Supremo

Uma despedida ao Ministro Moreira Alves

‘Era uma figura lendária, dessas referências de autoridade intelectual que estão cada vez mais raras’

Ministro Moreira Alves
Ministro aposentado do STF Moreira Alves / Crédito: Reprodução/YouTube

Conheci o Ministro Moreira Alves ainda no curso de formação, nas suas aulas de Teoria Geral do Direito Privado, na Universidade de Brasília. Já naquele momento, era uma das grandes referências nacionais no Direito e Ministro de vastíssimo conteúdo jurídico. Era também professor que inspirava os alunos só pela presença e pelo domínio incontestável do direito privado. Era uma figura lendária, dessas referências de autoridade intelectual que estão cada vez mais raras.

Anos mais tarde, tive a honra de fazer parte de sua equipe de assessores no Supremo Tribunal Federal até a sua aposentadoria. Trago, portanto, um sentimento de gratidão pessoal tão profundo e intenso por ter tido essa oportunidade que é difícil externar em palavras.

Fui assessor novo, atuando junto a um gigante, aprendendo dia-a-dia em múltiplas camadas e em variadas dimensões, pressionando-me a ser melhor, a estudar mais e a ser exemplar, de forma a honrar intimamente aquela experiência.

Esse era o tipo de efeito que a presença do Ministro Moreira Alves irradiava. Sua dignidade moral, seu esforço pessoal no trabalho e sua fortaleza jurídica e de consciência eram tão manifestos que constrangia todos ao seu redor a serem melhores. E não demorou muito tempo para perceber que essa projeção também se fazia sentir no próprio plenário do STF.

Grandes homens fazem grandes as instituições. Esse foi o primeiro ensinamento que aprendi. Há uma maneira de ser Ministro no STF. Não se trata de um protocolo ou de uma etiqueta, mas de uma postura. E a postura só é crível se for a representação orgânica e fiel da pessoa. Ela não admite tergiversações já que assim se transforma em mero engodo e vergonha.

O Ministro Moreira Alves foi um grande ministro do STF – talvez o maior de seu tempo – porque era uma pessoa única, cuja ascendência intelectual e moral era quase que fisicamente sentidas. Personalidade aguerrida no plenário, sempre com argumentos de difícil superação, com preocupação com a imagem e institucionalidade do Tribunal, defensor único e intransigente da jurisprudência da Corte. Marcou o seu período porque são nítidas as características do STF durante a sua passagem: O Tribunal Moreira Alves.

Acusado injustamente como retrógrado por alguns, o Ministro Moreira Alves, com sua inteligência jurídica e visão consequencialista, ajudou a edificar o Supremo no período pós-Constituinte e, assim fazendo, tornou-se um dos grandes defensores da própria Constituição de 1988 e de seu arranjo, evitando que fosse tragada pelos ímpetos exageradamente inovadores que, sob a justificativa de interpretá-la, queriam reescrevê-la e, assim, ultrajá-la.

A maneira de ser Ministro, no entanto, não se limita à capacidade técnico-jurídica. Moreira Alves era inigualável porque era sério no exercício das suas atribuições. Compreendia o seu papel. Não dava entrevistas porque sempre entendeu que juiz só fala nos autos, não revolucionava a jurisprudência porque sempre deu valor à segurança jurídica dos precedentes e cultivava respeito pela história do Tribunal.

Foi o elaborador das primeiras regras anti-nepotismo no STF, constantes do Regimento Interno de 1980. Não aceitava pressão política e nem se constrangia com as eventuais críticas midiáticas a seus votos. Era discreto em sua vida privada e reservado em sua vida social. Brigava por suas teses no calor dos debates plenários, mas preocupava-se ao seu jeito com eventuais chateações pessoais que seus colegas de Tribunal poderiam sentir após tais momentos. Embora tivesse sido recordista de permanência no STF, relativizava sua própria importância e dizia, de fato, que não “era Ministro”, mas que “estava Ministro”. Era, na verdade, professor. Esse, o seu grande orgulho.

Com sua maneira de ser Ministro, estabeleceu um padrão, elevando o sarrafo das expectativas com a posição. Fixou também uma maneira de ser do STF, uma maneira de ser de seus acórdãos, de sua linguagem, de sua lógica jurídica, da posição do Tribunal no esquema da separação de poderes. E o Tribunal, assim, alcançou um período de ouro quanto à sua respeitabilidade e autoridade.

Volto agora às minhas lembranças do período no qual tive a maior das minhas experiências. Trabalhar com o Ministro Moreira Alves foi, de fato, estabelecer um padrão muito alto do ponto de vista da conduta pessoal e da capacidade intelectual. Lembro que o Ministro dizia que o único “patrimônio” que o Tribunal trazia era a capacidade de produzir o “temor reverencial”, já que não tinha a sustentação dos votos ou da força como os demais poderes. A reverência e o respeito, de fato, foram marcas sentidas por todos que com ele conviveram. Poucos homens têm essa capacidade de produzir deferência a partir da presença e do comportamento.

Ao mesmo tempo, em que a notícia de sua passagem me toca profundamente, nutro a esperança de que as novas gerações de alunos e juristas, embora não tenham visto esse grande Ministro em ação, ainda possam se alimentar de uma referência desse quilate para orientar as suas trajetórias.

E ao Ministro Moreira Alves, meu querido mestre, beijo-lhe a mão com saudade e agradeço pela oportunidade que me proporcionou.

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