Apesar de até 2018 acreditarmos que períodos autoritários no Brasil tinham ficado para trás, através da solidificação das instituições democráticas, bastou um aspirante a ditador — pouco articulado e com curta proficiência intelectual — para que ficasse claro a nossa debilidade.
Ledo engano. Se tem uma coisa que não podemos dizer de Bolsonaro é que ele mentiu sobre quem era e o que faria durante seu improvável governo.
Mas Jair nunca teve — e nunca terá — o tamanho da cadeira em que se senta. E isso ele mesmo sempre soube. Só que para conseguir ultrapassar essa barreira, que normalmente seria intransponível, Bolsonaro teve um apoio que nem ele mesmo, provavelmente, esperou: das Forças Armadas.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, que é longo, as Forças Armadas brasileiras tiveram, durante os últimos anos, a percepção de sua diminuição como instituição de relevância nacional. Com a redemocratização, os generais foram obrigados a sair dos gabinetes palacianos, ficando, quando muito, em seus corredores, como meros auxiliares de funções que outrora já tinham exercido. Além disso, outros fatores, como o achatamento salarial, influenciaram diretamente o status da carreira, tornando-a menos atrativa e gerando uma severa insatisfação entre os oficiais, que se sentiam preteridos perante servidores civis, como delegados, auditores e juízes. E, claro, a pouca atenção que os políticos sempre deram aos assuntos de Defesa Nacional veio a provocar momentos de severa escassez nas Forças, inclusive de alimentos.
Dessa forma, a possibilidade de que um ex-militar, não provido de muita capacidade, assumisse o governo, tendo um general como seu vice e outros generais em sua órbita, influenciando-o, parecia algo extremamente tentador. E, assim, contrariando a histórica ojeriza que os fardados de alta patente tinham de Bolsonaro, o apoiaram nas eleições de 2018.
Claro que a relação acabou não sendo aquela de dominação que esperavam. Afinal, Jair, nunca foi muito bom em obedecer à hierarquia militar, mesmo quando oficial de baixa patente. Não seria agora, como presidente da República e chefe daqueles que antes o desprezavam, que ele iria mudar.
Bolsonaro conseguiu impor sua autoridade, colocando os generais em seu cabresto e fez o que nenhum presidente civil havia feito antes: envergonhou-os, consecutivamente, em público. O dantesco vídeo em que o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, doente e acabrunhado, se viu obrigado a fazer uma autoimolação, para as redes bolsonaristas, foi uma das cenas mais constrangedoras da história militar.
Apesar dos percalços e dos embaraços, e mesmo sob as ameaças constantes de Bolsonaro à democracia, os militares acabaram por se aglutinar firmemente ao governo, assumindo cada vez mais funções de primeiro, segundo e terceiros escalões. E, assim, a suposta ameaça de golpe de Estado, enviada ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, pelo ministro da Defesa, general da reserva Braga Netto, que estaria acompanhado dos comandantes das Forças Armadas, noticiada pelo Estadão no final de julho, seria um claro movimento de ombrear, derradeiramente, com a ladainha golpista do presidente.
Em junho passado, em entrevista à revista Veja, o presidente do Superior Tribunal Militar, general e ministro Luís Carlos Gomes, já tinha iniciado esse tipo de investida. Gomes, desrespeitando as regras militares e as normas da magistratura, se declarou totalmente alinhado ao bolsonarismo, criticou o Supremo Tribunal Federal, defendeu o governo, indicou candidatos às próximas eleições e teceu críticas sobre a CPI da Covid do Senado Federal, afirmando que o ex-ministro da Saúde, general Pazuello, teria sido desrespeitado por ela.
Logo depois, em uma reação descabida em razão das declarações do presidente da CPI, senador Omar Aziz, sobre a corrupção de militares no governo, uma nova descarga de chumbo contra a democracia foi realizada, dessa vez em conjunto e de forma oficial, liderada por Braga Netto e acompanhada dos comandantes militares. Os generais decidiram que era hora do ataque e, em manifestação conjunta, o que também é proibido por seus regulamentos disciplinares, criticaram Aziz e afirmaram que “não aceitarão” ataques às suas instituições.
Finalmente, a suposta exigência de Braga Netto sobre o voto impresso em 2022, em tese afiançada pelos comandantes das Forças, serve para indicar que realmente não há mais qualquer limite a ser cruzado. Sendo verdade, é um ultimato para que não ocorra um golpe. Ou o Congresso faz as eleições do jeito que Bolsonaro e os militares querem ou não existirão eleições e, possivelmente, nem Congresso.
Mas é importante reparar o momento em que essas ameaças ocorreram. A CPI da Covid vem demonstrando que militares não são competentes por natureza e incorruptíveis, como gostam de se intitular, tampouco querem estar adstritos aos quartéis e alheios à política e aos gabinetes dos palácios governamentais. Muitos querem usar terno, ganhar polpudas gratificações e ter poder político. Talvez, o melhor exemplo desse tipo de militar seja o general Luiz Eduardo Ramos, que escorrega entre um cargo e outro enquanto vê colegas de caserna saírem humilhados do governo.
Essa ligação umbilical com o governo Bolsonaro, que alguns poucos generais impuseram às Forças Armadas, fez com que a necessidade de mudanças estruturais caísse no radar de todo democrata, principalmente os políticos de esquerda. Ficou cristalina a indispensabilidade de alteração no art. 142 da Constituição — imposto pelos militares à Assembleia Constituinte, sob ameaça de uma ruptura já naquele momento —; uma mudança de critério de promoção aos últimos postos das Forças; e a reestruturação completa do sistema de ensino, que deve formar militares para a defesa permanente da democracia, da soberania do país e da subordinação e respeito às instituições e autoridades civis.
O atual cenário é de descrédito dos militares por grande parte da população; uma possibilidade real de retorno à presidência de um candidato de esquerda que faça mudanças profundas nas Forças Armadas; e de que seus vários fardados sejam processados e condenados por desvios enquanto exerciam cargos palacianos nesse governo. E esse quadro indica que possam estar se sentindo acuados.
Assim, a opção tomada para se safarem parece que foi buscar algum motivo para encerrar o atual e mais longo período democrático brasileiro. E esse motivo pode ser desde a crítica de um senador, conclamando uma subjetiva honra militar, ou a exigência do voto impresso, que hoje tende a não ser aprovado pelo Congresso.
As bravatas do capitão, sem dúvida, eram somente bravatas. Ninguém gosta muito dele mesmo. Entretanto, ameaças de quem está armado e se sente cada vez mais acuado devem ser levadas muito a sério.
E não será perguntando àqueles que já ameaçaram por escrito dar um golpe, se pensam em realmente dar esse golpe, que os fará esmorecer dessa ideia.
O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, finalmente saiu da apatia e, ombreando com Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, aparentemente, decidiu dar um basta às aspirações autoritárias de Jair. Porém, essa atitude tomada de forma tão tardia parece ser pouco.
É fundamental uma união dos políticos, já que estes, havendo um golpe, fatalmente serão atingidos, do Ministério Público (na figura do procurador-geral da República, Augusto Aras) e do Poder Judiciário como um todo. Não podemos nem queremos mais na nossa história regimes autoritários e ditadores ao estilo Odorico Paraguaçu. Nossos tempos de Sucupira acabaram, definitivamente, em 1985.