Apesar de a primeira fase da Lava Jato ter sido deflagrada no dia 17 de março de 2014, uma série de novidades institucionais antecederam – e possibilitaram – os trabalhos da operação que provocou um terremoto na política brasileira na década passada e cujas repercussões ainda reverberam nas instituições do país.
No livro “A política no banco dos réus”, os cientistas políticos Fábio Kerche e Marjorie Marona contextualizam a operação tendo como pano de fundo um outro processo, o da erosão das democracias pelo mundo. “Um traço desse fenômeno é a mobilização da institucionalidade, do Estado de Direito, contra as próprias instituições democráticas”, afirma Marjorie, que é professora da Universidade Federal de Minas Gerais, nesta entrevista ao JOTA.
A mudança informal aplicada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2003 no processo de indicação do procurador-geral da República – escolhendo o primeiro nome de uma lista tríplice com os três mais votados em uma eleição interna do Ministério Público Federal – quebrou uma lógica de dependência do PGR em relação ao presidente.
“Isso criou PGRs com muita autonomia. Não acho que seja coincidência que os processos do mensalão e depois a Lava Jato ocorreram justamente nesse modelo”, diz Kerche, que é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Novas leis de lavagem de dinheiro e organizações criminosas, promulgadas no governo Dilma Rousseff (PT), e o “cavalo de pau” na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em nome de uma “virada punitivista” foram as outras peças-chave, na avaliação dos autores, no tabuleiro que carregou o combate à corrupção no Brasil para o campo criminal.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
A Constituição de 1988 trouxe um novo desenho para o Ministério Público, com maior autonomia, mas não haveria Lava Jato sem três inovações institucionais que acabaram acontecendo em governos do PT: a indicação do PGR via lista tríplice e as novas leis de lavagem de dinheiro e de organizações criminosas. Como vocês avaliam essa mudança, iniciada pelo Lula na forma de se indicar o PGR, e o impacto destas duas leis promulgadas no governo Dilma para o combate à corrupção?
Fábio Kerche – Quando você modifica as regras, os jogadores tendem a jogar diferente. Pela Constituição, o PGR é indicado pelo presidente da República com aprovação do Senado. E mais do que indicado, a questão é a recondução do PGR. Esse modelo previsto na Constituição estimula que o PGR de alguma maneira agrade ao presidente, ao seu grande eleitor, para continuar sendo reconduzido. E incentiva, portanto, um certo alinhamento do PGR em relação ao chefe do Executivo. A gente viu isso claramente com o Geraldo Brindeiro, no governo Fernando Henrique, que foi chamado de “engavetador-geral da República”, e a gente está vendo isso com o Augusto Aras hoje.
O Lula, e depois a Dilma, mantiveram o modelo, o Temer em certa medida. Adotaram a tal da lista tríplice, uma lista votada por mil e poucos procuradores da República, em que essa lógica de dependência do PGR em relação ao presidente muda. Para ser reconduzido, o grande eleitor nesse novo modelo são os colegas da instituição, e não mais o presidente, o Lula e a Dilma, que passaram de maneira automática a aceitar não só a lista tríplice, como o mais votado da lista tríplice.
Isso criou PGRs com muita autonomia. Não acho que seja coincidência que os processos do mensalão e depois a Lava Jato ocorreram justamente nesse modelo. O Janot foi reconduzido pela Dilma no meio da Lava Jato, a Dilma não tinha outra alternativa política.
Marjorie Marona – A gente trata a Lava Jato no livro como uma novidade institucional. E isso assenta um conjunto de pressupostos a respeito do que seja o fenômeno da corrupção, quais são os alvos preferenciais, os atores envolvidos e as principais estratégias para combater a corrupção.
Esses pressupostos é que vão conformar as mudanças institucionais, dentre as quais você cita duas importantes. Parte dessas reformas é impulsionada e induzida pelos políticos.
Mas tem parte dessas reformas que são de iniciativa da própria burocracia, e particularmente da burocracia judicial. A possibilidade de contar com técnicas investigativas mais invasivas. O que a delação premiada vai possibilitar é que você traga um princípio de negociação que não estava expresso na nossa legislação penal e processual penal. Quando você altera a legislação e passa a aceitar técnicas investigativas mais invasivas – grampos, prisões preventivas associadas a delação premiada, conduções coercitivas –, você no mínimo facilita que a corrupção seja combatida primeiro no campo criminal. E mais do que isso, que ela seja compreendida como produto do crime organizado.
De que forma o julgamento do mensalão pelo STF lançou as bases para a atuação do Ministério Público, da Justiça Federal e do próprio Supremo na Lava Jato?
Marjorie Marona – O STF com o mensalão torna central essa agenda criminal, que sempre foi bastante secundária na Corte. Tem uma série de estratégias mobilizadas pelos ministros do STF, particularmente do então relator do mensalão, Joaquim Barbosa, que obtêm sucesso no julgamento, no sentido de dar um cavalo de pau na jurisprudência da corte.
