal.
A PGR terá, nos próximos dias, a importante missão de exercer seu papel de garantidora da ordem democrática e opinar pelo provimento da referida ADIn. Isso porque o Decreto carrega ao menos quatro pontos de inconstitucionalidade: (i) viola o princípio da proporcionalidade; (ii) estabelece natureza militar à função do Interventor, bem como a (iii) não sujeição deste às leis estaduais do RJ, e (iv) teve sua elaboração marcada por contrariedades ao rito procedimental adequado.
Primeiramente, é cristalino que o Decreto viola o princípio da proporcionalidade. É verdade que o Estado do Rio de Janeiro vem enfrentando o acirramento dos conflitos de segurança pública, assim como ocorre em todo o país, à medida em que a crise econômica no Estado também se agrava. Os territórios de favelas e periferias, e especialmente a população negra, vêm sofrendo diretamente o impacto desta crise estrutural no campo da Segurança Pública. As disputas entre facções, agravadas pela falta de controle de armas e pela política de guerra às drogas, e aliadas à violência perpetrada pelos próprios agentes estatais, vêm gerando um saldo bastante negativo: em 2016, foram mais de 61 mil mortes violentas intencionais no país, o que leva a uma taxa de 29,7 por 100 mil habitantes. No Estado do Rio de Janeiro, essa taxa é de 37,6; número alto, porém abaixo de diversos Estados como Alagoas, Pará e Rio Grande do Norte, onde a taxa supera 50 mortes por 100 mil habitantes.
A resposta estatal à área de Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro vem invariavelmente se apoiando na concepção de “guerra” e, consequentemente, levando à gradual e intensa militarização do Estado - geralmente, por meio de Decretos que autorizam operações para Garantia da Lei e da Ordem (“GLO”) - nos últimos 10 anos foram 12 GLOs -, que, no entanto, não geram resultados práticos positivos. A utilização cada vez mais frequente das Forças Armadas em funções de segurança reforça este modelo de segurança militarizado, típico de regimes autoritários, ao mesmo tempo em que afasta um modelo de segurança cidadã, paradigma em regimes democráticos. No caso específico da Maré, as Forças Armadas permaneceram entre 1° de abril de 2014 a 30 de junho de 2015. Nesse período de um ano e três meses de ocupação militar, o custo foi de R$ 600 milhões, valor equivalente ao dobro dos gastos em programas sociais da Prefeitura Municipal nos seis anos anteriores.
A intervenção viola os direitos fundamentais dos afetados e o histórico das ocupações militares no RJ mostra as sérias restrições de direitos impostas à população: membros das Forças Armadas revistando mochilas de crianças em operações questionáveis; militares utilizando balaclavas com símbolos de caveiras em clara intimidação à população; operações sem transparência em favelas e periferias que deixam mortos e feridos. Na atual operação de “guerra”, já em andamento, moradores de bairros pobres do Rio de Janeiro já estão sendo tratados como suspeitos, sendo obrigados a se identificar e sendo fichados pelas Forças Armadas, no caminho de casa ao trabalho e vice-versa. Outra questão que evidencia a desnecessidade do ato da Presidência é que o próprio Presidente afirmou que o decreto poderia ser suspenso a qualquer momento para aprovação de medidas fiscais de interesse do Planalto, como a reforma da Previdência.
O segundo ponto de inconstitucionalidade do Decreto é relativo à inadmissibilidade e à inconstitucionalidade da atribuição de natureza militar ao cargo do Interventor, já que o mesmo está assumindo – por força do próprio Decreto – parte das atribuições de um Governador de Estado; que não é, e nunca poderá ser, um cargo de natureza militar. A leitura do artigo 3º do Decreto permite concluir que o Interventor é nomeado para substituir o Governador no que toca à área de segurança pública, já que transfere àquele as competências privativas dispostas no artigo 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro no que for necessário à realização de ações de segurança, por sua vez previstas no Título V da Constituição Estadual.
No entanto, o cargo de Governador do Estado tem por disposição constitucional, natureza civil, e não militar. Por fim, quanto a este ponto, é importante frisar também que a atribuição de natureza militar ao cargo do Interventor implica, consequentemente, na aplicação da recente Lei nº 13.491/2017, que promoveu alterações no Código Penal Militar para deslocar a competência de julgamento de crimes dolosos contra a vida, praticados por militar contra civil, para a Justiça Militar da União, quando (dentre outras situações) em contexto de atividade de natureza militar. Ou seja, por força da previsão inconstitucional do Decreto, o Interventor passa também a ser sujeito à Justiça Militar, e não à Justiça comum, eliminando qualquer tipo de controle social sobre suas ações e expandindo, inidoneamente, os efeitos do artigo 124 da Constituição Federal.
O terceiro ponto de inconstitucionalidade é que o §1º do artigo 3º do Decreto determina a não sujeição do Interventor às normas estaduais. Pela mesma fundamentação da inconstitucionalidade da natureza militar de seu cargo, é possível concluir a inconstitucionalidade do Interventor não se submeter à legislação estadual, justamente porque está exercendo funções privativas do Governador do Estado, que está sujeito à legislação estadual. Ainda que a Intervenção seja uma medida excepcional prevista na Constituição Federal, não há previsão constitucional nem autorização para que o Interventor não se submeta às normas Estaduais.
Medidas coercitivas de restrição de direitos e restrição de normas e garantias vigentes são excepcionalíssimas e só podem ser aplicadas quando expressamente autorizadas pela Constituição – como é o caso, por exemplo, das medidas coercitivas (bastante limitadas, ressalte-se) previstas no caso de decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio, respectivamente nos artigos 136, §1º e 139 da CF. Os dispositivos constitucionais que regem o instrumento da Intervenção não preveem medidas do tipo, e é por isso que o artigo 3º, §1º do Decreto contraria frontalmente o artigo 34 da Constituição Federal - o qual dispõe a não intervenção como regra - ao conferir poderes ao administrador não previstos constitucionalmente.
O quarto fundamento da inconstitucionalidade é que a Constituição é clara quanto ao rito que deve ser observado para a aprovação da intervenção federal, medida drástica e por isso carregada de cautela. Com efeito, os artigos 34 e seguintes, bem como os artigos 90 e 91, todos da Constituição Federal, impõem que os Conselhos da República e da Defesa Nacional devem, obrigatoriamente, ser consultados pela Presidência em caso de intervenção. A doutrina é consensual no sentido de que essa consulta é prévia à elaboração do Decreto, já que o legislador constituinte optou por, respeitado o pacto federativo, impor uma fase de escuta prévia à Decretação por parte do Presidente da República. Fato é que, não apenas o Conselho da República foi consultado posteriormente à decretação da Intervenção, mas também, quando o foi, não havia de fato representantes da Sociedade Civil. A consulta a posteriori, portanto, é mais uma das claras inconstitucionalidades do Decreto.
Como se enxerga, saltam aos olhos as inconstitucionalidades do Decreto, e esperamos que a PGR, na figura de sua titular, Raquel Dodge, exerça seu papel fundamental de controle dos atos administrativos que violam o regime jurídico, a ordem democrática e os interesses individuais e coletivos, se manifestando pela inconstitucionalidade do Decreto.
*As entidades subscritoras deste artigo (Conectas Direitos Humanos, Justiça Global, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) foram admitidas como amicus curiae na ação em referência, que tramita no Supremo Tribunal Federal.