Uma atuação no fio da navalha da legalidade contra o bolsonarismo extremista. Este é um possível resumo da polêmica da vez: a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes no Inquérito 4874, o chamado “inquérito das milícias digitais”. Seu alvo foram oito empresários bolsonaristas, alguns deles já investigados há longa data, suspeitos de integrar uma organização criminosa que – diz a Polícia Federal – arquiteta para contribuir com a derrubada violenta dos poderes constitucionais no Brasil.
1) A reportagem e os requerimentos da PF
Antes de tudo, é preciso atenção aos fatos. A decisão que atingiu os empresários de vocação golpista foi motivada por dois pedidos distintos da Polícia Federal, formulados em dois ofícios (nrs. 3097828 e 3099277) apresentados ao ministro relator em 19 de agosto de 2022, além de notícias-crime apresentadas por parlamentares e organizações da sociedade civil. A PF, que é quem propriamente investiga a existência da organização criminosa da qual alguns empresários seriam o “núcleo financeiro”, requereu a busca e apreensão de aparelhos celulares e quebra de sigilo telemático de oito empresários que participavam do grupo de WhatsApp “Empresários e Política”. O grupo veio à tona a partir de uma reportagem do portal Metrópoles, publicada em 17 de agosto de 2022, intitulada “Empresários bolsonaristas defendem golpe de Estado caso Lula seja eleito”.
As conversas vazadas são obviamente reprováveis. Vão do lamento às oportunidades de golpe perdidas (“o golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo”), passam por prognósticos duvidosos (“o STF será responsável por uma guerra civil no Brasil”), expressam interpretações alinhadas aos lamúrios bolsonaristas (“[o STF] é o mais forte partido político de esquerda”) e desejos de acontecimentos que implicariam inequívoca ruptura constitucional caso se concretizassem, como a substituição da Justiça Eleitoral por uma “comissão eleitoral” para tocar a “votação em papel”.
Há também dissonâncias cognitivas próprias das pessoas cuja dieta informacional é restrita aos grupos de mensageria da extrema direita, com sua lógica torta: “O Bolsonaro é o esteio da verdade… Mas não condeno quem usa [a mentira]”. São, sem dúvida, brasileiros sem pudor democrático, cujos interesses materiais alinham-se mais aos interesses políticos de Bolsonaro do que à preservação do Estado de Direito. Cremos que nem eles negariam isso.
A fundamentação dos dois ofícios da PF nos requerimentos a Moraes é idêntica. Nelas, a autoridade policial narra que tomou conhecimento de “uma orquestração de pessoas socioeconomicamente ativas” no sentido de “praticar crimes, dentre eles os tipos previstos nos arts. 288 e 359-L do Código Penal”, isto é, associação criminosa (288) e tentativa, “com emprego de violência ou grave ameaça”, de “abolir o Estado Democrático de Direito” (359-L). Os membros ativos do grupo, alegou a PF, demonstravam “aderência voluntária” ao modus operandi da organização de pessoas investigada no inquérito das milícias digitais (Inq. 4874). Eles estariam imbuídos da “nítida intenção de ação de cooptação de pessoas”, por terem dinheiro para fazê-lo. Os investigadores apontaram que o fato de os interlocutores da confraria golpista terem demonstrado preocupação em não incidir abertamente em tipos penais demonstraria justamente a consciência da ilicitude de suas ações.
Os alvos das medidas não foram todos os membros do grupo, que aliás não eram todos empresários – havia, por exemplo, um juiz de direito entre eles. Foram atingidas pelas determinações de Moraes oito pessoas que emitiram opiniões de alguma forma associadas a apoio a ditaduras, golpes de Estado ou desejo de interferência juridicamente indevida (compra de votos) ou duvidosa (apoio material a atos de campanha, como o 7 de setembro) no processo eleitoral. Alguns desses atingidos falaram mais, e outros menos.
Em termos mais específicos, a PF requereu a quebra de sigilo telemático junto a Apple e Google, para ter acesso a todos os arquivos cujos investigados tenham armazenado em seus serviços de nuvem (cloud), sem especificação de escopo ou limite temporal. Com relação a operadoras de telefonia, requereu a identificação de todos os terminais telefônicos cadastrados em nome dos acusados. Requereu também o afastamento de sigilo de dados ao WhatsApp, para acesso a informações não protegidas pela criptografia (metadados).