Era uma corte marcada no âmbito criminal por um garantismo muito mais do que pelo punitivismo, e que passa a partir da Ação Penal 470 [do mensalão] a se orientar por um princípio punitivista. Em boa medida isso é possível pelo próprio desenho do STF. A literatura aponta para o fato de que os ministros, individualmente, possuem uma série de instrumentos de poder para impor a sua própria agenda ou controlar o timing dos processos.
O Joaquim Barbosa é um dos principais responsáveis por essa virada punitivista. O modo como ele acolhe a denúncia nos termos e na forma de organização do raciocínio é muito significativo. A possibilidade de trabalhar o combate à corrupção a partir de instrumentos do combate ao crime organizado aproxima a ideia de corrupção de crime organizado e possibilita mobilizar narrativas como a de quadrilha, aproximando e muitas vezes confundindo a própria atividade política com a atividade criminosa.
Parte disso só vai se ver refletido na Lava Jato, porque houve um custo para o STF ao conduzir o mensalão nesses termos. A concepção de foro privilegiado, que foi extensiva no mensalão, possibilitou que todos os envolvidos fossem julgados pelo STF, favorecendo a ideia de quadrilha, mas dificultando o trabalho do Supremo, porque eram muitos réus.
O Supremo aprende com isso. Na Lava Jato ele possibilita desmembramento, revê a ideia de foro. Vai haver uma adaptação e um aprendizado do STF para reter do mensalão, basicamente, o punitivismo, mas aprende no sentido de reduzir os custos e possibilitar que os seus esforços não sejam todos drenados para resolver a agenda criminal.
No livro vocês afirmam que a morte da Lava Jato não nos livra do legado dela, nem na política nem na economia. O que a Lava Jato deixa de herança?
Marjorie Marona – Uma coisa que fazemos no livro é tentar contextualizar a discussão a respeito da Lava Jato num quadro analítico mais amplo, o de processos de erosão das democracias no mundo. E um traço desse fenômeno é a mobilização da institucionalidade, do Estado de Direito, contra as próprias instituições democráticas.
Diversos atores, e não só do Executivo, também no Judiciário você tem aqueles que atuam tencionando as instituições a partir do esgarçamento do princípio da legalidade. Pensando isso como pano de fundo, o que fica como legado da Lava Jato são ensinamentos de que não podemos ignorar a dimensão política da atuação judicial.
Do ponto de vista negativo, fica para as instituições do sistema de Justiça um enorme abalo da sua própria legitimidade perante a opinião pública. Parte da capacidade do Judiciário é proveniente da sua legitimidade, parte da sua legitimidade tem a ver com o apoio difuso que ele recebe da opinião pública. Com isso não quero dizer aprovar ou desaprovar essa ou aquela decisão, mas confiar naquela instituição, perceber o Judiciário como um poder independente.
Fábio Kerche – Em relação ao combate à corrupção, a gente tem uma crescente institucionalização. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso, um reforço de várias instituições não judiciais tentando atuar contra a corrupção até ex ante, para tentar evitar a corrupção. Quando vem a Lava Jato, esse tipo de combate à corrupção ficou em segundo plano. Parecia que a única alternativa de se combater a corrupção era pela via criminal. Nesse ponto, eles fizeram um desserviço. Naquele momento da Lava Jato, acho que foi uma mensagem ruim que eles deixavam para a sociedade brasileira, como se a única alternativa fosse a via criminal ex post, depois do fato. Mas olhando hoje, depois do fim da Lava Jato, a gente pode ler esse sinal como mais ou menos positivo, porque podemos ter aprendido como sociedade que esse não é o único caminho, e não é o melhor caminho.
Outra herança inegável que a Lava Jato deixou, não digo que seja uma exclusividade, mas colaborou de maneira muito efetiva, foi a eleição de Jair Bolsonaro. A Lava Jato criminalizou a política de uma maneira geral, criminalizou em particular o PT, prendeu a principal liderança do partido num momento que ele liderava todas as pesquisas de opinião. Não só prenderam o Lula, como impediram ele de dar entrevista, coisa que não era negada nem para criminosos, para assassinos. Houve aqui uma perda, um momento da erosão da nossa democracia que, eu espero, a gente vai retomar. A definição mais minimalista de democracia pressupõe eleições competitivas. A Lava Jato limitou esse aspecto no nosso processo.
Vocês escrevem no livro que Bolsonaro desmobilizou a rede institucional que dava sustentação à Lava Jato sem abrir mão do lavajatismo. Como vocês enxergam o papel dessa carta da Lava Jato, que foi usada com sucesso na eleição de 2018, no pleito deste ano?
