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Armas nucleares, direito internacional e o pós-pandemia

O direito de possuir armas nucleares após a pandemia irá mudar?

Crédito: Pixabay

No contínuo especular sobre o amanhã da política e, por consequência, do direito internacional, a questão do regime jurídico das armas nucleares levanta importantes interrogativos. Analistas internacionais de think tanks de todos os continentes ombreiam-se para oferecer o panorama mais acurado sobre a divisão de forças num cenário pós-pandemia.

Elemento comum dos prognósticos é que o mundo será ainda uma constelação iniquamente nuclear.

Neste ensaio enfrento as perspectivas e as tentativas de remodelamento dessa constelação à luz da pandemia e da crescente ameaça de um conflito nuclear.

O direito internacional regulando as armas nucleares é asperamente claro. O Tratado de Não Proliferação de Armas Nuclares (TNP), aceito pela maioria esmagadora da comunidade de Estados, envelhece há meio século petrificando[1] um grande pacto entre as nações: existem aqueles Estados que já possuem e podem possuir armas nucleares e existem todos os outros. Há no tratado obrigações e direitos respectivos. Por óbvio, existem vantagens e desvantagens no acerto. Como observou um protagonista na matéria, o TNP foi “eficaz para ajudar a evitar que um número maior de países viesse a obter armamento atômico e favorece a cooperação para o uso pacífico da energia nuclear”.[2]

Nas Conferências de Revisão do TNP passadas (ocorrem a cada cinco anos), avanços diplomáticos e jurídicos aconteceram. A próxima Conferência de Revisão, marcada para esse ano, foi adiada por conta da pandemia. Uma evidente alteração, dentre tantas, que o vírus causou nas relações internacionais.

Não por acaso, a prestigiosa ONG receptora do prêmio Nobel “Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais” emitiu no início de maio estimulante Documento sobre a revisão do TNP de Armas Nucleares e os riscos posteriores à pandemia. A entidade, reunião de notáveis (cientistas, professores, diplomatas) preocupados com importantes questões internacionais desde a metade do século passado age em favor da redução nuclear. No Documento, apoiado por diversos membros da sociedade civil, a Pugwash rememora o soturno panorama que nos encontramos. Tanto em termos de abandono dos acordos-chave para o não crescimento do arsenal nuclear, bem como o acirramento das disputas e tensões entre potências nucleares. Dois pontos fundamentais são tocados.

O primeiro deles envolve diretamente a necessidade de esforços significativos em relação ao TNP e, por consequência, no regime jurídico sobre armas nucleares. Embora certamente a agenda internacional no momento esteja corretamente focada no combate e implicações da COVID-19, existe a necessidade de se pensar no momento posterior. A revisão do TNP precisa oferecer resultados significativos, assim como é importante o reforçar do Tratado de Proibição de Armas Nucleares de 2017, que ainda não entrou em vigor, mas que contou com o significativo apoio de 122 Estados na Assembleia Geral da ONU.[3] A revisão do TNP é uma ocasião para reafirmarmos a necessidade de cooperação, refinando nossas relações com outros Estados.

Se o TNP é a pedra angular do regime jurídico, isso não significa que ele é peremptório. O contestar desse direito é constante e, como se sabe, o direito internacional é feito de processos. Como mencionado, dificilmente a pandemia irá alterar substancialmente o regime jurídico de armas nucleares. Fato é que os Estados sairão da pandemia mais cientes dos nefastos efeitos que a ausência de cooperação pode gerar. Zonas que jamais haviam experimentado as agruras de uma grande catástrofe se viram afetadas pelo lockdown e pelas consequências da não contenção.

Uma das alternativas possíveis é a tentativa do recurso à função consultiva de cortes internacionais.

Uma nova opinião consultiva sobre o uso de armas nucleares perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ) seria um movimento interessante. O TNP não oferece direito ao uso de armas nucleares à nenhuma nação. Talvez a CIJ não chegasse a uma conclusão substancialmente diferente àquela que emitiu em 1996 sobre a legalidade do uso das armas nucleares em situações extremas.[4] Contudo poderia oferecer indicações mais precisas sobre a interação com outros regimes internacionais e também sobre, por exemplo, a obrigação de negociar, objeto de litígio das Ilhas Marshall contra as potências nucleares em 2016.[5] A jurisprudência recente da CIJ elaborou interessantes contribuições em relação a essa particular obrigação internacional. Pronúncias do gênero do principal órgão judiciário seriam importantes para esclarecer as obrigações dos Estados e exigir seu cumprimento durante negociações.[6]

Dificilmente a Corte pontificaria sobre a legalidade da posse de armas nucleares. De igual modo, uma opinião consultiva perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a relação entre Armas Nucleares e Direitos Humanos seria, também, uma estratégia de interessante persecução.[7] A Corte de San José poderia esclarecer quais seriam os impactos de armas nucleares não só em relação ao direito à vida, mas também em outros direitos reconhecidos no continente Americano como, por exemplo, o direito ao meio ambiente sadio.