Em reação aos pedidos da Polícia Federal, o juiz-instrutor Airton Vieira, do gabinete de Moraes, preparou um longo relatório, de 130 páginas, que também embasou a decisão tomada pelo ministro. Esse relatório colacionou elementos antigos, vindos desde 2019, basicamente atestando a existência do “gabinete do ódio” e a suspeita de haver um braço empresarial para sua manutenção e suporte financeiro. Os elementos apontados incluíram desde depoimentos de antigos apoiadores de Bolsonaro, como Alexandre Frota, Joice Hasselmann e Sergio Moro, até organogramas com a rede de seguidores recíprocos entre políticos e influenciadores bolsonaristas. Prints de mensagens trocadas em outro grupo de empresários apoiadores do governo, o “Brasil 200”, também aparecem aos montes.
Nesses materiais antigos já havia aparecido nomes de alguns empresários do grupo ora desbaratado, ao lado de diversos outros. Dos oito agora atingidos, apenas dois já eram propriamente investigados por suspeitas de financiamento a atividades antidemocráticas anteriores: Luciano Hang, da Havan, e Afrânio Barreira Filho, do Coco Bambu. Agora, dizem a PF e o ministro Moraes, a suspeita é que todos os atingidos integrem um “núcleo financeiro” que bancaria empreitadas antidemocráticas, especialmente com vistas ao 7 de setembro de 2022.
2) A decisão
Embora a PF tenha requerido apenas a busca e apreensão de celulares, a quebra de sigilo telemático e o afastamento do sigilo do WhatsApp dos oito empresários, a decisão de Moraes foi além. Não está claro se o ministro agiu de ofício ou se estaria deferindo requerimentos formulados nas muitas notícias-crime que recebeu – uma das medidas determinadas, o bloqueio de conta corrente dos atingidos, partiu do senador Randolfe Rodrigues. O fato é que, neste momento de investigação, a decisão foi além do que foi requerido pela autoridade investigativa, que é a Polícia Federal, para possivelmente atender ao requerimento de adversários políticos de Bolsonaro, dando óbvia margem para polêmica e contestação.
Ao fim e ao cabo, a decisão deferiu tudo o que fora requerido pela PF (busca e apreensão não apenas dos celulares, quebra de sigilo telemático sem limite temporal, e de sigilo de WhatsApp), e um tanto mais: ordenou a apreensão de mídias físicas, como HDs e pen drives; impôs bloqueio a todas as contas bancárias das pessoas físicas, como requerido pelo senador Randolfe, sem deixar claro se estava deferindo o requerimento específico do parlamentar ou agindo de ofício; ordenou o afastamento do sigilo bancário não apenas das pessoas físicas, mas também de algumas pessoas jurídicas ligadas a alguns deles; e determinou o bloqueio de todos os perfis dos empresários em redes sociais.
3) Inquérito das fake news à parte
No relatório que instruiu a decisão de Moraes, o juiz-instrutor de seu gabinete, Airton Vieira, esforçou-se para demonstrar a intensa relação do tema ora em questão com o objeto de apuração de outro inquérito, o chamado “inquérito das fake news” (Inq 4871). A intensa polêmica sobre aquela investigação pode projetar-se sobre esta, portanto. Contudo, propomos dissociar o debate sobre os méritos e deméritos desta decisão das polêmicas, já conhecidas, sobre o Inquérito 4871. Os argumentos a favor e contra o inquérito já são notórios a esta altura. Por ora, para todos os fins práticos, prevalece o entendimento do STF de que a forma de abertura do procedimento e de escolha do ministro relator, bem como a amplitude de seu escopo, não maculam a investigação.
Essa não foi a primeira nem será a última decisão polêmica do Supremo – como acontece com qualquer tribunal no mundo com sua envergadura. A partir dela, sem prejuízo da continuidade dos debates públicos e acadêmicos, a validade do inquérito e autoridade das decisões nele tomadas tornam-se, como fatos institucionais, simples pressupostos, até que eventualmente aquela decisão seja revertida (até aqui, nada indica que será). Não é nossa intenção reabrir este debate seminal.
A questão a ser enfrentada neste momento é subsequente: pressupondo a validade do inquérito, na linha do que já decidiu o STF, como a decisão ora em questão se sustenta à luz da lei e dos seus próprios fundamentos?
Acreditamos que os argumentos favoráveis a ela, veiculados na grande imprensa, tem insistido em aspectos formais que são sim necessários à tomada de medidas investigatórias, mas insuficientes para justificá-la em sua inteireza. Assim, afirmações como: “o inquérito existe”; ou, “medidas investigativas podem ser tomadas em inquéritos”; ou, ainda, “busca e apreensão e quebra de sigilo telemático são medidas previstas em lei” – essas afirmações, em si, são todas verdadeiras, mas não respondem em definitivo à questão sobre a justificativa da decisão. Pois a questão vai além: é preciso olhar para os fundamentos da decisão e avaliar se, à luz das exigências legais, eles sustentam as medidas ordenadas.
