Considerações sobre a unificação das carreiras jurídicas federais

Uma contribuição ao debate

  1. Suma do artigo objeto de análise

 

No artigo “Unificação das carreiras jurídicas federais é desnecessária", publicado na edição de JOTA de 26 de novembro de 2015,[1] sustenta-se, em suma, que a estrutura atual da Advocacia Pública Federal está adequada, sendo desnecessária a unificação.

 

Na linha do artigo, a Advocacia-Geral da União deveria representar um espelho de seu cliente, de modo que, mesmo que fosse admitida a unificação, ela deveria respeitar a divisão entre Administração direta e indireta, conforme os argumentos expostos no seguinte trecho:

 

se o aparelho estatal federal está organizado e estruturado sob “linhas mestras” bem definidas, por exemplo, administração direta e indireta, não pode a AGU estar organizada e estrutura, em especial sob o aspecto hierárquico, de forma generalizada, ou seja, desprezando e ignorando aquilo que passa na realidade de seus clientes, órgãos e entidades, seja da administração direta e indireta.

 

Em respeito e prestígio ao artigo, o presente texto busca também contribuir com o debate. Ainda que possa haver polêmica sobre o tema, com correntes favoráveis e contrárias à unificação, sobre dois pontos parece não haver controvérsia. O primeiro é o de que não há um único modelo de unificação, o que até prejudica a discussão e a formação de opinião a questão. O segundo é que o tema é relevante, pois trará impactos nos serviços jurídicos necessários ao Estado.

 

  1.  O caminho da Racionalidade e da Eficiência e a forma de avaliar

 

 Na opinião do texto, “a ideia de que a unificação é tábua de salvação para a racionalidade e eficiência administrativa também não passa pelo crivo de uma análise mais acurada.”

 

Os presentes apontamentos, por seu turno, têm a pretensão de apenas enriquecer a discussão, trazendo mais olhares e aspectos para reflexão.

 

O primeiro, ligado à necessidade ou não da unificação. Para se responder se algo é necessário ou não, deve-se ter em mente o fim pretendido.

 

Escolher eficiência e racionalidade é um caminho, mas ainda não completo. Eficiência necessita de complemento. Se se tomar eficiência no sentido comum vulgar de fazer mais com menos,[2] ficará a questão acerca do que deve ser feito. De modo ainda geral, pode-se dizer que a Advocacia Pública deve contribuir para que seu cliente atinja seus fins, ou seja, aqueles objetivos estabelecidos no ordenamento jurídico.

 

Da mesma forma, quanto à racionalidade, também se deve determinar seu sentido. Racionalidade, em suma, é qualidade daquilo que é racional ou lógico.[3] De forma ainda muito superficial, é a lógica que rege um conjunto de ideias e sua concretização nos comportamentos humanos, organizados para busca de determinado fim, ou mesmo um conjunto de padrões fenomenológicos que regem a natureza.[4]

 

Se desses dois conceitos for extraído o elemento comum de se buscar um fim, conclui-se que uma Advocacia Pública melhor é aquela que melhor atinge tal objetivo.

 

É difícil dizer o que é melhor sem eleger critérios objetivos, mesmo que esses critérios sejam simplesmente o próprio cumprimento da Lei. Isso porque esta comporta interpretação, levando a subjetivismos.

 

Talvez uma boa forma de avaliar tal questão fosse submeter aos clientes um questionário sobre sua opinião acerca da Advocacia Pública hoje. Daí, feita a unificação, aguarda-se um certo período e se repete a avaliação. Comparando as duas avaliações, torna-se possível afirmar se será melhor ou não.

 

Afinal, o que importa, em última análise, é o cliente. Mas não se nega que deva haver certo equilíbrio entre os interesses do cliente e os da Advocacia Pública como instituição. É que qualquer postura que afete negativamente esta última implicará deterioração da instituição e acabará de todo modo impactando negativamente o cliente.