Marjorie Marona – Acho que esse tema da corrupção não interessa a ninguém no contexto eleitoral deste ano e essa carta não vai ser jogada. Essa é uma temática que não interessa ao Bolsonaro trazer à tona, e é um tema que não interessa ao Lula também trazer à tona.
Fábio Kerche – O cenário mudou muito. A gente mostra isso no livro, quando resgatamos as pesquisas do Datafolha naquele momento que se fazia ao eleitor a pergunta “qual o principal problema do Brasil?”. Nunca foi corrupção, historicamente era saúde, educação, violência, emprego. Só virou corrupção no período da Lava Jato. Na eleição de 2018, o Bolsonaro surfou essa onda, embora claramente nunca tenha tido nenhum compromisso de combate à corrupção, como não tem agora.
A imprensa cobrindo de uma maneira muito acrítica a Lava Jato, o Sergio Moro sendo uma das personalidades mais lembradas nas pesquisas, enfim, valia a pena naquele momento fazer um discurso contra a corrupção. Mas esse cenário mudou. O brasileiro hoje está preocupado com a economia, a inflação, o desemprego, pagar conta.
Pensando no desenho institucional do Ministério Público que temos hoje e considerando modelos de outros países, que ajustes seriam factíveis no nosso horizonte para tentar evitar repetir alguns desvios da Lava Jato?
Fábio Kerche – Para ser realista, acho que as chances de mudança são muito remotas. Como a autonomia e a independência são matérias constitucionais, para você modificar é muito difícil. Mas tem uma coisa que acho que vai entrar na agenda política: a indicação do PGR. Se o Lula ganhar a eleição para um terceiro mandato, a pergunta que fica é se ele vai manter a lista tríplice, e ele já sinalizou em uma entrevista que manteria, ou se vai adotar o modelo que está na Constituição. Se eu pudesse aconselhar, aconselharia a não adotar a lista tríplice. Ela não é o melhor modelo, não é o modelo mais democrático, acho que é uma obrigação do presidente indicar o PGR.
Se pensar em reformas institucionais, poderia se discutir a recondução do PGR. Talvez valesse a pena ser pensado pelos políticos e pela sociedade mudar esse aspecto, por exemplo aumentando o mandato do PGR e não permitindo recondução, inclusive com uma quarentena para alguns casos. Mas não sou muito otimista. Mudanças em órgãos da Justiça são difíceis de serem feitas. É muito difícil definir o que é uma reforma necessária, que vai aprimorar o sistema, e o que é uma retaliação. É uma linha muito tênue.
Outra medida que seria importante é discutir de novo aquela PEC propondo uma mudança na composição do Conselho Nacional do Ministério Público. O CNMP não é um órgão de controle externo, ele se tornou uma grande desculpa do Ministério Público para falar que tem um órgão de controle externo, mas quando você vai ver a composição, a maioria é de membros do próprio MP. A PEC que revia essa composição talvez valesse a pena ser retomada no próximo governo, talvez sinalizasse algum esforço dos políticos e da sociedade para exercer algum tipo de fiscalização do Ministério Público, o que é absolutamente necessário em democracias.
Vocês comparam o Brindeiro “engavetador-geral da República” ao Aras, mas chamam o Aras de “equilibrista-geral da República”. O Aras está sendo bem-sucedido nesse equilibrismo?
Fábio Kerche – A estratégia do Aras parece um pouco mais sofisticada, até porque a sociedade hoje presta muito mais atenção no PGR do que se prestava na época do Fernando Henrique Cardoso. Depois do mensalão e da Lava Jato, o PGR entrou no cálculo político de todo mundo que pensa a política. O Aras teve muito mais holofote sobre ele do que tinha o Brindeiro. E o Aras se move com um pouco mais de cuidado.
Quando é efetivamente em relação ao presidente, o Aras tenta ao máximo proteger, mas faz algumas concessões em relação ao entorno do presidente. Ele joga com um pé em cada canoa, se equilibrando.
Marjorie Marona – A gente não faz reforma para trás. A retomada do mecanismo de indicação do PGR que o Bolsonaro fez não restabelece o quadro institucional do Fernando Henrique por si só. Uma série de outros equilíbrios foram assentados. O STF, por exemplo, aprendeu a lidar com o Aras. Quando o Supremo entendeu que o Aras ia atuar numa linha mais protetiva dos interesses do governo, passou a dar “by-pass” no Aras em várias situações e a tomar para si, até de forma heterodoxa, mas a tomar para si uma série de atribuições que desviavam do Aras.
Em relação ao próprio Legislativo, a gente ouvia falar de sabatinas para ministros do STF e outras autoridades que eram quase automáticas. Embora a gente ainda não tenha histórico de reprovação, hoje a gente já vê processos bastante mais complexos e mais negociados. E o Aras, evidentemente, também tem isso em conta.
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A política no banco dos réus
Autores: Fábio Kerche e Marjorie Marona
Editora: Autêntica
272 págs.