4) Afinal, a decisão se sustenta?
4.1) Sustentar uma decisão é justificar a decisão
Decisões judiciais que deferem medidas cautelares no contexto de investigações criminais devem ser extremamente criteriosas, na medida em que geram elevada restrição a direitos fundamentais de indivíduos em momento preliminar, quando sequer são alvo de acusação formal do Estado contra si. Tal acusação, é bom que se recorde, pode ao final nunca vir a ser formulada, caso o resultado das medidas cautelares, por exemplo, venha a afastar as suspeitas prévias que pairavam sobre o investigado.
Apesar do alerta quanto à necessidade de fundamentação rigorosa no contexto de decisões judiciais dessa natureza, observa-se, na prática da justiça criminal, certa ligeireza no deferimento de medidas cautelares altamente invasivas, com notória inversão da lógica que as deveria orientar – da exceção à regra; da ultima ratio à primazia. Essa ligeireza, é bom que se diga, pode até situar a presente decisão de Moraes dentro do espírito de seu tempo, mas não pode de forma alguma ser tomada, em sentido próprio, como justificação da decisão. Justificar é apontar fundamentos normativos pelos quais uma decisão é correta. Dizer “há outras decisões igualmente rasteiras” não passa da uma resposta cínica à demanda de justificação: quem justifica uma decisão dessa forma está, na verdade, esquivando-se do dever de fundamentar, por fingir não entender o que a demanda por justificação propriamente exige.
Portanto, não será suficiente, para que se avalie a qualidade da fundamentação da decisão do ministro Alexandre de Moraes, que se promova uma comparação dos seus argumentos com aqueles presentes em outras decisões judiciais que deferiram medidas cautelares similares em circunstâncias igualmente duvidosas. Isso apenas serve para jogar luzes sobre uma realidade mais ampla de deterioração do respeito aos direitos e às garantias fundamentais de investigados. Tal erosão, é bom que se ressalte, decorre tanto da vagueza semântica das regras processuais penais que autorizam tais medidas, como também pela suspensão monocrática da implementação do chamado “juiz de garantias” (ADIns 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305), uma liminar guardada a sete chaves nas gavetas do ministro Luiz Fux.
A justificativa, em sentido próprio, para a decisão só pode ser extraída da disciplina legal das medidas cautelares, que começa por regras gerais para a matéria, e que valem igualmente para busca e apreensão, quebra de sigilo bancário e fiscal, quebra de sigilo telemático e de dados, bem como para sequestro, arresto e hipoteca legal de bens. Todas elas exigem que haja materialidade e indícios de autoria do crime (fumus comissi delicti), bem como que haja perigo na demora (periculum in mora) ou perigo na liberdade (periculum libertatis), uma vez que todas, sem exceção, são instrumentais, ou seja, acautelam algo útil a uma eventual ação penal.
Esse algo pode ser desde (i) preservação de elementos de prova (cautelares probatórias), passando pela (ii) preservação de patrimônio para eventual reparação de dano, para perdimento de bens provenientes de crime e para confisco alargado (cautelares reais) e, finalmente, (iii) preservação do adequado andamento do processo (cautelares pessoais). De qualquer modo, é fundamental à autorização de qualquer delas, sem exceção, que haja indícios suficientes da ocorrência de um crime (materialidade), sem os quais o deferimento de alguma das cautelares seria, de plano, ilegal.
Portanto, a análise promovida neste breve artigo irá também enfrentar esse ponto central, qual seja, se, afinal, havia elementos (quais?) que indicassem a ocorrência de crimes (quais?). Apesar disso, essa análise será feita apenas ao final, em uma inversão lógica proposital cujo intuito é explicitar a seguinte provocação: ainda que, por hipótese, houvesse suficientes elementos indicativos da totalidade dos crimes listados na decisão, as medidas cautelares deferidas estariam justificadas ou não? Houve excesso e ilegalidade ou não?
4.2) A busca e apreensão pressupõe um crime em relação a qual nem todos os atingidos têm igual status na investigação
Afinal, quando uma busca e apreensão é juridicamente válida? Os elementos fáticos indicados na decisão do ministro Moraes, somados aos argumentos jurídicos apresentados, sustentam a medida deferida? De início, recorda-se que a busca e apreensão é uma medida cautelar probatória. Probatória, porque visa à produção de elementos de prova do crime investigado; cautelar, porque a demora nessa produção poderia permitir o “perecimento” da prova (por exemplo, a sua destruição pelo investigado). O Código de Processo Penal exige, para o deferimento da medida, “fundadas razões” (CPP, art. 240).