 

Como o modelo atual já conta com mais de vinte e cinco anos, é necessário um prazo razoável de aferição do novo modelo.

 

Embora caiba, em última instância, ao cliente julgar, alguns apontamentos podem ser feitos sobre fenômenos que ocorrem hoje e que, em princípio, contrariam a eficiência e a racionalidade.

 

Em havendo uma unificação das carreiras, embora com a manutenção de certa especialização, pode-se concluir que haverá redução de custos, por exemplo pela supressão de órgãos redundantes, ou mesmo de atuações redundantes ou conflitantes.

 

Essa última situação ocorre quando, por exemplo, no mesmo processo, atuam procuradores de carreiras distintas, ora no mesmo sentido (ensejando gasto desnecessário), ora em sentidos conflitantes (ensejando gasto mais desnecessário ainda). Aliás, quando dois entes públicos federais postulam no Judiciário em sentido diverso, isso representa a anomalia da estrutura vigente. Ainda que ambos estejam defendendo um suposto cumprimento da lei e ainda que as normas possam ser contraditórias, não é admissível que chegue ao Judiciário algo que poderia e deveria ser resolvido diretamente entre os envolvidos. Gastam-se recursos de ambos os entes e do próprio Judiciário sobrando menos tempo e recursos para atender os cidadãos.

 

  1. A questão da Administração direta e indireta

 

O texto leva a entender que seria inviável unificar as carreiras que representam entes da Administração indireta com as carreiras que representam a União. Isso porque, de acordo com o texto, a Constituição estipularia uma estrutura que separaria a Administração indireta da direta, separação que também deveria ser respeitada pela Advocacia Pública, na medida em que esta instituição teria que ser um espelho de seu cliente.

 

Ocorre que não é a Constituição que separa a Administração em direta e indireta. A Constituição simplesmente reconhece que existe essa separação e se refere a ambas apenas para esclarecer o alcance de certas normas, como a que fixa o teto constitucional ou a que exige concurso público entre outras.

 

A Administração indireta existe por questões históricas circunstanciais. Em determinado momento, acreditou-se que seria melhor conferir certo grau de autonomia para algum órgão para que ele pudesse se desincumbir mais adequadamente de seus misteres. A própria definição de autarquia, e mesmo a de fundação pública, estão nesse sentido. [5]

 

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, as atribuições dos entes descentralizados decorrem tão somente do ente central e não da Constituição.[6] Tais entes só irão figurar em texto constitucional a partir da Constituição de 1946.

 

Estabelecer se haverá ou não descentralização e quais atividades serão descentralizadas será uma decorrência das necessidades do momento e da discricionariedade do governo, cuja decisão precisará ser aprovada por Lei. É algo absolutamente circunstancial que não justifica a necessidade de cada ente descentralizado ou a Administração indireta como um todo possuir um corpo jurídico exclusivo a ela vinculado e que seja separado da Advocacia Pública como um todo, embora tal ente possa e deva necessitar de serviços jurídicos.

 

Se a Advocacia Pública efetivamente necessitar representar um espelho da separação entre Administração direta e indireta, como compatibilizar essa separação com as constantes mutações que instituem novos entes descentralizados ou que os extinguem ou reincorporam à Administração central? 


Vide por exemplo a recente criação da Autoridade Pública Olímpica, consórcio público com natureza autárquica. Ao ser criada, a Procuradoria-Geral Federal teve de atender às demandas dessa entidade sem que lhe houvessem sido fornecidos recursos novos para tanto. Obviamente que se houvesse uma única Advocacia Pública isso poderia ocorrer, mas a intensidade do impacto seria menor, ante o natural aumento do quadro.


E o que dizer dos arts. 11-A e 11-B da Lei nº 9.028, de 12 de abril de 1995, incluídos pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, que atribuiu à carreira de Advogado da União a competência para representar temporariamente entes da Administração indireta?[7] Isso demonstra, em primeiro lugar, não haver uma separação intransponível entre as carreiras. De outro lado, mostra a dificuldade de realocação de pessoal por conta da incompatibilidade entre a dinâmica das necessidades dos órgãos ou entidades clientes e o lento procedimento legislativo necessário para promover esse atendimento.

