A recente divulgação que a unidade suíça do banco HSBC deliberadamente auxiliou a ocultação e a dissimulação de aproximadamente US$ 120 bilhões em investimentos por intermédio de 30 mil contas bancárias coloca em evidência, para o Direito Penal, a importância do fenômeno do whistleblowing.
O whistleblower – ou, simplesmente, denunciante ou informante - é aquele que, ao tomar conhecimento de uma irregularidade ou de um crime concretizado no âmbito de sua atividade profissional, "toca o apito", ou seja, comunica a ocorrência às autoridades competentes, como a polícia ou o Ministério Público, embora não tenha nenhuma obrigação legal nesse sentido.
No caso do HSBC suíço, quem "tocou o apito" e entregou uma imensidão de dados bancários de diversas pessoas físicas e jurídicas em situação aparentemente criminosa foi o cidadão franco italiano Hervé Falciani, funcionário da área de informática do HSBC de Genebra. Falciani é uma figura controvertida. A Suíça o acusa de agir em interesse próprio e na busca de lucro, argumentando que ele extraiu dados bancários ilegalmente para tentar vendê-los posteriormente a instituições financeiras libanesas. Outros, contudo, consideram Falciani um herói inspirado por sentimentos nobres e altruístas. Seja como for, ao denunciar o esquema existente no HSBC de Genebra, Hervé Falciani gerou investigações criminais relacionadas a lavagem de dinheiro e a sonegação fiscal na Inglaterra, Espanha, Itália, Bélgica e na Grécia.
O Brasil poderá, em breve, compor essa lista. Segundo noticiado pela imprensa, o HSBC abrigou cerca de US$ 7 bilhões através de 5.549 contas secretas pertencentes a cidadãos e empresas brasileiras. Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a existência de recursos no exterior pode consistir em crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n.º 9.613/1998), se o dinheiro ocultado ou dissimulado provém de uma infração penal ou delito de evasão de divisas (art. 22 da Lei n.º 7.492/1986) ou se os recursos mantidos no estrangeiro, embora lícitos, não tiverem sido declarados ao Banco Central do Brasil. Também é possível cogitar sonegação fiscal (art. 1º da Lei n.º 8.137/1990) se esses valores não tiverem sido registrados pelas pessoas físicas e jurídicas na declaração de imposto de renda.
A postura de Hervé Falciani frente ao HSBC faz com que pensemos o instituto do whistleblowing sob a perspectiva penal. Para o Direito Penal, o whistleblowing representa, ao mesmo tempo, uma ferramenta de prevenção e um mecanismo de descobrimento de comportamentos criminosos vinculados, principalmente, ao ambiente empresarial, como fraudes em licitações, corrupção, crimes contra o sistema financeiro nacional, contra o consumidor, contra o meio ambiente etc.
A prevenção ocorre em virtude da comunicação, pelo informante, de um crime antes mesmo dele ocorrer ou se consumar, isto é, antes da efetiva lesão ao bem jurídico. É o caso, por exemplo, do funcionário de uma indústria de cosméticos que denuncia às autoridades competentes a utilização de uma matéria-prima tóxica existente em determinado produto, como um batom ou um esmalte para unhas, que está na iminência de ser lançado no mercado para consumo público.
Por outro lado, mesmo depois de praticado o delito, o informante confere eficiência à investigação e ao descobrimento adequado dos fatos, indicando elementos ou fornecendo documentos que conduzam à responsabilidade penal de alguém. Assim, prestigia-se a administração da justiça. O caso do HSBC de Genebra insere-se claramente nessa segunda hipótese.
Em ambas as hipóteses existe interesse público na revelação feita pelo whistleblower. Por essa razão, alguns países, com destaque para os Estados Unidos, têm incentivado a comunicação de atividades supostamente criminosas praticadas dentro das empresas pelos mais variados instrumentos jurídicos. O reforço dos deveres de denúncia e a cominação de sanções pelo descumprimento, a estabilidade laboral do denunciante contra represálias - dever de readmissão e de indenização - e até mesmo a concessão de recompensas representam algumas formas concretas de fomento ao whistleblowing que podem ser encontradas atualmente na legislação norte-americana.
Em contrapartida, critica-se a possibilidade de proliferação, no contexto empresarial, de um deletério e disseminado denuncismo, de subversão do instituto para fins exclusivamente particulares e a formulação de falsas denúncias visando o recebimento de recompensas.
No Brasil, é possível detectar, conquanto superficialmente, a institucionalização do whistleblowing no artigo 7º, VIII, da denominada Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/2013), ao prescrever que, na aplicação das sanções administrativas serão levados em consideração, entre outros critérios, a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica. Afora isso, ao contrário do sistema norte-americano, o Brasil não possui marco legal para o whistleblowing. Essa situação naturalmente acarreta enorme insegurança jurídica, pois o informante está sujeito, ao menos em tese, aos crimes de divulgação de segredo (art. 153 do Código Penal) e de violação de segredo profissional (art. 154 do Código Penal), além, obviamente, da possibilidade, nada remota, de sofrer uma ação civil de natureza indenizatória.
Com a intenção de sanar alguns desses problemas foi proposto o Projeto de Lei n.º 1701/2011, em trâmite na Câmara dos Deputados, visando instituir um "Programa Federal de Recompensa e Combate à Corrupção", por meio do qual o informante que contribui para a elucidação de crime contra a Administração Pública, bem como para a recuperação de valores e bens públicos desviados, recebe recompensa pecuniária, correspondente a 10% sobre o total apurado dos valores e bens apreendidos, não podendo a recompensa ultrapassar 100 salários mínimos vigentes à época do pagamento da recompensa ao informante. Não existe previsão para a aprovação do PL n.º 1701/2011. Certamente, todas as críticas estrangeiras serão aqui reproduzidas, abrindo-se a oportunidade para que a comunidade acadêmica e os profissionais das diversas áreas envolvidas sejam ouvidos.
Embora exista aparente semelhança, o whistleblowing não se confunde com a colaboração premiada prevista no art. 4º da Lei de Organizações Criminosas (Lei n.º 12.850/2013). O informante não é autor, coautor ou partícipe do crime, como sucede com o agente colaborador. Ele não tem qualquer vínculo com a atividade criminosa, dela tomando somente conhecimento. Demais disso, o colaborador busca um benefício que repercutirá na sua pena, que pode variar do perdão judicial à substituição da pena de prisão pela pena restritiva de direitos. O informante, a seu turno, não recebe qualquer benefício penal; por não ter tomado parte do crime, não recebe sanção alguma.
Por fim, é importante recordar que o whistleblower sequer tem a obrigação estatutária ou contratual de reportar irregularidades ocorridas dentro da empresa. Vale dizer: o informante não é responsável pelo departamento de controle ou pelo setor de compliance, o que, evidentemente, o torna uma figura singular dentro do sistema de prevenção criminal.
* Rodrigo de Grandis é Procurador da República em São Paulo, professor de Direito Penal da Pós-graduação da GV-Law e mestre em Direito Penal pela USP