Quando se analisa o trecho da decisão que justifica especificamente a necessidade desta medida, observa-se que o ministro Moraes é vago em seus argumentos, sustentando, em especial, que a ordem judicial estaria motivada em “fundadas razões que, alicerçadas em indícios de autoria e materialidade criminosas, sinalizam a necessidade da medida para colher elementos de prova relacionados à prática de infrações penais” (p. 13). Mas justamente a expressão “fundadas razões” não é claramente preenchida com indicações de fatos ou esclarecimentos semânticos: há mera citação de um parágrafo contido no pedido formulado pela autoridade policial, como se o requerimento fosse a própria justificativa para seu deferimento.
A decisão indica, quando muito, uma suposição de fundo que a justifica; algo como “são bolsonaristas radicais, são empresários que dispõem de recursos pessoais para financiar ações políticas, sendo que algumas dessas razões podem ser ilegais e prejudiciais à democracia e nós estamos em um período sensível, com a campanha eleitoral em curso e a proximidade do Sete de Setembro”. Mas nem mesmo essa suposição é apreciada individualmente para cada um dos afetados. A decisão atingiu de modo uniforme pessoas que estão em posições diferentes mesmo à luz desse pressuposto, pois apenas dois dos oito afetados já eram investigados por financiamento de atos antidemocráticos.
Considerando a amplitude das pessoas atingidas, portanto, a decisão nos parece frágil em seus fundamentos. Isso não significa que a busca e apreensão em hipótese alguma poderia ter sido deferida, mas apenas que as razões apontadas para tanto não a justificam suficientemente em face de todos os atingidos.
4.3) A quebra de sigilo telemático na extensão determinada pela decisão é temporalmente excessiva
Por sua vez, seriam as medidas de quebra de sigilo de dados telemáticos, na extensão ordenada, juridicamente válidas? Novamente, tem-se mais uma medida cautelar de natureza probatória, cujos requisitos legais – ao menos segundo a decisão ora examinada – constariam da Lei 9.296/96 (Lei das Interceptações Telefônicas), que vem a regulamentar o inciso XII do art. 5º, da Constituição Federal. Nesse sentido, afirmou-se que tal lei seria aplicável “à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática, cessando assim a discussão sobre a possibilidade ou não deste meio de prova e, consequentemente, sobre sua licitude”. Conquanto o argumento acima apresentado seja objeto de dissenso, iremos partir dessa mesma premissa, da qual partiu o relator.
Pois bem, o artigo 2 da Lei 9.296/96, o mais relevante para esta análise, elenca situações nas quais a quebra seria vedada. A contrario sensu, pode-se dizer que o seu deferimento, portanto, somente é válido para investigar (i) crimes punidos com pena de reclusão; desde que (ii) haja indícios de autoria e materialidade e (iii) se os elementos de prova que se pretende produzir não puderem ser obtidos por meio alternativo menos invasivo (princípio da proporcionalidade). A lei pede que se busque, portanto, o mínimo necessário, à luz da invasividade da medida.
A decisão, porém, parece ter buscado o máximo: nem o requerimento da autoridade policial, nem a decisão de Moraes impuseram limites temporais à quebra ordenada, o que significa que os dados buscados poderão vir de um passado remoto, sem nexo com o contexto específico que justifica a medida (a saber, os preparativos para atos potencialmente golpistas no 7 de setembro). Isso indica ou (i) uma ausência de efetiva clareza sobre o que se pretende produzir com a cautelar probatória, o que denota risco de fishing expedition; e/ou (ii) uma intenção velada de se investigar fatos para além dos efetivamente declarados na decisão.
Partindo do pressuposto de que todo o histórico de dados armazenados em serviços de nuvem potencialmente alcança toda a vida digital daqueles sujeitos, e considerando que os fatos investigados têm uma circunscrição razoavelmente limitada no tempo – quando muito, remontariam aos primeiros indícios de aproximação entre esses empresários e as investidas antidemocráticas de Jair Bolsonaro –, o que justificaria a quebra de sigilo para todo o passado, inclusive para períodos que podem ser anteriores ao próprio mandato presidencial?
Sem prejuízo à pendente discussão sobre a disciplina da proteção de dados em matéria de investigação criminal, essa desproporcionalidade parece-nos agredir o âmbito de proteção mínimo do direito fundamental à autodeterminação informativa e à proteção de dados pessoais (Constituição de 1988, art. 5º, inc. LXXIX).