 

Não bastassem as constantes mudanças estruturais, há ainda as mudanças internas, em que há simples transferência de competências do ente central para entes descentralizados ou vice-versa. O Incra, por exemplo, além da competência para a promoção da reforma agrária, era cometido da atribuição de realizar a regularização fundiária de posses na área da Amazônia Legal. Posteriormente, a competência para essa regularização passou para o ente central, sem que o novo órgão responsável tivesse condições de atender as demandas daí decorrentes. 


O espelho ideal, por isso, é aquele que possui os recursos necessários para atender às demandas de seus clientes, com a agilidade de realocação adequada. Mantendo em órgãos estanques as carreiras, fica um tanto quanto complicado atender com facilidade a essa exigência.


E esse espelho também precisa, de certa forma, dialogar com a estrutura do Judiciário e mesmo com a sociedade, que às vezes sequer sabem quem representa a Administração federal em cada caso. 

 

  1. A questão fundamental: a descentralização administrativa impede a unificação?

 

Se se levar a ideia do artigo analisado às últimas consequências, em princípio, pode-se chegar a um resultado um tanto quanto inadequado.

 

Aqui se refere à ideia de que se deve respeitar na estrutura da Advocacia Pública a estrutura desenhada pelas “linhas mestras” da Constituição. Para o artigo, estariam entre essas “linhas mestras” a separação entre Administração direta e indireta, mas o próprio texto diz ser essa separação apenas um exemplo.

 

E esse exemplo, como já ficou claro acima, pode ser desfeito a qualquer tempo, na medida em que a criação ou extinção de entes descentralizados pode ocorrer por simples lei.

 

Se esse exemplo de separação, de estrutura, é considerado fundamental ou importante para justificar a separação da Advocacia Pública, então a separação dos poderes, nessa linha, deve ser considerada muito mais determinante, uma vez que nem mesmo por emenda constitucional pode ser desfeita, nos termos do art. 60, §4º, III, da Constituição.

 

Curiosamente, embora haja três poderes separados, segundo a “estrutura” da Constituição, há para os três uma única Advocacia Pública para representá-los judicial e extrajudicialmente, embora haja órgãos próprios de assessoramento jurídico dentro de cada um.

 

Mais curiosamente ainda é que, entre eles, o conflito não só é possível, mas é necessário, para que haja um balanceamento no exercício do Poder. Esse conflito, contudo, é automaticamente harmonizado pelas regras de solução dispostas na própria Constituição, como, por exemplo, as que estipulam a possibilidade de o Poder Executivo vetar disposições de Leis elaboradas pelo Poder Legislativo.


Mas se poderia levantar aqui o argumento de que, enquanto os três Poderes integram a mesma pessoa jurídica, a Administração indireta é formada por outras pessoas jurídicas, todas autônomas.


Com relação a esse argumento, se o fato de haver uma personalidade distinta justificasse uma Advocacia Pública própria, então cada autarquia e cada fundação deveria ser servida por seus próprios advogados. Mas essa lógica implicaria dizer que a reunião da representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações na Procuradoria-Geral Federal seria um erro. Ocorre que isso nem mesmo o artigo ora analisado admite. Pelo contrário, o artigo a considera legal, legítima e constitucional.


Nessa linha, o que justifica a instituição de uma pessoa autônoma em relação à Administração direta diz respeito à conveniência para que determinada atividade seja melhor prestada, algo que não tem nenhuma relação com a estrutura do órgão responsável pela prestação dos serviços jurídicos que lhes serão necessários.


