Erick Gimenes

Textos trazem a cobertura das decisões e audiências da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)

Direitos Humanos

O Estado brasileiro reconheceu formalmente à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)</a> que violou direitos fundamentais de quilombolas ao retirá-los de seu território indevidamente para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão.
A admissão foi feita pelo advogado-geral da União, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/jorge-messias">Jorge Messias</a>, durante audiência pública realizada em Santiago, no Chile, entre a quarta (26/4) e a quinta-feira (27/4). Em nome do país, ele pediu desculpas formais às comunidades quilombolas e prometeu repará-las.
“Reconhecemos que o Estado brasileiro é responsável internacionalmente por violar o direito de propriedade, neste caso, porque não cumpriu seu dever de promover a demarcação e titulação do território quilombola de Alcântara até o presente momento. Também é responsável por violar o direito à proteção judicial, neste caso, em razão da demora processual e da ineficiência das nossas instâncias judiciais e administrativas para permitir às comunidades quilombolas de Alcântara o exercício do direito à propriedade coletiva das terras por elas ocupadas”, disse o AGU.
A base de lançamento espacial começou a ser construída em 1980, como projeto da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ditadura-militar">ditadura militar</a>. Para efetivar a ideia, declarou-se a “utilidade pública” de uma área de 52 mil hectares de terras habitadas por descendentes de escravizados. Na ocasião, 312 famílias foram desapropriadas e reassentadas em sete agrovilas, construídas por militares.
Segundo os quilombolas, as moradias concedidas não são compatíveis com o modo tradicional de vida que eles levam: são cercadas por terras improdutivas e distantes 12 quilômetros do mar, o que inviabiliza a agricultura e a pesca, as principais atividades produtivas para sobrevivência das comunidades.
“É muito difícil a gente aceitar o desconhecido, porque a gente não sabia onde eles nos colocariam e de que forma a gente ia viver naquele local. Tivemos muita resistência, muita luta, muita reunião. O que eles ofereciam para nós não era satisfatório para ninguém, porque vivíamos no mundo da maior riqueza natural que Deus criou para todos. Nós vivíamos do extrativismo, a fonte de renda das mulheres era o babaçu; os homens trabalhavam na roça e com a pesca. Isso foi arrancado de nós, arbitrariamente. Eu não consigo nem falar o que aconteceu, porque foi muito grave, muito triste para nós. Ver o nosso povo chorando, desesperado, sem dormir, pensando que ia ser tirado do seu lugar onde nasceram para ir para um lugar que ninguém queria”, declarou à Corte a quilombola Maria Luzia Silva Diniz, moradora da agrovila Marudá.
Ela disse que a mudança promovida pelo Estado fez famílias passarem fome. “Eles arrancaram nós do nosso lugar, nos tiraram e trouxeram para as agrovilas, que eles chamam de área de segurança da aeronáutica. Lá nós fomos passar fome, nós passamos fome. Ganhamos o título de miseráveis. Isso eu não aceito, porque dói, dói demais. Fomos para um lugar onde a gente não tinha nada. Até hoje a gente vive com sacrifício nesse lugar.”
Inaldo Faustino Diniz, outro depoente, afirmou aos juízes que, como muitos quilombolas, deixou de exercer a pesca depois da mudança. Segundo ele, as praias estão distantes da agrovila e o acesso é burocraticamente controlado pela Aeronáutica.
“Pescador não pesca com documento, pescador precisa de rancho. Nós não temos rancho nas praias. A alguns pescadores que ainda vão das agrovilas, eu pergunto: ‘Rapaz, o que você vai fazer com o documento no bolso? Só vai molhar’. Não são todas as vezes que as pessoas passam. Como são militares, eles trocam de turno. Muitas vezes não passa. E o dia que ele não passa, fica com fome.”
Inaldo disse que passou a comprar peixes de outras comunidades para ter o que comer. “O dia que não tem peixe nessas comunidades [que vendem os peixes para ele], as pessoas não comem. Quando tem proibição ou um aviso de lançamento de foguete, não chega peixe. Tudo o que tem ali é insuficiente. Se você for fazer um mapeamento das terras, de 312 de famílias que foram para ali, acho que não tem 100 pessoas trabalhando. Porque as terras não oferecem condições, estão desgastadas”.
O ex-pescador fez um apelo ao Estado: “São 43 anos que essas famílias empobreceram. Elas já eram pobres e ficaram mais pobres. Não sei onde está o progresso do Estado brasileiro quando você faz com que famílias fiquem pobres. Eu acho que o Estado deve um reparo, um fundo para essas famílias, para reparar desde 1980. O Estado, para ser o Estado, precisa fazer essa reparação”.
