Renato Scardoa
Advogado e professor de Direito Comercial. Doutorando em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito pela PUC-SP. Sócio do escritório S.DS - Scardoa e Del Sole Advogados
Ao longo de sua história, a legislação falimentar brasileira foi objeto de diversos conflitos interpretativos e divergências doutrinárias. Em um primeiro momento coube ao Poder Legislativo o desafio de pacificar tais temas pela edição de novas leis, como é o caso da Lei 11.101/05 – a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF) –, e da recente Lei 14.112/21. Entretanto, quando a lei silencia ou não oferece a segurança jurídica necessária, compete aos tribunais nacionais a tarefa de garanti-la por meio da harmonização de suas decisões.
Este artigo pretende abordar um dos temas mais divergentes da LREF: a supressão das garantias pessoais por previsão em plano de recuperação judicial aprovado pela Assembleia Geral de Credores, que, como veremos adiante, ao contrário do que foi anunciado em algumas misleading headlines[1], ainda não está totalmente pacificado pelos tribunais brasileiros, notadamente, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Com a entrada em vigor da atual LREF, o Brasil deixou de adotar o sistema engessado e predeterminado das concordatas, em que a norma então vigente impunha parâmetros fixos para a repactuação da dívida de uma empresa em crise. Passou-se então para um ambiente de maior liberdade de negociação entre credores e devedor no âmbito das recuperações judicial e extrajudicial[2].
Se por um lado a liberdade de negociação entre credores e devedor não é absoluta, afinal, se aprovado pelos credores, o Plano de Recuperação Judicial ainda estará sujeito à homologação e, portanto, ao controle de legalidade do Juízo da Recuperação Judicial, por outro, este controle de legalidade também é excepcional e limitado.
Como ensina Marcelo Sacramone:
“A autonomia da Assembleia Geral não significa, entretanto, absoluta soberania. A deliberação da Assembleia Geral de Credores não prevalece se afrontar norma cogente. Como qualquer outro negócio jurídico, o plano de recuperação judicial e os votos dos credores se submetem aos requisitos de validade dos negócios jurídicos, os quais necessitam ter objeto lícito, possível e determinado ou determinável.” Comentários à Lei de empresas e falências/Marcelo Barbosa Sacramone. – 2 ed.- São Paulo: Saraiva Educação, 2021. pag. 336 (grifamos)
Nesta mesma linha de raciocínio, o STJ também se manifestou sobre o tema, destacando-se o voto do ministro Luis Felipe Salomão (Recurso Especial nº 1.359.311 – SP):
"De fato, internamente às tratativas referentes à aprovação do plano de recuperação, muito embora de forma mitigada, aplica-se o princípio da liberdade contratual, decorrente da autonomia da vontade. São apenas episódicos - e pontuais, com motivos bem delineados - os aspectos previstos em lei em que é dado ao Estado intervir na avença levada a efeito entre devedor e credores”.
Esclarecidos os principais aspectos da sistemática de repactuação judicial e a participação excepcional e restrita do Judiciário no que concerne ao seu dever de analisar a legalidade do Plano de Recuperação, é importante compreender o tratamento dado pela LREF aos créditos garantidos por garantias fidejussórias e os conflitos dele decorrentes.
A LREF dispõe que os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, §1º, LREF). No entanto, em contrapartida, estabelece a possibilidade do devedor de dispor de modo diverso às condições originalmente contratadas com os credores (art. 49, §2º, LREF) e que o plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido (art. 59, §2º, LREF).
Sobre este ponto, a LREF trata o tema da novação de forma diversa do que é regulado pelo Código Civil. Isso porque este prevê que a novação tem como efeito a extinção das obrigações acessórias e garantias da dívida (art. 364, Código Civil), enquanto aquele estabelece que a novação ocorre “sem prejuízo das garantias” (art. 59, LREF), razão pela qual a doutrina majoritária[3] denomina sui generis a novação operada pela aprovação do plano de recuperação judicial.
A fim de mitigar a insegurança jurídica sobre a novação não implicar automaticamente, por força de lei, na supressão das garantias fidejussórias, os planos de recuperação judicial passaram a estabelecer cláusula supressória de tais garantias.
Frente a este cenário e diante de recentes decisões do STJ conforme os precedentes da 3ª Turma do STJ, REsp 1.532.943/MT e da 2ª Turma do STJ ao julgar o REsp nº 1.794.209/SP, e com base nos parâmetros de validade e eficácia ensinados por Pontes de Miranda, é que pretendemos trazer importantes reflexões sobre o tratamento jurídico aplicável à cláusula de supressão de garantia fidejussória e se ela pode ser invalidada pelo Juízo da Recuperação, no âmbito da sua competência para exercer o controle de legalidade.
