No dia 5 de julho, ao derrubar um veto imposto pelo presidente Jair Bolsonaro, o Congresso resolveu um impasse que perdurava por décadas ao definir que, para a legislação do IPI, praça é o município onde está localizado o remetente da mercadoria. A norma foi sancionada no último dia 8, mas especialistas levantam que ela deve gerar uma nova leva de discussões. Isso porque tributaristas e Fazenda Nacional discordam sobre a possibilidade de a regra retroagir, alcançando processos relacionados a autuações lavradas antes da aprovação da lei.
O debate gira em torno da possibilidade de a Lei 14.395/22, que definiu o conceito de praça, ser considerada como interpretativa. Em caso positivo, ela poderia ser aplicada pela Justiça e pela esfera administrativa nos casos em curso ou futuramente em processos envolvendo autuações realizadas antes de sua edição.
Norma antielisiva
A discussão surgiu com a aprovação do PL 2110/19, que alterou o artigo 15 da Lei 4.502/64 para prever que, para o cálculo do Valor Tributável Mínimo (VTM), “considera-se praça a cidade onde está situado o estabelecimento do remetente”. O dispositivo tem objetivo antielisivo, evitando que indústrias reduzam artificialmente a base de cálculo do IPI ao enviarem mercadorias a empresas ligadas a um preço abaixo do de mercado.
“A norma antielisiva evita que as empresas abrissem uma comercial, vendessem para a comercial por um preço pífio para diminuir a base de cálculo do IPI, e, na segunda fase, vendessem pelo preço real”, explica Fabrício Sarmanho de Albuquerque, procurador da Fazenda Nacional.
A Lei 4.502 prevê que, para o cálculo do real valor da mercadoria em caso de operações entre empresas interdependentes, deve ser observado o “preço corrente no mercado atacadista da praça do remetente”. Não havia mais detalhes, porém, sobre o que poderia ser considerado praça.
O Carf foi chamado a responder o que seria praça em diversas situações, e possuía jurisprudência recente permitindo que o conceito abrangesse outras localidades além da cidade onde está localizado o remetente.
Exemplo consta nos processos 16682.722461/2015-30, 6682.722760/2016-55 e 16561.720182/2012-65, analisados em 2019 pela 3ª Turma da Câmara Superior do tribunal administrativo. Foi vencedora a posição de que “o conceito de praça, utilizado no art. 195, I, do RIPI/2010, não tendo sido o legislador específico quanto à abrangência territorial, comporta interpretação, melhor se identificando, conforme vem sendo entendido pela recente jurisprudência do CARF, com o mercado, que não tem necessária identidade com configurações geopolíticas, em especial a de um Município”.
O entendimento do Carf foi utilizado pelo presidente Bolsonaro para vetar o PL 2110/19 em outubro do ano passado. Com base em informações do Ministério da Economia, o presidente afirmou que, em posicionamentos tomados em 2019, o Carf considerou que o conceito de praça pode abranger também regiões metropolitanas.
Retroatividade
Superada a discussão sobre a abrangência do conceito de praça, tributaristas apontam que o Carf e o Judiciário devem receber uma segunda leva de debates: a possibilidade de a Lei 14.395/22 retroagir. A base para a discussão seria o inciso I do artigo 106 do Código Tributário Nacional (CTN), que define que a lei aplica-se a ato ou fato pretérito ”em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados”.
Para o advogado Carlos Daniel Neto, sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, a Lei 14.395/22 pode ser considerada como interpretativa. “Alteração na regra não tem nenhuma, na verdade essa regra vem dizer o que significa praça para fins de aplicação de uma regra que já existe há quase 70 anos”, afirma.
Ele lembra que desde 2015 o Decreto 8.393 equiparou a industrial os estabelecimentos atacadistas que adquirirem alguns tipos de cosméticos, que antes eram atingidos pela discussão sobre o conceito de praça. Com a equiparação, segundo ele, a discussão deve perder força. “[O decreto] equipara o atacadista a industrial para fins de incidência de IPI, ou seja, tem IPI na saída do industrial e na saída do atacadista”, diz. Para o advogado, a Lei 14.395/22 “foi criada basicamente para resolver os litígios em curso”.
A advogada Maysa Pittondo Deligne concorda que é possível a aplicação retroativa da norma. “O legislador trouxe a interpretação legal, então para aqueles que já tiveram o julgamento, que ainda estão discutindo isso judicialmente, a meu ver, sim, vai gerar um novo contencioso para afirmar se é interpretativo ou não”, defende.
Já Fabrício Sarmanho de Albuquerque acredita que a lei não pode ser considerada interpretativa por ter promovido uma alteração no conceito de praça. Assim, não seria possível aplicá-la a casos envolvendo autuações anteriores à sua publicação. “Essa lei nova não explica o que é praça, ela altera o conceito de praça. Como ela altera, é uma lei que inova, não é uma lei interpretativa”, afirma.
O debate sobre a retroatividade pode significar um novo capítulo na discussão sobre o conceito de praça, a ser acompanhado nos próximos anos.