José Augusto Garcia de Sousa
Defensor público no estado do Rio de Janeiro. Doutor em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor adjunto de direito processual civil da Faculdade de Direito da UERJ
Janeiro de 2015 será o mês em que a liberdade de expressão esteve no centro de acontecimentos que mobilizaram o planeta. Além do atentado terrorista contra a equipe da revista satírica Charlie Hebdo, seguido de imensas manifestações de repúdio, tivemos também o início da sanguinária pena imposta ao blogueiro saudita Ralf Badawi — 1.000 chibatadas parceladas em 20 sessões semanais —, condenado por ter criado a primeira rede de orientação secular do país, com a proposta de discutir assuntos religiosos, sociais e políticos, aí incluída a própria questão da liberdade de expressão[1].
Na esfera doméstica, embora felizmente sem nem chegar perto em termos de dramaticidade, também chamou a atenção uma afronta à liberdade de expressão. Noticiou-se que o campeonato de futebol do Estado do Rio de Janeiro estabeleceu, no regulamento para 2015, uma cláusula de censura, assim redigida (art. 133): “A veiculação, em qualquer meio de comunicação, decorrente, direta ou indiretamente, de ato e/ou declaração, considerados contrários, depreciativos ou ofensivos aos interesses do campeonato, praticada por subordinados à presidência de qualquer associação disputante, será considerada como ato lesivo à competição e sujeitará o clube a que pertencer o agente, após decisão do Conselho Arbitral, a multa administrativa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), dobrada a cada ato lesivo gerado por qualquer outro membro da mesma associação.”
Acompanha a cláusula de censura, no respectivo parágrafo único, magnânima possibilidade de mitigação da reprimenda: “Caso o ato lesivo seja desmentido em nota oficial assinada pelo Presidente da respectiva associação e publicada na primeira página do site do clube em até 48 horas de sua ocorrência, a sanção disposta no caput será reduzida metade.”
Em entrevista a respeito do assunto, o presidente da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, Rubens Lopes (no cargo desde 2006), declarou que os próprios clubes teriam aprovado a cláusula — embora alguns neguem —, cujo sentido seria preservar a competição e os interesses dos participantes: “Alguém vai serrar o galho da árvore em que está sentado?”[2]
Não se deixe de aduzir que o temor de críticas é bastante procedente. A decadência do campeonato estadual de futebol do Rio de Janeiro é notória. Na fórmula atual, mantida em razão de interesses pouco claros, o certame mostra-se altamente deficitário para os grandes clubes. Na edição do ano passado, nem a final, disputada entre times de grande torcida (Flamengo e Vasco), conseguiu encher o Maracanã, registrando público de pouco mais de 40 mil pessoas. Por outro lado, houve dois jogos que atraíram apenas 150 pagantes. Aliás, a grande maioria das partidas teve público inferior a 500 testemunhas. Sintomaticamente, os grandes clubes cariocas tiveram participações decepcionantes nas competições nacionais em 2014. O Botafogo chegou a ser rebaixado para a segunda divisão do campeonato brasileiro.
A toda essa penúria esportiva soma-se agora a indigência jurídica. A cláusula de censura imposta pela Federação do Rio de Janeiro viola gritantemente o direito fundamental à liberdade de expressão, cláusula pétrea constitucional. Uma única dúvida razoável pode ser suscitada: consistindo a Federação em uma entidade privada, há espaço para a invocação do direito fundamental à liberdade de expressão? Ou a autonomia da vontade e a liberdade de iniciativa inerentes a essas entidades bloqueariam a efetivação do direito?
Como se vê, entramos na discussão a respeito da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a saber, uma eficácia que se põe nas relações entre particulares, fugindo do esquema clássico Estado opressor x cidadão oprimido. A eficácia horizontal, embora continue sendo objeto de muita polêmica, já foi reconhecida em diversos julgados dos nossos tribunais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal[3].
Curiosamente, também na ambiência do pobre futebol carioca, há alguns anos, foi produzido outro precedente versando sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Explique-se. O Vasco da Gama — presidido então por Eurico Miranda, que recentemente reassumiu o cargo — proibiu que profissionais de imprensa de um determinado grupo tivessem acesso às dependências do clube, em represália a críticas veiculadas por diário esportivo desse mesmo grupo à direção do clube. Em contestação, alegou o Vasco que, sendo uma associação particular, o seu direito de propriedade falaria mais alto do que a liberdade de imprensa, estando portanto autorizado a vedar o acesso de profissionais específicos. A defesa não foi aceita. Assinalou-se na sentença: “Em relação às filmagens dos treinos, que, segundo o réu, são eventos particulares, de fato, em regra, o são. Contudo, naqueles casos em que o réu autorizar o ingresso de jornalistas de outras emissoras/jornais etc., não lhe é dado impedir o ingresso dos jornalistas da ora autora, sob pena de haver discriminação odiosa. Certo é que o réu possui o direito de propriedade sobre suas dependências. No entanto, o exercício de tal direito não pode se dar de forma abusiva (artigo 187 do Código Civil) nem discriminatória, mormente porque em seu interior é desenvolvida atividade de interesse de grande parte da população e, ressalte-se, envolvendo time de torcida numerosa.”