Segundo Pontes de Miranda, a análise do negócio jurídico deve ser compreendida segundo três planos: o da existência, o da validade e o da eficácia.
No plano da existência, Pontes de Miranda elucida que “[o]s fatos a que a regra jurídica se refere são ditar o dado fático, o suporte fático, da regra jurídica (...) Para que se dê a incidência da regra jurídica, é preciso que todo o suporte fático necessário exista[4]”. Ocorre que, embora o negócio jurídico exista, este poderá estar maculado e é no plano da validade que se verificará as causas de invalidação, qual seja, nulidade ou anulabilidade, que nas palavras de Pontes de Miranda “[t]rata-se de distinção interna ao plano da validade, baseada em maior ou menor gravidade do défice[5]”.
Por último, na concepção de Pontes de Miranda, o plano da eficácia está mais atrelado ao da existência do que da validade, sendo que “toda eficácia é a eficácia de fato jurídico[6]”. Assim, tornando-se o fato em fato jurídico, em regra produzirá seus efeitos, tornando-se eficaz.
Em relação à clausula de supressão de garantias, não há dúvidas de sua existência, uma vez que prevista no plano e posta em votação pela AGC. No entanto, sobre os planos da validade e da eficácia é que propomos uma análise mais atenta das decisões da 2ª e da 3ª Turma, em comento.
No julgamento do Resp 1.532.943/MT, a 3ª Turma do STJ reconheceu a validade da cláusula de exoneração de garantias por votação unanime, com destaque para as palavras do ministro Paulo de Tarso que concluiu:
“(...) não consigo vislumbrar ilegalidade no ato praticado pela assembleia em que os credores, com garantia real, abriram mão dessa garantia, sendo que todos os credores presentes concordaram com isso (...) Com efeito, não vislumbro ilegalidade nessa deliberação feita pela assembleia geral”.
A 2ª Turma do STJ ao julgar o REsp nº 1.794.209/SP, no aspecto da validade, também entendeu, por unanimidade, ser plenamente válida a previsão de cláusula de exoneração dos garantidores. Neste ponto, concordaram os ministros que “não há que se falar em nulidade dessas cláusulas visto não esbarrar em nenhuma das hipóteses estabelecidas no artigo 166 do Código Civil de nulidade do negócio jurídico”. Neste sentido, dá-se destaque aos votos dos ministros Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Belizze.
Ministro Vilas Boa Coeva:
“(...) A princípio, não há falar em nulidade dessas cláusulas, visto não esbarrar em nenhuma das hipóteses estabelecidas no artigo 166 do Código Civil de nulidade do negócio jurídico (...) as cláusulas também não encontram óbice nas situações de anulabilidade do negócio jurídico elencadas nos artigos 138 e ss. do Código Civil. Trata-se, assim, de negócio jurídico válido, sendo necessário perquirir acerca de sua eficácia, especialmente no que concerne aos credores ausentes e aos presentes na assembleia que não votaram ou votaram contrariamente à aprovação do plano
Ministro Aurélio Belizze:
“(...) Conforme acima registrado, tanto no acórdão recorrido, assim como no voto do relator, reconheceu-se a validade e a eficácia da cláusula supressiva em exame, ao menos, àqueles titulares que votaram favoravelmente, fundada na natureza disponível do direito em comento. Compreende-se, digo eu, que, como direito disponível, mostra-se absolutamente possível (e, portanto, não contrário ao ordenamento jurídico) o estabelecimento, no plano de recuperação judicial, de cláusula que estabelece a supressão das garantias reais e fidejussórias”
Nota-se, portanto, que tanto a 3ª quanto a 2ª Turma do STJ reconheceram a validade da cláusula de exoneração de garantias, razão pela qual nos parece claro que tal cláusula não se sujeita ao controle de legalidade do Juízo da Recuperação Judicial, não sendo possível, portanto, a declaração de nulidade ex officio.
A divergência existente entre as turmas encontra-se quanto ao plano da eficácia da cláusula de supressão de garantias, sendo aí que se encontram as misleading headlines, já que, diferente do que divulgado, não há entendimento pacificado quanto a este ponto.