4.4) Qual medida cautelar seria o bloqueio das contas bancárias de pessoas físicas dos empresários?
Segundo Moraes, “se torna necessária, adequado e urgente o bloqueio das contas bancárias dos investigados, diante da possibilidade de utilização de recursos para o financiamento de atos ilícitos e antidemocráticos, com objetivo de interromper a lesão ou ameaça a direito (art. 5o, XXXV, Constituição Federal), conforme anteriormente ressaltado” (p. 21). Especificamente nas conversas de WhatsApp, falou-se apenas em duas despesas: (i) pagamento de bônus a funcionários em caso de vitória (o que, além de ter sido rechaçado no próprio grupo de mensagens pelo risco de caracterizar compra de votos, sequer seria feito com as contas de pessoa física, que foram as bloqueadas); e (ii) compra de bandeirinhas do Brasil para distribuir no 7 de setembro.
Bloqueios de contas de pessoas físicas constituem, em princípio, medida cautelar real ou patrimonial (CPP, art. 125 ss). Diferentemente das anteriores, não pretendem produzir elementos de prova, mas acautelar a efetividade do possível resultado de um processo criminal. De forma simplificada e em linhas gerais, há dois tipos de situações nos quais bloqueios de bens e valores são cabíveis já em sede de investigação. Primeiro, quando se suspeita que esses recursos sejam provenientes de crime: um funcionário público de salário modesto que tenha milhões de dólares inexplicáveis em um trust em um paraíso fiscal provavelmente terá essa conta bloqueada em uma investigação sobre corrupção. Segundo, quando, mesmo não havendo suspeita de origem ilícita dos valores, há indícios de autoria e prova de materialidade de crimes cujas reparações e penas terão alguma dimensão patrimonial. Nesse último caso, o bloqueio é a forma de garantir que as indenizações e multas poderão ser pagas, e que o investigado não esconderá recursos com o fim de frustrar esses pagamentos.
No caso dos empresários bolsonaristas, a medida seguramente não se tratou de sequestro (CPP, art. 125 e ss.) pois a decisão não teceu nenhuma vírgula sobre a eventual proveniência ilícita dos valores. Poderia, residualmente, se tratar de arresto (CPP, art. 136 e ss.), na medida em que este incide sobre bens lícitos, mas, da mesma forma, não há nenhuma relação entre o bloqueio e uma pretensão de reparação de dano. Finalmente, e ignorando a discussão sobre a não recepção do instituto pela Constituição de 1988, tampouco há qualquer menção ao sequestro universal, previsto no Decreto 3.240/41 (Era Vargas), que incidiria sobre bens lícitos nos casos de crimes que geram prejuízo à Fazenda Pública, prejuízo esse que tampouco se cogita neste caso.
Procurando fundamento em outros lugares do Código de Processo Penal, mais especificamente na disciplina das medidas cautelares pessoais diversas da prisão (CPP, art. 319), concluiremos que o bloqueio das contas pessoais dos empresários não pode ser considerado como tal, eis que (i) não incide sobre o sujeito (cautelar pessoal), mas sobre seu patrimônio; e (ii) não está enumerado no rol taxativo do art. 319 do CPP.
Entre as medidas cautelares pessoais, a única medida que ao menos remotamente pareceria ter relação com o bloqueio das contas pessoais seria a do inciso VI do art. 319: “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”. Talvez tenha sido essa a lógica da decisão, pois da sua leitura se extrai a ideia de que o bloqueio serviria ou (i) para cessar um crime em curso (prima facie, os supostos delitos associativos, como o de ORCRIM), ou (ii) para prevenir que um suposto crime venha a ocorrer (prima facie, o financiamento de atos antidemocráticos violentos).
Mas, ainda assim, embora Moraes tenha claramente recorrido ao argumento de que ela se justificaria “diante da possibilidade de utilização de recursos para o financiamento de atos ilícitos e antidemocráticos” (p. 20), o bloqueio de contas bancárias pessoais não pode ser considerado “suspensão do exercício de atividade econômica ou financeira”, a não ser pelo alargamento desmedido dessa última expressão. A atividade econômica de um empresário é sua empresa, e não sua conta corrente de pessoa física.
Por tudo isso, só sobra a conclusão de que a medida cautelar aparentemente imposta pela decisão – algo como “bloqueio de valores lícitos de pessoa física, para evitar que ela talvez os use em parte para fins ilícitos” – simplesmente não existe nem no Código de Processo Penal, muito menos na legislação extravagante.