De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), além dos problemas com as moradias em si, o processo de desapropriação foi irregular, porque não houve a devida consulta prévia para a retirada das famílias. Além disso, até hoje não foi concedida a titulação coletiva aos quilombolas que permaneceram no território, o que os impede de usufruir de suas terras pacificamente.
O antropólogo quilombola Davi Pereira Júnior destrinchou as estruturas das agrovilas aos juízes da Corte e apontou que a disposição das casas são, por si só, um problema. 
“As agrovilas, na década de 80, já se configuram um problema. Elas foram pensadas para não ter reprodução para famílias, em uma interpretação antropológica. Elas não têm áreas para novas famílias. Se, por exemplo, os filhos de duas pessoas contraírem matrimônio, eles não têm onde construir casa. Temos, então, uma impossibilidade de reprodução social”.
Para o antropólogo, as agrovilas são, acima de tudo, um projeto racista. “O Estado escolheu o racismo como forma de mediar a relação entre eles e as comunidades. As comunidades entendem a importância do desenvolvimento, mas esse modo de desenvolvimento não pode ser mediado pelo racismo. Elas querem que o Estado brasileiro discuta formas de compensação econômica, afinal de contas as comunidades têm levado só o ônus do projeto espacial. O Estado tem se recusado a discutir compensação econômica de forma coletiva, não individual. Isso evidencia como essa relação está envolta no racismo institucional.”
Em defesa da base em Alcântara, o engenheiro Carlos Alberto Gurgel também falou aos juízes da Corte. Ele argumentou que, do ponto de vista operacional, a localização do centro de lançamentos é a “melhor do mundo” e que a instalação na região promove progresso.
“No momento em que o centro atrai modelos de negócio, atrai uma circulação de pessoas, é quase que natural que o próprio Estado comece iniciativas no sentido de providenciar coisas fundamentais, como escolas, hospitais, transporte. O centro de lançamento, por ser uma atividade complexa e que exige recursos humanos de todos os níveis, promove convivência benéfica, porque acaba trazendo para a população local um conhecimento, uma vontade de empreender e oportunidade de emprego que são poucas as atividades econômicas que têm um apelo tão interessante e fundamental”, fundamentou.
<h3>Alegações finais</h3>
O advogado quilombola Danilo Serejo, representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, suplicou que o Estado devolva o território às famílias e interrompa as ameaças à cultura quilombola. Ele pediu que a Corte IDH ordene prontamente a titulação coletiva das terras pertencentes à população tradicional.
“Há 40 anos, as comunidades têm seu direito ao futuro criminosamente roubado pelo Estado. Elas não possuem o direito de planejar as suas vidas ou de assumir o protagonismo sobre seus destinos. O Estado não rompeu com o projeto da ditadura, o qual não sofreu qualquer interrupção nos governos seguintes. A decisão do Estado em remover compulsoriamente as comunidades revela o caráter desumanizante e racista do programa aeroespacial brasileiro. O deslocamento forçado consiste na violação contínua dos direitos humanos e só cessa quando terminar o deslocamento forçado. Ou seja, quando ocorre o retorno voluntário, seguro e digno das pessoas deslocadas internamente para suas casas ou local de residência habitual”, falou o representante.  
Em seguida, o advogado-geral da União, Jorge Messias, reforçou o pedido de desculpas pela falta de “recursos eficazes e adequados” para a titulação e prometeu ações imediatas do governo para reparar as comunidades. 
Segundo ele, o presidente da República, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lula">Luiz Inácio Lula da Silva</a>, determinou que se realize a titulação progressiva do território quilombola em até dois anos e a criação de um grupo de trabalho para regulamentar o protocolo de consultas prévias às comunidades remanescentes de quilombo.
Messias também garantiu que o Estado indenizará as vítimas financeiramente, realizará uma cerimônia oficial de pedido de desculpas dentro de quatro meses e incluirá a admissão de culpa nas páginas oficiais do governo e em todos os processos judicias e administrativos a respeito.
“Como consequência dessa violação, e ciente da natureza própria de que se revestem as medidas de reparação por violações ao direito internacional, em nome do Estado brasileiro manifesto nosso mais sincero e formal pedido de desculpas à senhora Maria Luzia, ao senhor Inaldo Faustino e aos demais membros das comunidades quilombolas de Alcântara”, afirmou o advogado-geral da União.

Quilombolas Alcântara

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JOTA

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