A Editora Juruá acaba de publicar mais uma obra da sua Biblioteca de Filosofia, Sociologia e Teoria do Direito, coordenada pelo Professor Fernando Rister de Sousa Lima. Trata-se do livro “Interpretação Jurídica no Estado Regulador: observações à luz da teoria dos sistemas e da teoria do direito”, resultado da pesquisa de mestrado que realizamos na Faculdade de Direito da PUC-SP, sob a orientação do Professor Celso Fernandes Campilongo. A obra, que tem a pretensão de oferecer contribuições à chamada teoria do direito, desenvolve-se a partir de três seleções metodológicas principais: a teoria dos sistemas sociais, o Estado Regulador e a interpretação jurídica.
O instrumental analítico da teoria dos sistemas sociais, de autores como Niklas Luhmann, permitiu o desenvolvimento de reflexões no campo da teoria do direito orientadas para as recentes mudanças nos sistemas da política e do direito. A pesquisa, que promoveu diálogos interdisciplinares entre a teoria do direito, a sociologia jurídica e a ciência política, debruçou-se especialmente sobre as metamorfoses da interpretação jurídica na contemporaneidade.
Nas últimas décadas, a sociedade, o Estado e o direito passaram por profundas transformações. A intervenção do Estado no domínio econômico, por exemplo, passou a ser realizada, em grande medida, por intermédio da regulação econômica. Surge o chamado Estado Regulador, que representa uma clara redefinição do papel do Estado, marcado pela criação de agências reguladoras, pelo processo de privatização de empresas estatais e pela concessão de serviços públicos aos agentes privados.
Essas mudanças no perfil do Estado, que tiveram reflexos no Brasil especialmente a partir da década de 1990, surgem inicialmente na Europa, com os processos de privatização, e nos Estados Unidos, com as políticas de desregulação e rerregulação da economia. Essas medidas podem ser consideradas respostas aos recentes desafios lançados pela crise do Estado e pela globalização econômica. As décadas de 1970, 1980 e 1990 foram marcadas pelo forte debate em torno dos desgastes do chamado Estado Intervencionista e pela configuração de um novo modelo estatal, que pode ser denominado de Estado Regulador.
Dois movimentos de escala global ajudam a compreender o contexto que agita o desenvolvimento deste novo modelo estatal: a consolidação da globalização econômica e o surgimento de uma governança global. A transgressão das fronteiras políticas, econômicas e financeiras que caracteriza a globalização econômica, com todos os riscos e excessos conhecidos, impulsionou a configuração de um quadro complexo de governança global ou multinível. Essa governança é caracterizada pelo incremento da interdependência, por um lado, entre instituições, estratégias e mecanismos transnacionais, nacionais, regionais e locais, e, por outro lado, entre atores públicos e privados. O surgimento deste quadro de governança global e a emergência de redes de regulação internacional são processos diretamente ligados à configuração do Estado Regulador, que cede parte do seu protagonismo para agências reguladoras, para entidades privadas e para organismos supranacionais.
Percebe-se, portanto, a centralidade da noção de regulação econômica, que passa a ser mobilizada para compreender não apenas as metamorfoses do Estado contemporâneo, mas também as mudanças do direito. A racionalidade jurídica tradicional, que era centrada na formalidade, na positividade, na estatalidade e na coatividade do direito, também passa por um processo de esgotamento e abre espaço para a emergência de um novo modelo de direito, que pode ser caracterizado como pragmático, flexível, brando, responsivo, dúctil, pluralista, heterárquico e mesmo regulatório.
Essas mudanças nos perfis contemporâneos da sociedade, do Estado e do direito lançam inúmeros desafios aos intérpretes do direito. A interpretação jurídica, que em países ligados à tradição romano-germânica ou do direito continental europeu, como o Brasil, a França, a Alemanha, a Itália e a Espanha, tem sido historicamente caracterizada pelo recurso à figura idealizada do legislador racional, passa a levar em consideração os custos, as consequências, as interconexões, a interdisciplinaridade e a transnacionalização dos direitos e dos problemas jurídicos.
No entanto, essa elevação da complexidade e das expectativas em torno do sistema jurídico não está livre de riscos. A idealização de uma nova figura retórica, como a do julgador/administrador eficiente, que já aparece, de modo explícito ou implícito, não apenas na literatura e na prática jurídica, mas também nas recentes mudanças constitucionais, legislativas e regulatórias de diversos países, pode ser considerada uma estratégia evolutiva de alto risco.
O ideal de eficiência, que tradicionalmente faz parte das reflexões do sistema econômico, parece ser representativo das transformações vividas recentemente nos sistemas da política e do direito. Essa noção de eficiência apresenta elevado potencial de operacionalização na prática jurídica e de oferecimento de benefícios aos intérpretes (teóricos e práticos) do direito, mas ainda carece de reflexões nos diversos níveis teóricos relacionados ao direito, notadamente nos campos da sociologia jurídica, da teoria do direito e da dogmática jurídica.
O trabalho de entender as transformações contemporâneas do Estado e do direito pode ser considerado um dos mais importantes desafios impostos aos teóricos e práticos do direito na atualidade. A desconsideração das recentes mudanças ocorridas nos sistemas da política e do direito, que estão inegavelmente ligadas às transformações operadas no sistema econômico, gera obstáculos reflexivos e operacionais para a interpretação jurídica. O livro que acaba de ser publicado pela Editora Juruá busca justamente contribuir com reflexões teóricas sobre essas metamorfoses sociais e, especialmente, sobre as transformações da interpretação jurídica.