5) A PGR como espectadora: questões ligadas ao sistema acusatório
Para além dos problemas específicos de cada medida cautelar deferida, há um problema macro em curso, quanto à possível violação do sistema acusatório, na medida em que (i) houve suposto “drible” à Procuradoria-Geral da República e (ii) o ministro Moraes autorizou medidas cautelares em escopo mais amplo do que o requerido pela autoridade policial, porque, ao que tudo indica, (iii) havia um requerimento adicional de medidas apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues, claro opositor político do presidente Jair Bolsonaro, com base no qual se supõe que Moraes teria “ampliado” as medidas cautelares deferidas.
A decisão não deixa claro que a ordem para o bloqueio de contas bancárias tenha sido um deferimento do pedido do senador, que é mencionado apenas no relatório da decisão ao lado de muitos outros documentos apresentados por parlamentares e entidades da sociedade civil. Mas como o pedido não constava nos ofícios da PF, e sim no requerimento dele, devemos cogitar essa possibilidade.
Iniciemos com a questão da PGR. No plano deontológico, a questão é isenta de dúvidas: os elementos de prova em questão servem à formação da convicção do órgão acusatório, titular da ação penal. Ouvi-lo sobre a necessidade e utilidade da medida é um dever inerente à lógica acusatória. Somente do ponto de vista pragmático é possível compreender o drible à PGR, que, segundo afirma, soube das medidas somente após o deferimento da ordem pelo ministro, embora antes da realização das diligências.
Diante da impressionante “apatia” da PGR quanto a questões criminais que envolvam o presidente Bolsonaro e seus aliados, que levou a ministra Rosa Weber a censurar a posição de “espectador” à qual o órgão tem se relegado, bem como da notícia de que Augusto Aras supostamente trocava mensagens com membros do grupo, é possível compreender por que a PGR não foi ouvida antes da decisão ser tomada. Moraes, pode-se dizer, estaria guardando o mínimo sigilo necessário ao êxito das diligências ordenadas, pois, frisamos, Aras era confidente dos investigados.
Esse cuidado não seria estranho à lógica da investigação criminal, que permite o trabalho temporariamente sigiloso a bem do êxito de certas diligências. Do ponto de vista do devido processo legal, sem dúvida seria melhor que não precisasse ser assim. Mas, por outro lado, quem ignora o específico fator Aras, e o esgotamento que sua gestão trouxe ao desenho institucional da PGR e à própria credibilidade do órgão, estará deixando de lado uma consideração da realidade que se impõe.
Mas mesmo feita essa concessão pragmática e episódica em relação ao contorno à PGR pelas fundadas desconfianças que sua figura suscita, sobram-nos incômodos quanto a (ii) a autorização de medidas cautelares em escopo mais amplo do que o requerido pela autoridade policial (apreensão de mídias físicas); e (iii) o possível atendimento a requerimento apresentado pelo senador Randolfe para o bloqueio de contas bancárias.
A PF, recordemos, apontou necessidade apenas de busca e apreensão dos aparelhos e quebra de sigilo telemático, possivelmente para recuperar conversas antigas armazenadas em cópias de segurança em nuvens. Se a própria autoridade encarregada da investigação não vê necessidade dos dados armazenados em pen drives e HDs, com que fundamento poderia o Judiciário determinar a medida adicional, altamente invasiva aos dados pessoais dos acusados? Se havia razão para menoscabar a autoridade de Augusto Aras, o mesmo não se poderia dizer sobre o requerimento da Polícia Federal, que não padece da mesma desconfiança de incúria que o PGR faz por merecer.
Semelhante ressalva vale para o bloqueio das contas, sugerido, entre uma miríade de outras providências, pelo senador Randolfe Rodrigues. Se, na esteira do relatório preparado pelo próprio gabinete de Moraes, as grandes suspeitas sobre os empresários decorrem do que já se apurou em outros inquéritos, inclusive no inquérito das fake news, que razão haveria para prestigiar o requerimento mais intrusivo de Randolfe em detrimento do pedido mais comedido da PF, que tem, sem sombra de dúvidas, melhores informações sobre as investigações em curso do que o combativo senador? Mais: gozaria Randolfe de legitimidade ativa para requerer a decretação de medidas cautelares, mormente daquelas que não o foram pela autoridade policial? Difícil concluir positivamente.