Para a 3ª Turma, a condição para a cláusula ser eficaz é a aprovação da Assembleia Geral de Credores, e dessa forma, a todos oponível, em respeito ao princípio majoritário e democrático da AGC. O entendimento ementado foi no sentido de que:
“Inadequado, pois, restringir a supressão das garantias reais e fidejussórias, tal como previsto no plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia geral, somente aos credores que tenham votado favoravelmente nesse sentido, conferindo tratamento diferenciado aos demais credores da mesma classe, em manifesta contrariedade à deliberação majoritária” (Recurso Especial nº 1.532.943/MT).
De outro turno, para a 2 ª Turma, é necessária a manifestação expressa de vontade individual dos credores, e, portanto, somente esses credores estarão sujeitos aos seus efeitos, não sendo eficaz, portanto, no tocante aos credores que não se fizeram presentes quando da Assembleia Geral de Credores, abstiveram-se de votar ou se posicionaram contra tal disposição, restando o entendimento assim ementado:
“A cláusula que estende a novação aos coobrigados é legítima e oponível apenas aos credores que aprovaram o plano de recuperação sem nenhuma ressalva, não sendo eficaz em relação aos credores ausentes da assembleia geral, aos que abstiveram-se de votar ou se posicionaram contra tal disposição.” (Recurso especial nº. 1.794.209/SP).
A divergência quanto à eficácia da cláusula de supressão de garantia não se limita apenas entre a 2ª e a 3ª Turma, mas também nas próprias turmas em si, uma vez que ambos os julgamentos não foram unânimes neste ponto.
Desta forma, podemos concluir que, segundo os entendimentos do STJ, extraídos dos precedentes analisados neste artigo, a cláusula de exoneração de garantias fidejussórias é (i) existente – enquanto prevista no plano –, (ii) válida – por não contrariar o ordenamento jurídico – e (iii) eficaz – se atendida determinada condição, que para a 3ª Turma é a aprovação pela AGC, e para a 2ª Turma, a manifestação expressa e individual da vontade de cada respectivo credor.
Assim, apesar de ainda pairar divergência interpretativa sobre a polêmica cláusula em relação à condição para a produção dos seus efeitos, não há qualquer razão para que os devedores não possam livremente negociar com os seus credores a sua inserção nos Planos de Recuperação Judicial sob o receio de serem expurgadas ex officio pelo Juízo da Recuperação, ao contrário do que tentam induzir as recentes manchetes.
[1] Por misleading headlines devem ser compreendidas as manchetes que não refletem com exatidão as notícias a que se referem. Como por exemplo: “Plano de Recuperação não pode suprimir garantias sem autorização do credor, decide Segunda Seção”. Superior Tribunal de Justiça, 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/17052021-Plano-de-recuperacao-nao-pode-suprimir-garantias-sem-autorizacao-do-credor--decide-Segunda-Secao.aspx. Acesso em 9.12.2021.
[2] Parecer do senador Ramez Tabet: “Em lugar da atual concordata – um regime ao qual poucas empresas conseguem sobreviver e que tem como desfecho mais freqüente a decretação da falência – criam-se as opções da recuperação extrajudicial e da recuperação judicial. No primeiro caso, propomos um modelo em que não seja compulsória a participação de todos os credores e em que apenas os mais relevantes sejam chamados a renegociar seus créditos, de forma a permitir a reestruturação da empresa sem comprometimento das características, prazos e valores dos créditos pertencentes aos demais credores. Na recuperação judicial, um processo mais formal e realizado sob controle da Justiça, os credores devem formar maioria em torno de um plano de recuperação”.
[3] “BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2008, p. 183-184”; “CAMPINHO, Sergio. Falência e recuperação de empresa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.148.”; “COELHO, Fabio Ulhôa. Comentários a Nova Lei de Falência e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2009, p.168.” e “MANDEL, Júlio Kahane. Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas anotada. São Paulo, Saraiva, 2005, p.102.”
[4] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de Tratado de Direito Privado, volume 30, Rio de Janeiro, Editora Borsoi, p. 72.
[5] Nulo é ato que entrou, embora nulamente, no mundo jurídico. Também entra, e menos débil, no mundo jurídico o suporte fático do negócio jurídico anulável. Nulo e anulável existem. No plano da existência (entrada no mundo jurídico), não há como distingui-los. Toda distinção só se pode fazer no plano da validade.” MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de Tratado de Direito Privado, volume 30, Rio de Janeiro, Editora Borsi, 200, p. 63-64.
[6] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de Tratado de Direito Privado, volume 30, Rio de Janeiro, Editora Borsi, 200, p. 64.