Um segundo ponto interessante do Documento da Pugwash diz respeito às tensões e rivalidades entre potências nucleares que estão se agudizando em diversos campos e que provavelmente persistirão no pós-pandemia. Posições antagônicas devem ser desestimuladas e precisam ser reforçadas nas agendas da sociedade civil e do debate público. Certamente o Brasil teria um papel a desempenhar nesse contexto, podendo exercer uma liderança particular no desenvolvimento e fortalecimento de normas internacionais na matéria. A força diplomática do Brasil se fez verificar no recente Tratado de Proibição de Armas Nucleares.

Por pior que sejam os caminhos, sempre tivemos a duradoura capacidade de enxergar a longo prazo. Pensar nas estratégias para a revisão do TNP é um dos caminhos. Isso requer diplomacia, debate público e uma política externa jurídica coerente. A diplomacia jurídica é um instrumento poderoso usado pelas nações líderes globais. Nesse contexto, qual é o papel do Brasil? A recente manifestação do chanceler brasileiro perante à reunião informal do Conselho de Segurança da ONU sugere descrença no multilateralismo e levanta preocupações.

Espera-se, ainda assim, um papel ativo do Brasil na cooperação internacional. Não obstante o que diga o ministro, resta provado que, apesar das imperfeições, é importante confiar e reforçar as instituições internacionais. A Pugwash encerra seu documento pontualmente quando corretamente adverte que, após a pandemia, “a necessidade de neutralizar atitudes antagônicas, fortalecer instrumentos de cooperação internacional e, em particular, reduzir e eliminar os riscos nucleares será maior do que nunca.”

O direito de possuir armas nucleares após a pandemia irá mudar? Aparentemente não. Todavia, os movimentos da sociedade contrários à nuclearização do mundo contarão com importantes parceiros, lugubremente cientes dos efeitos que um inimigo comum global pode gerar. Numa das frases mais belas produzidas em documentos internacionais, a constituição da UNESCO preleciona que “uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”. Construamos.

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[1] Nas palavras do Embaixador Araújo Castro: é o “congelamento do poder mundial”. ARAÚJO CASTRO, João Augusto. O congelamento do poder mundial. Revista de informação legislativa, v. 8, n. 31, p. 37-52, jul./set. 1971.

[2] Em recente entrevista à Folha de São Paulo, o Embaixador Sérgio de Queiroz Duarte, que foi o alto representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento, comenta o cenário que nos encontramos. Sobre a questão, ver DUARTE, Sérgio de Queiroz. Desarmamento e Temas Correlatos. Brasília: Funag, 2014 e, de maneira geral, NYSTUEN, Gro; CASEY-MASLEN, Stuart; BERSAGEL, Annie Golden. (eds) Nuclear Weapons under International Law. Cambridge: CUP, 2014.

[3] Sobre a questão, ver AA Cançado Trindade, A Conferência da ONU Sobre O Tratado de Proibição de Armas Nucleares, Curso de Derecho Internacional XLIV de la OEA, 2017. Sobre o Tratado, sugere-se o excelente comentário de CASEY-MASLEN, Stuart. The Treaty on the prohibition of nuclear weapons. Oxford: OUP, 2019.

[4] CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons,

Advisory Opinion, I.C.J. Reports 1996, p. 226.

[5] Sobre o tema, ver LIMA, LUCAS CARLOS. Da relevância dos casos do desarmamento nuclear perante a Corte Internacional de Justiça. Revista de Direito Internacional, v. 14, p. 203-216, 2018.

[6] A barreira processual seria de que opiniões consultivas perante Cortes Internacionais só podem ser requisitadas por Estados ou organismos internacionais.

[7] Sobre Direitos Humanos e Armas Nucleares, ver UN HUMAN RIGHTS COMMITTE, General comment No. 36 (2018) on article 6 of the International Covenant on Civil and Political Rights (ICCPR), ver CLARK, Roger S. The Human Rights Committee, the Right to Life and Nuclear Weapons: The Committee’s General Comment No 36 on Article 6 of the Covenant on Civil and Political Rights. New Zealand Yearbook of International Law, Vol. 16, 2018.