Revisão da vida toda

Revisão da Vida Toda: decisão do STF é tão absurda assim?

Longe de ser estapafúrdio, julgamento pôs fim a uma fantasia que foi até longe demais

revisão da vida toda
Sessão plenária do STF que discutiu a tese da Revisão da Vida Toda / Crédito: Gustavo Moreno/SCO/STF

Esses foram alguns dos protestos que recolhi – aleatoriamente, em perfis de expoentes da advocacia previdenciária nacional, apenas a título ilustrativo – em minhas redes sociais após a decisão prolatada pelo STF no bojo das ADI’s 2110 e 2111: “o Direito acabou de ser golpeado como nunca antes visto nesse país”; “os interesses econômicos controlam o Judiciário”; “o que é isso Brasil?”; “indignada com a decisão”; “quem mais está se sentindo assim [figura de um palhaço] depois da decisão de hoje do STF?”; “triste dia na história da justiça de nosso país”.

Diante de tamanha ira, a pergunta que fica – e à qual pretendo responder no presente ensaio – é se o raciocínio aí acolhido pelo STF é mesmo tão despropositado juridicamente como se quer fazer parecer. Desde logo, apresento o meu veredicto, que na sequência procurarei justificar: não!

Em primeiro lugar, é importante pontuar que, conquanto o entendimento até tenha sido abraçado pelo STJ e mesmo, em um primeiro momento, pelo STF (por uma maioria mínima de 6 a 5, cabe destacar), a tese nunca alcançou aceitação tranquila na jurisdição previdenciária especializada.

Embora seja inviável recolher dados estatísticos a respeito, arrisco-me a dizer, a partir do contato constante que mantenho junto a colegas que exercem aquela jurisdição, que ela sequer alcançava expressão majoritária em termos estritamente numéricos (não por acaso, era também chamada de “revisão do fim do mundo”, à boca pequena), conquanto possa ter se tornado dominante a partir do julgamento proferido pelo STJ pela sistemática dos recursos repetitivos, com as instâncias inferiores se curvando a este, decorrência natural do sistema de precedentes.

De todo modo, em meu diagnóstico e de outros colegas, o STJ havia ali claramente extrapolado as raias de seu papel de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, visto que, ao negar aplicação plena a um dispositivo legal, o estivesse tacitamente tomando por inconstitucional – além de, no mesmo passo, contrariar o disposto na Súmula Vinculante 10 do STF (“Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”). E foi isso o que, afinal, decidiu o STF, tanto no primeiro julgamento, quando declarou inconstitucionalidade, quanto no segundo, quando afirmou a constitucionalidade.

Convém observar, ademais, que, antes de alcançar seu esplendor, a tese foi veiculada por longo período sem encontrar ressonância significativa na jurisprudência, pelo que parecia por muito tempo destinada a fracassar antes mesmo de alcançar repercussão relevante. Quando finalmente caminhou em frente, o fez por juízos historicamente mais afeitos ao voluntarismo judicial dito “pró-segurado”, pelo que ainda aí não prometia o sucesso que depois acabou por lograr. E mesmo quando, após ser agasalhada pelo STJ, chegou ao STF, o clima ainda era de forte desconfiança quanto à expectativa de ser ali afiançada, o que só se desfez à medida em que foram sendo proferidos os votos no plenário virtual.

Acredito que este breve relato histórico seja importante para mostrar que a Revisão da Vida Toda nunca foi uma tese “imaculada”, imune a críticas, francamente acolhida pelos especialistas – desde que desligados de argumentos econômicos –, tendo sido, afinal, contrariada pelo STF em decisão despida de argumentos jurídicos robustos – que é a história que agora se pretende contar, ao menos segundo o extrato das redes sociais que acima compilei. Definitivamente, não é o caso.

Para a análise estritamente jurídica do julgado, vou me limitar, para não tornar a leitura cansativa, a dois pontos centrais sustentados pelos cultores da tese.

O primeiro é o de que a lei nova (Lei 9.876/99) teria “jogado no lixo” as contribuições recolhidas pelos segurados no período anterior à competência “julho de 1994”, o que seria flagrantemente injusto dentro de um sistema contributivo, configurando mesmo um confisco. Ocorre que não foi isso o que aconteceu, ou seja, estamos aí diante de uma falácia, pura e simplesmente.

