Corte IDH

Quilombolas de Alcântara cobram mais ação e diálogo após promessas feitas pelo governo

Diante dos juízes da Corte IDH, AGU reconheceu violações às comunidades e prometeu medidas reparatórias imediatas

Quilombolas
O advogado-geral da União, Jorge Messias. Crédito: AGU/Divulgação

Três meses depois de o governo brasileiro se comprometer a adotar medidas imediatas para efetivar a titulação de terras de 152 comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, o que se tem por ora são incertezas.

Em audiência pública realizada em 27 de abril na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), o advogado-geral da União, Jorge Messias, reconheceu formalmente que o Estado violou direitos fundamentais das comunidades e anunciou a adoção de medidas instantâneas de reparação.

Ao pedir desculpas formais aos quilombolas, o AGU prometeu compensação financeira às famílias afetadas, a “titulação progressiva” das terras em até dois anos e a regulamentação de um protocolo de consultas prévias, livres e informadas às comunidades.

Messias afirmou, diante dos juízes, que um grupo de trabalho interministerial havia sido constituído um dia antes da audiência pública, por ordem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com o objetivo de debater e apresentar caminhos para a titulação territorial.

À Corte, o próprio governo estipulou prazo de um ano para concluir as deliberações do grupo e encaminhar uma proposta concreta para cumprir o prometido, a contar do dia da audiência pública – até 27 de abril de 2024, portanto. Mas, com 25% do tempo já passados, o GT ainda não saiu do papel.

O principal entrave para o começo das reuniões é a discordância sobre a proporção de cadeiras do GT. Em decreto assinado pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), o governo dispôs que 13 vagas serão ocupadas por integrantes do governo e apenas 4 por representantes quilombolas.

Para Neta Serejo, coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Maba), a disposição do grupo é desigual e não foi debatida previamente com os quilombolas, que foram pegos de surpresa com o anúncio às vésperas da audiência pública na Corte IDH.

“Foi um GT criado sem que a gente tivesse tomado nenhum conhecimento prévio. Foi tudo criado verticalmente, com pouca representação do território. Para entrarmos nesse tipo de discussão, antes precisamos equilibrar melhor essa conta”, afirma.

Neta diz que, até agora, sente que o pedido de desculpas do governo não se converteu em ação. “Não nos sentimos contemplados com o pedido de desculpas, porque, até agora, nada mudou de concreto. Não ficou claro para gente o que eles estão sugerindo, como o GT vai funcionar. No fim, isso acaba trazendo mais confusão para a cabeça das pessoas nas comunidades. O que nós queremos é ser ouvidos antes, queremos diálogo. Não queremos só que nos avisem depois que as decisões são tomadas”.

Embora critique a falta de diálogo, a coordenadora do Mabe ressalta que a iminente sentença da Corte IDH e o inédito reconhecimento de violações por parte do governo sinaliza uma “luz no fim do túnel”.

“Estamos nos apegando a essa luz, para que não se perca essa oportunidade. Esperamos que, independentemente das promessas do governo, a Corte emita uma sentença que assegure as comunidades no território. Nós estamos cansados. São muitos anos de luta, de incerteza se poderemos permanecer no território onde nascemos e crescemos. Muita coisa que passou não se apaga, mas acreditamos em um futuro melhor, sempre com diálogo”, projeta Neta.

Representantes das comunidades remanescentes de quilombos no processo da Corte IDH também criticaram as “incertezas” contidas nas promessas do governo, em comunicado divulgado logo após a audiência pública. Assinam o documento as organizações Justiça Global, Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (Momtra), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (Atequila).

