STF

O incontestável sucesso de Moreira Alves no Supremo

‘Visão privilegiada do Supremo transformou Moreira Alves no mais importante ministro de sua geração’

Ministro Moreira Alves
Ministro aposentado do STF Moreira Alves / Crédito: Reprodução/YouTube

No início de 1995, aluno do quarto ano do curso de direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tive de preparar, juntamente com um colega, um seminário sobre alienação fiduciária em garantia, tema que, ainda naquele período, tinha como principal referência doutrinária uma obra publicada em 1973, de autoria de José Carlos Moreira Alves. 

Por coincidência, nessa mesma época, num tradicional evento jurídico que a cada ano reunia em Gramado os acadêmicos de direito gaúchos, foi anunciada a presença do Ministro Moreira Alves como um dos principais palestrantes, sendo o tema de sua exposição exatamente a alienação fiduciária, que por conta de alterações na jurisprudência do STJ voltara à ordem do dia.

Com o livro lido e anotado, subimos a serra, meu colega e eu, para assistirmos à exposição e para tentar, ao final, tirar algumas de nossas dúvidas com o palestrante. Em tempos pré-TV Justiça, os ministros do Supremo eram personagens míticos, distantes, inacessíveis, em especial para estudantes de 20 anos. Assim, somente depois de muita relutância abordamos o Ministro Moreira Alves, questionando-o acerca dos pontos controvertidos – pelo menos para nós – do instituto da alienação fiduciária em garantia.

Nos minutos seguintes, apesar dos nossos temores, Moreira Alves dedicou àqueles dois desconhecidos total atenção, ouviu nossas perguntas, explicou com simpatia e didática os conceitos que nos eram duvidosos e, com enorme gentileza, agradeceu por termos nos dedicado a estudar sua obra. Revelava ali algo que depois se mostrou evidente para mim, que sua verdadeira vocação era a docência, como ele mesmo afirmou em seu depoimento à coleção História Oral do Supremo, da FGV (v. 13).

Quatro anos depois desse breve encontro, eu chegava ao Supremo Tribunal Federal como assessor do Ministro Ilmar Galvão e passei a acompanhar mais de perto a atuação de Moreira Alves, a compreender melhor as razões de sua abnegada dedicação ao Tribunal, a admirar o zelo com que guardava a coerência da jurisprudência da Corte, a me surpreender com sua imensa cultura jurídica, a invejar o rigor lógico de seu raciocínio, a me divertir com sua verve de polemista e a aprender, com ele, o papel constitucional do Supremo, sua importância na concertação dos poderes da República e o impacto de suas decisões, para além dos autos e dos limites do Poder Judiciário.

O professor atencioso que dedicara seu tempo aos curiosos alunos de Gramado se revelou, no novo cenário de convivência, um gigante institucional, que a cada sessão, a cada decisão, reafirmava, de modo natural, sua autoridade. Essa autoridade não decorria da antiguidade no STF – até mesmo porque, na época, a palavra “decano” não era tão frequente no léxico da Corte – ou da erudição, por maior que fosse. Sua autoridade nascia da percepção, introjetada em cada profissional com atuação na Corte – ministros, advogados, servidores, etc. –, de que se estava diante de um defensor intransigente da Constituição, de um observador arguto da dinâmica dos poderes – zelando pela autocontenção do STF, bem como por sua independência e autonomia –, de um julgador atento à sistematicidade do ordenamento jurídico e às repercussões, muitas vezes impensadas, das decisões.

Era comum, nas sessões, ouvir após o voto de um colega a característica frase “mas aí tem um problema”, seguida de uma precisa – e não raro desconcertante – contestação do Ministro Moreira Alves, muitas vezes tachada, pelos demais ministros, de argumentos ad terrorem. O certo, porém, é que muitos de seus vaticínios se concretizaram, afirmando no futuro a pertinência das apreensões do passado.

Essa visão privilegiada do Supremo transformou Moreira Alves no mais importante ministro de sua geração, um dos maiores – ou mesmo o maior – de todos os tempos. Nenhum outro contribuiu tanto para dar ao Tribunal o perfil que hoje tem, sendo especialmente notável sua contribuição no processo de transformação iniciado com a Constituição de 1988 e com a ampliação das vias de controle concentrado de constitucionalidade, como amplamente demonstrado – aliás – na obra que Gilmar Ferreira Mendes dedicou a esse específico tema, Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil, de 2004.

O incontestável sucesso de Moreira Alves no Supremo é espelhado no êxito que teve em sua carreira docente. Formado pela Faculdade Nacional de Direito em 1955, dedicou-se ao estudo do direito romano, área em que obteve seu doutorado em 1961. Nesse mesmo ano, já acumulando experiência em faculdades do Rio de Janeiro, concorreu à cátedra de direito romano na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo, sendo protagonista de um dos mais conhecidos episódios da vida acadêmica franciscana. Logrando o segundo lugar no concurso e tendo sido derrotado pelo filho do antigo catedrático, Moreira Alves foi aclamado vencedor pelos alunos que lotavam o Salão Nobre das Arcadas, que o carregaram nos ombros e despejaram sobre a banca examinadora moedas e marmeladas.

Essa derrota felizmente não afastou José Carlos Moreira Alves do Largo de São Francisco, que o recebeu como catedrático de direito civil em 1968, um dos mais jovens da história. Nos trinta e cinco anos seguintes, manteria ele seu vínculo com a Faculdade, ainda que os compromissos profissionais na capital federal tenham obrigado a transferência de suas atividades acadêmicas para a Universidade de Brasília, onde formou gerações de alunos até sua aposentadoria compulsória.

Aposentado do Supremo e da academia, o Ministro Moreira Alves manteve seu cuidado para com a instituição que servira por quase trinta anos. Não comentava as decisões da Corte, não se dedicou à advocacia perante o STF e até mesmo na área consultiva buscava se afastar do antigo ambiente de trabalho, aceitando somente cuidar, em seus pareceres, de temas de direito privado.

Essa postura pode fazer crer que, nos últimos 20 anos, a importância de Moreira Alves tenha gradualmente diminuído na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o que é um tremendo engano. Continua ele sendo um dos ministros mais citados e a tendência é que assim permaneça por muito tempo. As mais variadas questões seguem sendo examinadas pela Corte a partir de suas reflexões, cuja consistência e inovação são a todos evidentes.

Da última palestra que assisti do já aposentado Ministro Moreira Alves, no Largo de São Francisco, lembro de sua menção à obra de Cícero, registrando que a alegria da velhice consistia em rememorar as glórias de antanho. Assumindo a correção dessas palavras, é possível afirmar que a senectude de José Carlos Moreira Alves foi das mais alegres, porque enormes as glórias de sua vida maiúscula, que honrou a Faculdade de Direito da USP, o Supremo Tribunal Federal e o país como um todo. 

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