Em apertada síntese, a Lei 9.876/99, no bojo d’uma ampla reforma previdenciária (que englobou inclusive a Emenda Constitucional 20 de 1998), modificou o formato de cálculo do denominado “salário-de-benefício padrão” (utilizado para a maior parte dos benefícios do RGPS). Até então, o critério consistia na apuração da média dos últimos 36 salários-de-contribuição (art. 202 da CRFB, na redação original), apurados num período não superior a 48 meses (art. 29 da Lei 8.213/91, na redação original).

Isto significava que, à altura do advento da Lei 9.876/99 (26 de novembro de 1999), aqueles segurados que ainda não houvessem atingido os requisitos para obtenção de aposentadoria não conseguiriam buscar salários-de-contribuição mais longínquos do que os 48 meses anteriores, é dizer, de novembro de 1995 para trás (ou seja, todos ali sabiam que seriam descartadas, para fins de cálculo do salário-de-benefício, as contribuições vertidas nas fases iniciais de suas carreiras, é dizer, ninguém foi surpreendido por isso).

No novo critério, trazido pela Lei 9.876/99 (redação atual do art. 29 da Lei 8.213/91, conquanto tacitamente derrogada pela EC 103/2019), apurar-se-iam os salários-de-contribuição de todo o histórico contributivo do segurado, descartando-se, porém, os 20% piores (“depuração”), traçando-se então a média, que resultaria no salário-de-benefício padrão.

Para aqueles que já estavam filiados ao RGPS, porém, a Lei 9.876/99 estabeleceu como limite para regresso a competência “julho de 1994” (art. 3º), data de entrada em vigor do Plano Real, o qual trouxe certa estabilidade monetária a um país até então assolado pela inflação galopante. A regra, portanto, era simples: para quem se filiou após julho de 1994, conta-se desde a primeira contribuição até a DER – data de entrada do requerimento (em regra); para quem se filiou antes, computa-se desde julho de 1994 em diante.

Em suma, pelo critério até então vigente, o segurado já sabia, em novembro de 1999, que não poderia aproveitar os salários-de-contribuição precedentes a novembro de 1995, pelo que NENHUM prejuízo trouxe a lei nova ao não contemplar os anteriores a julho de 1994 (pelo contrário, resgatou 16 meses contributivos, de julho de 1994 a outubro de 1995).

O segundo ponto é o de que haveria uma regra permanente (que determina a consideração de todo o histórico contributivo) – consagrada no art. 29 da Lei 8.213/91 – e outra provisória (que coloca a “trava” em julho de 1994 e, por conseguinte, permite o aproveitamento de apenas parte de seu histórico) – descrita no art. 3º da Lei n. 9.876/99. Novamente – e pedindo vênia – não vemos aqui nenhum sentido na argumentação.

A nosso sentir, há uma só regra, ainda que veiculada por mais de um dispositivo, que consiste na seguinte: “será considerado todo o histórico contributivo posterior a julho de 1994”. O que acontece é que não faz sentido, do ponto de vista de lógica enunciativa, aludir à “trava” para quem só se filiou ao sistema após julho de 1994, já que não ostenta mesmo contribuições anteriores. Ou seja, aquela que é chamada de “regra permanente” apenas não recorre à “trava” em julho de 1994 porque ela contempla pessoas que se filiaram depois – caso contrário, pecaria por redundância. Outra não foi a solução afinal encontrada pela EC 103/2019, em seu art. 26 (grifei): “(…) será utilizada a média aritmética simples dos salários de contribuição (…), atualizados monetariamente, correspondentes a 100% do período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência”. Percebe-se aí se tratar de uma única regra, antes lançada em mais de um dispositivo (o que não deveria causar espanto a nenhum jurista experiente), agora condensada em apenas um.

De nossa parte, e concluindo o presente artigo, sempre consideramos a tese da Revisão da Vida Toda despida de fundamentos jurídicos sólidos, pautada em argumentos enganosos, pelo que nos causou mesmo espanto ter ido tão longe quanto foi. Assim, pensamos que o último julgamento do STF, longe de ser estapafúrdio, pôs, sim, finalmente cobro a uma fantasia que foi até longe demais.

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