Pedro Gordilho
Sócio do Gordilho, Pavie e Aguiar Advogados
“Fascisation. N.f. Fait de rendre fasciste; introduction de méthodes fascistas”.
(Le petit Larousse ilustré. 2000)
A grandiosa obra de Sigmund Freud não se limita aos textos publicados em seus livros. É indeclinável agregar, à sua obra cientifica, a imensa correspondência – cerca de dez mil cartas – cuja publicação ainda não se deu em nossa língua. Essa correspondência vasta, inteligente, erudita e reveladora faz parte da obra do gênio transformador.
Não se pode ler hoje os seus textos canônicos sem agregar a correspondência, seja ela de viagem, de família ou profissional, que traz uma luz absolutamente fundamental para a compreensão de sua obra planetária.
É uma obra que não pertence apenas aos psicanalistas. Os tradutores, os estudiosos, os interpretes, hoje, não têm mais necessidade do rotulo psicanálise para ressaltar a obra de Freud.
Nos Estados Unidos uma grande mudança no enfoque da obra data, segundo os estudiosos, dos anos 1980 – 1990. Em outros países essa mudança se deu depois. Os psicanalistas americanos, com algumas exceções, se ocupam de neurociência e de clinica medica e não muito dos textos de Freud, que são fundamentais para serem lidos, revistos e reinterpretados, tantos anos passados. Os profissionais norte-americanos deixaram o campo da erudição, da língua e da vasta cultura para se interessar pelos neurônios. Eles se tornaram psicoterapeutas, psiquiatras ou psicólogos.
Existe lá uma grande corrente anti-freudiana. Esta corrente tomou formas antagônicas. Na primeira metade do século XX a oposição a Freud vinha, essencialmente, dos meios católicos e conservadores, que lhe repudiavam não somente pela acusação de haver concebido a sexualização da vida humana, como também por ser responsável pela destruição da família, pela emancipação das mulheres e, ainda, pela masturbação das crianças.
A segunda corrente de oposição foi desenvolvida pelos nazistas nos anos 1930 – 1940. Os nazistas decretaram que a psicanálise era uma ciência judia e que, como tal, deveria ser exterminada Não só a psicanálise, mas também seu vocabulário, seus conceitos, do mesmo modo que seus praticantes. Finalmente o freudianismo recebeu a crítica feroz do stalinismo, a partir dos anos 40, que fez da psicanálise uma ciência burguesa, interditando-lhe a pratica na União Soviética.
A partir dos anos 1980 os anti-freudianos articulam a ideia de que a psicanálise não é uma ciência e Freud não é um cientista. A esta critica se agrega uma outra, de natureza moral. Ela vem de países puritanos. Acusa-se Freud não mais de ser responsável pela destruição da sociedade, mas de ser uma sombra reacionária libidinosa e mentirosa, que teria violado seus pacientes e sua cunhada.
Essa desqualificação sobre a vida privada deixa entender que sua teoria seria absolutamente falsa. Freud seria não apenas um guru não científico, mas um tipo de chefe de seita ávido por dinheiro, argentário, violador, mentiroso e escroque.
Mas os estudiosos modernos, marcadamente na França, em escritos candentes, têm mostrado que a verdade é mais simples e menos maniqueísta: Freud não era nem um esquerdista libertário, nem um puritano, nem alguém capaz de perversões sexuais, senão um conservador liberal e iluminado. Ele não podia imaginar, em 1938, a existência de câmaras de gás. Ele não abandonou suas irmãs. Isso é uma acusação mendaz. Ele pensava que o ser humano deveria dominar as suas pulsões, não liberá-las. E foi também hostil ao comunismo.
Isto mostra a grandiosidade do seu universo: Freud foi um pensador paradoxal e apaixonante. É por isso comentado, elogiado e estudado no mundo inteiro.
Note-se que Freud, Darwin e Marx, além de Einstein, representam os quatro pensadores particularmente visados pela crítica reacionária. E por que isso acontece? Porque eles são os pensadores que colocaram em debate, num momento dado, nosso modo de ver o universo e a sociedade. São pensadores que efetuaram revoluções simbólicas ou científicas. Eles estão na origem todas as grandes novidades de nosso tempo, o tempo que vivemos.
Os pensadores reacionários – contrários a Freud, Darwin, Marx e Einstein – opõem-se às mulheres, aos estrangeiros, aos homossexuais, aos refugiados, aos imigrantes que, segundo eles, visariam “desfigurar a bela pátria francesa. ” São eles que constituem a revanche dos xenófobos atuais, fascinados pelo discurso propugnado a partir da onda conservadora que assola o Ocidente, e odiando os cosmopolitas do pensamento. Ficam aterrorizados pela crise econômica, pelas guerras no Oriente Médio e se dirigem então contra o imenso patrimônio intelectual francês, admirado fora da França, como Simone e Sartre, “sempre insultados”, contra Foucault, “responsável pela transmissão do vírus da aids”, contra Althusser, “que seria um assassino marxista”, contra Deleuze, “toxicômano”, contra Barthes e Derrida, “desconstrutores da língua e da escola republicana”, todos eles descritos pelos inconformistas com ranço fascista como monstros, responsáveis que seriam, nessa visão retorcida e maniqueísta, pelo declínio da França e do Ocidente.
No Brasil não é diferente: a onda conservadora arrasta a política, a economia, o comportamento e a visão do mundo pelas pessoas, extasiadas com a ideia desvairada de uma intervenção militar, com a ascensão de político comprometido com exaltações nacionalistas pelo uso de uma retórica raivosa, que explora medos e preconceitos, com o uso abusivo e letal das redes sociais, mesmo com irresponsáveis fake news. E esta virulência nas redes sociais é a sucessora das políticas totalitárias de extermínio do século XX. São pantanosas e deixam explícito que o debate é ganho quando cala o adversário. Uma lastima. Um notável historiador de nosso tempo adverte (Geoffrey Blainey, Uma Breve História do Mundo, Ed. Fundamento, 2ª Ed., p. 302): “Se não tivesse acontecido essa guerra (a de 14-18), Hitler provavelmente seria desconhecido, pois foi da amargura da derrota alemã que ele surgiu, assim como Mussolini surgiu como ditador na Itália, principalmente por explorar a grande decepção pós-guerra de seu povo”. Entre nós, podemos falar na grande decepção pós-redemocratização, pela ação nefasta de plutocratas conduzindo criminosos e produzindo angustias e decepções.
Por isso, impõe-se ressaltar: é preciso lutar bravamente, como vêm fazendo os estudiosos modernos na França, contra esse avanço do novo fascismo, que se utiliza, como aconteceu no passado, da aflição e das angustias das massas.