Em meio a tantos questionamentos, o que sobra é a convicção de que o ministro Alexandre de Moraes assumiu protagonismo em excesso nessas determinações, inclusive em potencial prejuízo do importante trabalho que vem realizando nos inquéritos em curso no STF. Do ponto de vista jurídico, esses excessos podem redundar no não referendo da decisão, muito embora pareça não haver clima para tanto no Supremo neste momento em particular. E, do ponto de vista político, especialmente considerando o deferimento de medida que constou apenas no questionável requerimento de um notório adversário político de Bolsonaro, Moraes dá combustível para quem aponta sua parcialidade em prejuízo dos interesses políticos do presidente da República. Nunca é demais lembrar que essa alegação, de parcialidade política do tribunal, é tão central à campanha de deslegitimação das eleições quanto as notícias falsas sobre urnas eletrônicas. Seria, por isso, prudente não dar margem para ela.
6) Um passo atrás: afinal, qual a relevância jurídica das mensagens de WhatsApp reveladas, em si mesmas?
A forma jurídica das providências adotadas pelo ministro Alexandre de Moraes – decisão monocrática determinando medidas de natureza cautelar em investigação criminal – leva a análise imediatamente para o campo processual, mas há uma importante questão substantiva que merece nossa atenção. O teor daquelas mensagens revela, afinal, algum crime? Além daquilo que já sabíamos – que seus autores são empresários, que têm dinheiro, que são ferrenhos apoiadores do presidente, e que estariam fechados com ele inclusive na hipótese de que ele levasse a cabo medidas concretamente golpistas –, que há de novo naqueles diálogos? Qual a relevância penal dos diálogos revelados, por si só?
A decisão menciona, en passant, diversos crimes possíveis: abolição violenta do Estado democrático de Direito (CP, art. 3259-L), tentativa de interrupção do processo eleitoral (id., art. 359-N) e associação criminosa (id., art. 288). O grupo, pelo teor das mensagens, revelaria a possível existência de uma “orquestração de pessoas socioeconomicamente ativas” tendentes a cometer esses delitos. Além desses, poderíamos cogitar outros crimes cometidos apenas através da palavra proferida, como a incitação ao crime (id., art. 286).
Sobre isso, algo deve estar claro desde logo: as mensagens trocadas não são, em si mesmas, condutas que executam ou consumam nenhum desses delitos. A bem da verdade, não nos parece haver qualquer conduta criminosa configurada apenas pelas mensagens. Elas não se enquadram nos tipos penais que tutelam o Estado democrático de Direito, nem são, em sentido jurídico-penal, incitação.
Entendemos, porém, que elas podem sim possuir relevo jurídico-penal, quando muito, como indícios de uma associação estável de alguns empresários no financiamento de atos antidemocráticos, com o intuito de interferência sobre os poderes constituídos, amplamente, ou no processo eleitoral, mais especificamente. Essa hipótese deve ser considerada porque a decisão faz menção à “aderência voluntária” dos atuais investigados ao modus operandi da associação criminosa investigada no inquérito das milícias digitais (Inq. 4874). Dada a existência prévia desta investigação, as mensagens podem ser indícios suficientes para justificar alguma diligência de apuração criminal quanto a delitos como associação criminosa (CP, art. 288) ou financiamento de organização criminosa (Lei 12.850/13, art. 2º).
Mas não qualquer diligência: elas certamente não são suficientes para justificar o deferimento precoce, cumulativo e excessivo de tantas medidas cautelares altamente invasivas, que não foram requeridas em conjunto, insistimos, nem mesmo pela Polícia Federal. Talvez bastasse a apreensão dos celulares apenas dos empresários já anteriormente investigados, com quebra de sigilo telemático para recuperar mensagens antigas dentro de um prazo preciso e temporalmente relevante para a investigação. Para os demais, talvez não mais do que a tomada de seus depoimentos, ao lado de outras medidas menos invasivas.
Porém, é bom que se recorde que os delitos “associativos” (união estável de pessoas determinadas para o cometimento de crimes indeterminados) são uma exceção, estando no limiar da legitimidade constitucional. Isso porque representam clara antecipação da tutela penal, subvertendo a regra de que, em princípio, não são puníveis atos preparatórios de crimes futuros, mas apenas um crime cuja execução já começou. Portanto, seria fundamental que a investigação tivesse prosseguido um pouco mais com recurso a medidas menos invasivas, justamente para eventualmente tornar mais concreta a imputação e, assim, ter mais elementos fáticos para subsidiar futuras intervenções cautelares mais cirúrgicas.
7) A questão que resta: é possível resistir ao autoritarismo observando estritamente o devido processo penal?
