No último 18 de agosto, com a aceitação da neozelandesa Wendy Miles para presidir o painel, foi constituído o Tribunal Arbitral para apreciação do caso Kansanshi Mining Plc vs. República da Zâmbia[1]. A controvérsia envolve mais uma disputa minerária transnacional submetida à arbitragem e à conciliação em 2020, seguindo os passos de outras como Winshear Gold Corp. vs Tanzânia[2] e Barrick (Niugini) Limited vs. Pápua Nova Guiné[3].
No livro “Arbitration of International Mining Disputes: Law and Practice” – já citado nesta coluna em outras oportunidades – Henry Burnett and Louis-Alex Bret questionam, ao final de um estudo sobre as disputas arbitrais internacionais envolvendo Estados e investidores na mineração, a formação de uma Lex Mineralia, uma nova vertente da Lex Mercatoria espelhada na polêmica Lex Petrolea.

A provocação dos autores é relevante e merece uma reflexão.
Poucos assuntos envolvendo o Direito da Energia são tão controversos quanto a Lex Petrolea, a começar pela inexistência de um consenso a respeito do seu conceito. Os vários estudiosos que se propuseram a escrever sobre o tema não conseguiram estabelecer um significado definitivo. Oscilaram entre definições amplas, relativas a um conjunto de normas e costumes de Direito Internacional, fundamentalmente baseado no histórico da jurisprudência arbitral, e definições exemplificativas, por meio da listagem de itens que poderiam se encaixar no conceito, como as boas práticas jurídicas e as cláusulas contratuais de estabilização fiscal[4].
Desde a sua criação no fim dos anos 80 – calcada no notório caso AMINOIL x Kuwait e no artigo de Doak Bishop –, o termo Lex Petrolea permanece sendo estudado, em duas vertentes: uma crítica, negando a sua existência; e outra corroborativa, fornecendo elementos para justificar a sua validade.
A revisão bibliográfica do tema indica que os principais pontos de discordância entre os autores são a generalização do termo, que, ao desconsiderarem várias regras distintas e específicas de cada jurisdição, impedem uma conceituação teórica consistente; e a dicotomia hard law vs. soft law, sobre sua aplicação compulsória ou meramente orientativa.
Apesar do infindável debate sobre a existência ou não de uma Lex Petrolea, o exame de conjunto de precedentes de disputas setoriais em escala global, junto à pesquisa sobre a prática contratual de uma indústria, é importantíssimo para a identificação de tendências e para a solução de controvérsias.
A pesquisa desses precedentes e costumes é relevante, por dois fundamentos: (a) ainda que não sejam vinculantes, decisões, especialmente arbitrais, são estudadas e auxiliam na formação do convencimento de árbitros e outros Tribunais em disputas semelhantes; (b) ainda que não haja uma identidade absoluta de normas, condutas e contratos no setor, a expansão global da atividade desencadeia estruturas jurídicas semelhantes, também capazes de viabilizarem novos projetos baseados em casos antigos.
Partindo da premissa de que, ainda que amorfa, possui reflexos jurídicos na relação entre investidores e Estado, é de se concluir que a Lex Petrolea, como um jargão relacionado a elementos jurídicos setoriais comuns, capazes de serem aplicados em diferentes jurisdições, é, sem dúvida, um instituto jurídico relevante, a ser certamente considerado durante o processo de formação, modificação e extinção de regras e contratos setoriais.
Nesse cenário, é possível questionar se as várias decisões arbitrais[5] e a prática jurídica construída nos países essencialmente mineradores possuem fundamentos comuns capazes de indicar um sistema jurídico específico – e global – para o setor mineral.
A resposta nos parece positiva.
A indústria mineral, até a última década, não possuía histórico público de decisões arbitrais envolvendo Estados e investidores. Esse fato impedia um estudo detalhado sobre o padrão interpretativo dos tribunais arbitrais sobre o tema.
Todavia, a ampliação da onda de transparência relacionada à indústria extrativa e a divulgação de decisões arbitrais na mineração, especialmente provenientes do International Centre for Settlement of Investment Disputes (ICSID) e da United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL), está possibilitando, pela primeira vez na história do Direito da Mineração, um estudo aprofundado da proteção de investimentos minerais não baseada em jurisprudência local e alicerçada em normas exclusivamente nacionais, mas em precedentes transnacionais, construídos por interpretações que envolvem a relação entre o Direito Internacional e os ordenamentos jurídicos domésticos.
Esse conjunto de precedentes permite realizar uma pesquisa do Direito da Mineração sob uma nova perspectiva, mais prática, baseada no conflito real entre a indústria e os países mineradores. É parte essencial dos princípios, normas, regras e decisões que compõem o regime de proteção de investimentos[6].
Nesse contexto, a proposta de Burnett e Bret torna-se mais que conveniente: é necessária. A mineração tem a oportunidade de organizar esse estudo de forma mais objetiva, superando o fetiche terminológico e taxonômico dos juristas em relação a nomes e categorias.
Aprendidas as lições vividas pelo Direito da Energia, vive-se o momento ideal para se repensar o Direito da Mineração em sua perspectiva global. Quem sabe esse trabalho seja finalizado a tempo de orientar as pesquisas dos árbitros nos casos da Kansanshi e da Barrick?
Que o resultado seja útil – seja batizando-o de Lex Mineralia ou buscando identificar os elementos comuns que orientam a relações jurídicas entre Estados, sociedade e a indústria mineral, também chamado... Direito da Mineração.
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[1] ICSID Caso nº ARB/20/17.
[2] ICSID Caso nº ARB/20/25.
[3] ICSID Caso nº CONC/20/1.
[4] Sobre as cláusulas de estabilização fiscal nos contratos do petróleo, sugere-se a leitura deste material preparado por Mario Mansour e Carole Nakhle: https://www.oxfordenergy.org/wpcms/wp-content/uploads/2016/02/Fiscal-Stabilization-in-Oil-and-Gas-Contracts-SP-37.pdf
[5] Algumas delas citadas nesse artigo que escrevi para o JOTA: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/mineracao-investimentos-e-arbitragem-03112019
[6] Sobre o tema, recomenda-se o estudo do trabalho do Professor Salacause: Salacuse, Jeswald W. "The emerging global regime for investment." Harv. Int'l LJ 51 (2010): 427.