O julgado de segundo grau manteve no essencial a sentença de procedência (parcial) do pleito, frisando por seu turno que “embora o clube tenha natureza privada, possui relevante função social, diante do papel que exerce como famosa agremiação no campo esportivo.”[4]
Note-se que as decisões que acabamos de reproduzir não tocaram expressamente na figura da eficácia horizontal. Mas não pode haver dúvida de que se trata de uma bela aplicação da teoria. Entendeu-se afinal que, mesmo no âmbito privado, não podem ser esquecidos o direito à igualdade e a própria liberdade de imprensa.
Idêntico raciocínio, fundado na eficácia horizontal, vale para o caso tema deste breve ensaio, referente ao regulamento do campeonato de futebol do Rio de Janeiro. Também a liberdade de expressão não pode ser escorraçada só porque o ambiente é privado. Em uma ordem jurídica que privilegia os direitos fundamentais, como a nossa, não há canto ou fresta imune à vocação irradiante desses direitos. Em tal contexto, renova-se a missão do Estado. Além de abster-se de ferir direitos fundamentais, ele deve ainda assumir um papel ativo de garantidor dos direitos, onde quer que estejam.
É claro que a eficácia horizontal, mesmo para os seus entusiastas, admite temperamentos, dependendo das circunstâncias concretas. Isso se dá, logicamente, porque a própria autonomia dos entes privados tem inegável relevância constitucional.
Ocorre que, no caso em tela, não se vislumbra qualquer salvação para a cláusula de censura aposta no malsinado regulamento. Ainda mais porque as federações esportivas, sobretudo no campo do futebol, ocupam espaço indiscutivelmente público, ainda que não estatal. Para gerenciar paixão genuinamente popular, veem-se aquinhoadas com recursos expressivos, sendo frequentes as denúncias de desvios. Acentuar a natureza formal privada dessas entidades não contribui nem um pouco para melhorar a sua gestão, muito pelo contrário.
Acrescente-se que a mordaça imposta não tem qualquer aptidão para tornar mais atraente o certame, o que só acontecerá se uma fórmula de disputa muito mais racional for aprovada, com um número bem menor de participantes. Por sinal, a cláusula de censura, como costuma acontecer com várias medidas totalitárias, teve efeito exatamente oposto ao que pretendia: dada a repercussão negativa havida, o campeonato já está desmoralizado antes mesmo de começar!
Não se deixe de enfatizar que a redação da cláusula torna-a ainda mais nociva e teratológica. Promete-se punição para todo suspiro, veiculado em “qualquer” meio de comunicação, decorrente, mesmo que “indiretamente”, de ato e/ou declaração — e sequer se consegue compreender a estrutura do texto — considerado “contrário” aos “interesses” do campeonato. Que interesses são estes? E quem irá julgar essa obscura contrariedade? Certamente pessoas com a mesma sensibilidade para a tutela dos direitos fundamentais...
Todos os profissionais que farão o campeonato — de jogadores consagrados a roupeiros anônimos de times do interior — ficam, portanto, privados de um direito fundamental e inalienável. Só eles perdem? Evidentemente que não. Como se sabe, o direito à liberdade de expressão preocupa-se também com o destinatário da mensagem. A teratológica cláusula suprime do grande público que gosta de futebol a possibilidade de ouvir críticas supostamente abalizadas sobre o assunto, feitas pelos protagonistas do evento.
Segundo Daniel Sarmento, o projeto democrático resta incompleto quando limitado às relações públicas: “Para ampliar e radicalizar a democracia, é necessário estendê-la para outras instâncias em que o poder também se manifesta e carece igualmente de legitimação, como a família, as empresas, os sindicatos e as associações.”[5]
No campo do futebol, tendo-se em vista o interesse que desperta na população em geral, é de todo conveniente, até pelo aspecto didático, que os direitos sejam preservados da maneira mais ampla possível. Oxalá venha logo uma ação judicial para extirpar o monstrengo jurídico trazido pelo regulamento da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro.
Depois da surra humilhante que levamos da Alemanha, no ano passado, clamou-se pela total reformulação do futebol brasileiro. Com a estrutura e os dirigentes que temos, talvez seja uma tarefa ainda mais hercúlea do que devolver na mesma moeda, aos agora campeões mundiais, a goleada que tomamos.
* Defensor público no Estado do Rio de Janeiro, professor de direito processual civil da UERJ e da FGV/Rio.
[1] Leia-se a propósito o excelente artigo de Dorrit Harazim, A rebelião de existir, publicado no jornal O Globo, 18/01/15, p. 16.
[2] A entrevista pode ser lida em http://extra.globo.com/esporte/campeonato-carioca/. Acesso em 19/01/15.
[3] Confira-se a propósito, na jurisprudência do Supremo, o RE 201.819, rel. Min. Ellen Gracie, rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgamento por maioria em 11/10/05, versando o caso sobre exclusão de membro de sociedade sem a observância do devido processo legal.
[4] Proc. 0149503-49.2007.8.19.0001, 4ª Câmara Cível do TJ/RJ, rel. Des. Mônica Tolledo de Oliveira, julgamento unânime em 24/11/10.
[5] Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, p. 377.