Todas as considerações já feitas mostram que temos importantes ressalvas jurídicas à decisão do ministro Alexandre de Moraes, embora aceitemos que algumas medidas de investigação contra os empresários fossem sim cabíveis. Mas nós reconhecemos que há uma objeção que se pode fazer a todas as nossas ressalvas. Podemos chamá-la de uma objeção realista: “Moraes está lutando não para aplicar o tradicional processo penal, mas sim para defender a democracia de uma ameaça inédita comandada pelo próprio presidente da República. As formas jurídicas tradicionais devem ceder diante dessa ameaça maior”.
Não ignoramos que as ameaças ao Estado de Direito no Brasil atual são reais, nem menosprezamos a importância da atuação firme do STF como anteparo à vocação autoritária de Bolsonaro. Mas essa objeção, tal qual formulada, produz um falso dilema: ela quer nos convencer de que a defesa da democracia exige violação ao devido processo legal, e que temos de sacrificar o último para preservar a primeira. Não aceitamos essa contraposição em bases tão amplas, pois acreditamos que uma oposição entre devido processo e defesa da democracia, embora seja possível num ou noutro caso, está longe de ser necessária. E, mais importante, esse dilema não nos parece existir neste caso específico.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que há muitas maneiras de conter autoritarismos em absoluta conformidade com a Constituição e com o devido processo legal. As medidas tomadas pelo STF em defesa das prerrogativas de prefeitos e governadores na gestão da pandemia, por exemplo, são medidas antiautoritárias, pois evitaram a concentração de poderes excessivos nas mãos do Executivo e resguardaram o espaço de ação política dos entes subnacionais. O mesmo vale para decisões judiciais que puseram freio a medidas de perseguição e intimidação a jornalistas, acadêmicos e organizações da sociedade civil, ou que impuseram transparência a atos do governo. Decisões tomadas em sede de controle de constitucionalidade para frear decretos ilegais, ou para barrar medidas provisórias inconstitucionais, são todas medidas de contenção ao autoritarismo do Poder Executivo. Em suma, o papel do Judiciário no combate ao autoritarismo não se limita aos inquéritos relatados pelo ministro Alexandre de Moraes; ele é cumprido pelo tribunal como um todo. A bem da verdade, por todo o Poder Judiciário.
Em segundo lugar, mesmo uma análise realista deve levar em consideração não apenas as vantagens imaginadas de uma atuação no limiar da legalidade contra o bolsonarismo extremista, mas também os custos reputacionais de caminhar nesse fio da navalha. Se há uma lição que deveríamos ter aprendido a esta altura do pós-Lava Jato é que violações de direitos em investigações e processos criminais minam a credibilidade do sistema de justiça, pois as autoridades responsáveis por essas violações são permanentemente confrontados com a contradição de agirem em desobediência à sua própria fonte de autoridade – a lei. Isso produz degradação real da autoridade de uma instituição, e tal degradação não é impedida apenas por repetirmos o truísmo de que a democracia precisa ser defendida. Todas as vezes, em nossa história mais recente ou mais remota, que pretendemos salvar a democracia através de violações (que se supunham) pontuais e calculadas das leis e da Constituição, o caldo fervente entornou e acabamos todos queimados.
Finalmente, em terceiro lugar, e fazendo a máxima das concessões pragmáticas: se, ainda assim, imaginarmos que há situações trágicas, verdadeiras escolhas de Sofia da democracia, no qual a violação pontual e minimalista a determinadas regras constitucionais e processuais é necessária para impedir um golpe de Estado provável e iminente, restará ainda o ônus de justificar se este caso, diante do qual estamos, é precisamente o tal caso extremo que nos impõe essa opção trágica. Ou seja, mesmo a escolha realista tomada na situação extrema exige justificação para que se aponte a sua pertinência aos fatos concretos. Mas alguém acreditará que o caso do grupo de WhatsApp dos empresários bolsonaristas chega a esse patamar? Que estamos, agora, mais protegidos de um golpe porque um punhado de contas bancárias foram bloqueadas, e uns tantos HDs e pen-drives apreendidos, e umas contas de redes sociais tiradas do ar? Mais protegidos do que estaríamos diante de uma outra resposta também firme, mas menos espalhafatosa, mais direcionada e menos antagônica aos cânones do devido processo legal?
A aporia “ou devido processo, ou democracia” exige a demonstração de um tirocínio prático que, salvo melhor juízo, parece-nos ter faltado neste caso. Talvez nós, público que observa e torce pela sobrevivência da democracia, estejamos encontrando conforto excessivo em medidas que nos iludem quanto à sua imprescindibilidade para a defesa do Estado de Direito.