Direito do Consumidor

Febraban: regulamentação de ‘mínimo existencial’ pode retirar bilhões do crédito

PIB pode sofrer decréscimo de 2%, diz entidade, a depender do critério definido para regulamentar o superendividamento

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Crédito: Unsplash

Qual o valor mínimo de renda que uma pessoa deveria ter protegido de credores para viver com dignidade em caso de superendividamento, enquanto renegocia uma forma de pagar o que deve? A resposta a essa questão está no cerne da regulação do mínimo existencial, entendido como a definição de condições essenciais para uma pessoa viver dignamente.

A regulação deste conceito está em debate na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). A discussão começou após a sanção presidencial, em julho, da Lei do Superendividamento (14.181/2021), que regulou o Código de Defesa do Consumidor ao definir pontos para proteger o cidadão em caso de necessidade ante o cumprimento de dívidas em atraso.

As entidades empresariais temem que um mínimo existencial elevado possa comprometer o crédito no país. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) contratou um estudo junto à consultoria Tendências, que aponta uma retração de 2% do PIB com a retirada de R$ 711 bilhões em crédito caso o mínimo estipulado seja de R$ 375 e englobe todo tipo de dívida.

Em um cenário menos pessimista, o estudo indica a retirada de R$ 545 bilhões na oferta de crédito e impacto negativo de 1,5% sobre o PIB, caso dívidas com financiamento imobiliário, rural e cartão de crédito fiquem de fora do mínimo existencial.

“Dependendo da má regulação pode ter um impacto para todos os consumidores, inclusive os que não estão endividados”, afirma Amaury Oliva, diretor de Sustentabilidade, Cidadania Financeira, Relações com o Consumidor e Autorregulação da Febraban.

Endividamento x inadimplência

Cerca de 75% das famílias brasileiras estão endividadas, segundo pesquisas da Serasa e da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). São mais de 12 milhões de famílias com contas em atraso, que na média somam o total de R$ 4 mil por devedor. Quase 90% afirmam ter vergonha de estar devendo.

As entidades têm registrado aumentos sucessivos de endividamento como consequência do desemprego em 12,6%, a queda de renda e o aumento da informalidade no mercado de trabalho, que atinge 37,7 milhões de brasileiros.

Mas dados do Banco Central mostram que a taxa de inadimplência no país registrada em outubro era de 2,3%. “É inferior ao período pré-pandemia, que era de 3,7%”, pondera Oliva, observando que os bancos renegociaram 17 milhões de contratos em atraso durante a crise sanitária e realizaram 220 mutirões de renegociações com o apoio do Procon.

O histórico geral de bom pagador dos consumidores brasileiros, contudo, não impediu os bancos de elevar a taxa média cobrada de operações de crédito livre para pessoas físicas em 2 pontos percentuais em outubro, atingindo 32,8% ao ano nas operações não consignadas – uma elevação de 6,3 p.p. em relação ao mesmo mês em 2020.

Valor fixo ou percentual?

A Febraban é contra a definição do mínimo a partir de um percentual da renda do consumidor, ou seja, que uma pessoa com ganho mensal de um salário-mínimo ou de R$ 10 mil tenham protegido uma fatia do valor recebido.

Oliva entende que isso seria “discriminatório” e defende um valor único para todos. “A gente acha que não tem que ser um valor diferente, que tem de ser um valor fixo”, diz.

O Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), diferentemente da Febraban, é favorável à definição de um percentual sobre a renda como mínimo existencial, desde que estabelecido um teto como o salário-mínimo (R$ 1.100) ou o Auxílio Brasil (R$ 400) e um indexador para correção anual do valor. “Acho que poderia ter um valor que fosse facilmente gerenciável e que se perpetuasse ao longo do tempo”, diz o vice-presidente do IDV, Jorge Gonçalves Filho.

Ione Amorin, economista e coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), critica o imediatismo do mercado para discutir o mínimo existencial. Ela considera que o sistema financeiro, ao propor um valor fixo, corre para criar uma “bolsa endividamento” depois que um mínimo entre 35% a 65% da renda das pessoas, independente do perfil de renda, foi discutido na audiência realiza pela Senacon em outubro.

O Idec pretende apresentar um Índice de Comprometimento de Renda no próximo debate, mas sem considerar valores pré-definidos. “Não dá para estabelecer um valor absoluto ou percentual para o mínimo existencial, que deve considerar o estoque de dívidas do consumidor, a natureza da dívida, o perfil de renda. É preciso conhecer a realidade do consumidor”, afirma Ione.

Negociação coletiva

O setor imobiliário e o varejo não elaboraram estudos sobre o impacto da regulação, mas temem queda no crédito e uma retomada econômica mais lenta. O BC reportou tomada de R$1,4 trilhão em crédito por pessoas físicas no mês de outubro, após elevação de 2,2% em relação ao mês anterior e de 21,3% na comparação interanual.

“A gente entende que é uma lei interessante para quem precisa dessa proteção, mas pode deixar de abrir portas para muitas pessoas terem possibilidade de evoluir no momento que poderia tomar empréstimo”, diz o vice-presidente do IDV.

A posição do setor imobiliário é similar, segundo Marcelo Terra, coordenador do Conselho Jurídico da presidência do Secovi-SP (Sindicato das empresas do mercado imobiliário). “O medo que existe é que a partir de uma regra protetiva, que é interessante, se estabeleça um caos no crédito a partir de uma interpretação muito expandida do que está ali regrado trazer uma insegurança absoluta para quem dá crédito”, diz Terra.

Há outro ponto de atenção na regulação conduzida pela Senacon: a possibilidade de o consumidor convocar todos os credores para repactuar as dívidas. Com isso, a soma das pendências seria negociada em bloco conforme a capacidade de pagamento do devedor.

Terra ressalta que moradia é um direito constitucional e se sobrepõe a outros tipos de créditos – como o consignado e o automotivo. “A compra e venda imobiliária é uma relação de consumo, ninguém está negando isso. Mas quando se olha no detalhe as regras do mínimo existencial e a questão de que a pessoa possa convocar os credores para estabelecer um plano, os imóveis estão fora”, entende o conselheiro do Secovi-SP.

Gonçalves Filho, do IDV, critica a possibilidade de acordos coletivos e sugere que a má regulação do mínimo existencial pode estimular o surgimento de “mercados paralelos de crédito”, ou seja, fora da regulação oficial exercida pelo BC.