“As respostas apresentadas pelo governo, pela primeira vez perante as representantes na audiência são atravessadas por enormes dúvidas que impedem o efetivo anúncio de vitória. O Estado Brasileiro fez, diante daquela Corte, afirmativas que sinalizam uma mudança de postura, fruto, isto é certo, da luta de mais de quatro décadas travada por centenas de comunidades quilombolas em Alcântara. Estes anúncios, no entanto, foram cercados de zonas fundamentais de incerteza quanto ao seu efetivo conteúdo, com expressões pouco precisas, palavras vagas, que mantém o futuro de Alcântara em um campo de grande insegurança institucional”, avaliaram as organizações.

Segundo o advogado Eduardo Baker, coordenador do programa de justiça internacional da Justiça Global, o principal problema está na sugestão de “titulação progressiva” feita pelo Estado.

“Juridicamente, não existe a figura da ‘titulação progressiva’. O título em relação ao território é um título único. Não dá para você titular parte de um território e depois titular mais um pouco, porque já há um laudo antropológico que delimita o território como algo único. Não sabemos como isso será feito pelo governo, mas certamente seria uma inovação”, comenta.

De acordo com Baker, as entidades que representam os quilombolas na Corte IDH foram excluídas dos trabalhos do GT, embora a participação delas tenha sido requisitada pelas próprias comunidades.

“O Estado brasileiro considera que as entidades não são legítimas para participar do GT. É uma postura um pouco confusa quando se afirma que há abertura para diálogo. O que pensamos é que, no mínimo, o desenho desse grupo de trabalho teria que ter sido conversado antes com as organizações peticionárias”, argumenta o advogado.

Ele destaca que a desigualdade no número de representantes no grupo de debates pode gerar prejuízos aos quilombolas. “Serão 13 pessoas engravatadas diante de quatro pessoas das comunidades de Alcântara, sem nenhuma assessoria técnica jurídica ao lado. É evidente que esse formato de deliberação não é adequado. Não quer dizer que as pessoas de Alcântara não conheçam a situação, não saibam dos seus direitos, mas você ão pode criar um cenário assim, de disparidade numérica e técnica. Não é um formato condizente com a garantia dos direitos humanos e da participação”.

Eduardo Baker afirma que, diante da exclusão das entidades do GT, encaminharam na última segunda-feira (24/7) uma sugestão à AGU para que se chegue a um meio-termo: que os representantes possam ao menos participar das reuniões como assessoria técnica. Até o momento, o pedido não foi respondido.

O que diz a AGU

Procurada pelo JOTA, a Advocacia-Geral da União afirmou que o diálogo com as comunidades “tem sido uma premissa durante todo esse processo” e que mantém reuniões regulares com os representantes quilombolas.

Segundo a AGU, a disparidade no número de cadeiras do GT não gera “qualquer prejuízo para os trabalhos, visto que suas atividades são pautadas pelos princípios da participação social direta e do controle social nas políticas públicas para a população quilombola, por meio de consulta prévia, livre e informada, como aponta a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, e da transversalidade de gênero e de raça na construção do entendimento para a resolução de conflitos e a construção de políticas públicas destinadas à população quilombola”.

A Advocacia-Geral afirma que aguarda a indicação dos nomes dos representantes das comunidades para dar início aos trabalhos do GT, mas que não há “qualquer previsão de atraso” para conclusão do relatório.

A AGU diz ainda que se comprometeu a aplicar R$ 30 milhões em compensação financeira às comunidades quilombolas de Alcântara e que, desse valor, R$ 5 milhões já foram disponibilizados como crédito orçamentário ao Ministério da Igualdade Racial (MIR) para aplicação ainda neste ano de 2023. O governo não detalhou de que forma esse montante será aplicado.

Por fim, a AGU salientou que o formato da “titulação progressiva” será debatido entre os representantes do GT e apresentada no relatório final. “Como manifestado na audiência da CDIH, a AGU entende que uma solução equilibrada, que atenda, a um só tempo, os direitos dos quilombolas e a continuidade do Programa Espacial Brasileiro é possível, e será alcançada o mais brevemente mediante um diálogo direto e respeitoso entre governo e as comunidades de Alcântara”, declarou o órgão governamental.

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