Aliás, essa autonomia, na prática, é bem relativa, como se vê no art. 17 da Lei nº 7.923, de 12 de fevereiro de 1989, que atribui à União a competência para normatizar questões de pessoal inclusive da Administração indireta [8], valendo registrar que essa relatividade da autonomia já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. [9] 


Isso está de acordo com o fato de que entre a União e os entes públicos da Administração indireta o conflito é inconcebível, na medida em que há uma simples separação de funções que são todas voltadas a um único fim público, a satisfação das demandas da coletividade.


Até para que haja coordenação e harmonia entre esses entes, a unificação da Advocacia Pública poderia servir de excelente instrumento, conciliando juridicamente as pretensões eventualmente incompatíveis de tais clientes.


Para atender as peculiaridades de cada um desses entes, bastaria haver setores especializados dentro da Advocacia Pública, como já ocorre hoje. Mas todos esses setores precisam estar efetivamente integrados em um único órgão para que se assegure a necessária coordenação e uniformidade da atuação pública.

 

Falando em distinções fundamentais, outra delas é a repartição constitucional de competências. Segundo essa repartição, ela ocorre entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Não há repartição constitucional de competências entre União e sua Administração indireta e isso nem teria cabimento, porque será o Governo que decidirá, segundo as circunstâncias e com a aprovação do Legislador, como essas competências serão distribuídas em sua esfera.

 

Enfim, se a existência de pessoas jurídicas autônomas não leva à necessidade de órgãos jurídicos autônomos e se mesmo para atender uma estrutura com uma separação tão fundamental quanto a dos Poderes se admite uma única Advocacia Pública, conclui-se que o argumento da separação entre Administração direta e indireta não é suficiente para justificar a separação da Advocacia Pública e quiçá nem a recomende.

 

[1] PERIN, Jair José. Jota. Disponível em: <https://www.jota.info/unificacao-das-carreiras-juridicas-federais-e-desnecessaria> Acesso em: 26 nov. 2015.

[2] HOUAISS, A.; VILLAR, M. D. S. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa v.1.0. São Paulo: Objetiva, 2004, CD-ROM.

[3] HOUAISS, A.; VILLAR, M. D. S. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa v.1.0. São Paulo: Objetiva, 2004, CD-ROM

[4] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.962-967.

[5] “Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se:  I - Autarquia - o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada. [...]   IV - Fundação Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes.” (BRASIL. Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Planalto.gov.br. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0200.htm> Acesso em: 27 nov. 2015).

[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p.342-343.

[7] BRASIL. Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001. Acresce e altera dispositivos das Leis nos 8.437, de 30 de junho de 1992, 9.028, de 12 de abril de 1995, 9.494, de 10 de setembro de 1997, 7.347, de 24 de julho de 1985, 8.429, de 2 de junho de 1992, 9.704, de 17 de novembro de 1998, do Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, das Leis nos 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e 4.348, de 26 de junho de 1964, e dá outras providências. Planalto.gov.br. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2180-35.htm> Acesso em: 1º dez. 2015.

[8] "Art. 17. Os assuntos relativos ao pessoal civil do poder Executivo, na Administração Direta, nas autarquias, incluídas as em regime especial, e nas fundações públicas, são da competência privativa dos Órgãos integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal - Sipec, observada a orientação normativa do Órgão Central do Sistema, revogadas quaisquer disposições em contrário, inclusive as de leis especiais. Parágrafo único. A orientação geral firmada pelo Órgão Central do Sipec tem caráter normativo, respeitada a competência da Consultoria-Geral da República e da Consultoria Jurídica da Seplan."BRASIL. Lei nº 7.923, de 12 de fevereiro de 1989. Dispõe sobre os vencimentos, salários, soldos e demais retribuições dos servidores civis e militares do Poder Executivo, na Administração Direta, nas Autarquias, nas Fundações Públicas e nos extintos Territórios, e dá outras providências. Planalto.gov.br. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7923.htm> Acesso em: 1º dez. 2015.

[9] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADI 1599 MC, Relator Min. Maurício Corrêa. j. 26 fev. 1998. DJ 18 maio 2001.logo-jota

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