O ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), discursou nesta segunda-feira (14/11) na primeira edição da LIDE Brazil Conference-New York, nos Estados Unidos. Sem citar o presidente Jair Bolsonaro (PL), ele destacou que “postulados básicos da ordem constitucional de 1988, a liberdade e a democracia, foram submetidos aos mais impensáveis ataques”. Mas que, “bem ou mal”, as instituições brasileiras funcionaram e a “institucionalidade venceu”.
Mendes também falou sobre o desafio “de reconstrução constitucional” e da necessidade de criar uma Lei de Responsabilidade Social. Para ele, “o fiscal” e “o social” se complementam. “Não basta gastar bilhões de reais com obras indicadas por emendas parlamentares individuais que aumentem as disfunções da alocação de recursos orçamentários. Uma Lei de Responsabilidade Social pode, por exemplo, ser de grande valia para estabelecer critérios técnicos para a execução de obras e serviços públicos – e, por que não, reduzir o desperdício de recursos orçamentários”, disse.
Leia abaixo o discurso completo de Gilmar Mendes
Senhoras e Senhores,
Cumprimento a organização do evento, aos integrantes deste Painel e aos que nos ouvem por essa interessante oportunidade de estabelecer um diálogo produtivo sobre tão desafiador cenário que se avista.
Durante os últimos anos, esses postulados básicos da ordem constitucional de 1988, a liberdade e a democracia, foram submetidos aos mais impensáveis ataques. O surgimento de um populismo, embalado por um discurso de ódio disseminado por soluções de tecnologia com alcance nunca antes visto, nos apresenta um fenômeno com evidente ineditismo.
Por um lado, é verdade, todo esse cenário de erosão constitucional revelou que o Estado brasileiro possui admirável resiliência. Quando tudo parecia esfarelar, ouvimos, à exaustão, o mantra: “as instituições estão funcionando”. Bem ou mal, elas funcionaram. A institucionalidade venceu.
Por outro lado, importantes segmentos da sociedade manifestaram (e continuam a manifestar) uma postura de questionar o exercício jurisdicional do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. No limite, recusam-se a acatar o resultado das eleições gerais. Esse quadro merece atenção.
Merece atenção porque denota estado de dissonância cognitiva coletiva, cuja prolongação no tempo também parece ter ocasionado modificações profundas na sociedade brasileira.
À guisa de palavras introdutórias a um painel que articula o respeito à liberdade e à democracia no Brasil, penso que o fundamental, nestes tempos tão peculiares, é refletir o seguinte: como nossa ordem constitucional pode proteger o regime democrático em articulação com uma perspectiva de proteção à liberdade?
Todo o nosso desafio é de reconstrução constitucional. Os episódios de intolerância que ora assistimos inspiram a tomada de atitude – o que deverá ser levado a efeito em cada esfera competente – mas também impelem a refletir de que modo as instituições poderão tratar expectativas sociais frustradas. Sendo mais direto: é preciso indagar se há algo mais por trás de discursos lunáticos e histéricos, que pedem “intervenção militar” e a prisão do inventor da tomada de 3 pinos.
O que torna os cidadãos presas fáceis de milícias digitais que exploram recalques e frustrações? Sem de modo algum diminuir a relevância penal de posturas criminosas e golpistas, o ponto é saber o que joga tais cidadãos nos braços do autoritarismo.
Seriam os kafkianos arranjos regulatórios disfuncionais do Estado brasileiro? Seria a sensação de impotência diante de incoerências administrativas no exercício da fiscalização do trabalho, ambiental etc.?
Se a manutenção de um regime democrático requer que os cidadãos estejam verdadeiramente dispostos a lutar por ele, é intuitivo que essa democracia precisa recrutar esse cidadão para lutar pela democracia, e não para destruí-la. Para isso, o Estado brasileiro precisa ter o cidadão na condição de alfa e ômega. E nenhum modo de organização do poder é mais eficiente, para tanto, do que a democracia.
As razões são conhecidas. A democracia tem como primeiro lema a dignidade humana: cada cidadão é um fim em si mesmo. Para tanto, precisa garantir, antes de mais nada, a existência do cidadão. Mas não basta viver: é necessário que o país propicie vida digna. Por isso as democracias modernas precisam trabalhar com o conceito-motriz de inclusão social.
E como foi bem-sucedida, a Constituição de 1988, no objetivo de melhorar o nível de vida de nossa população. Ela demarcou várias tarefas para o poder público e, a partir delas, foram desenvolvidos uma série de políticas públicas que investiram na dimensão institucional dos direitos fundamentais.
Na saúde, foi criado o SUS, Sistema Único de Saúde, abertamente inspirado no NHS britânico. A universalidade e gratuidade exigiu dos Municípios, Estados e União, o desenvolvimento de políticas públicas em chave de cooperação federativa e com participação democrática. Claro, a cooperação não é um dado, é uma construção política; requer predisposição para o diálogo, e não para o confronto (que muito antes de ser gratuito, na verdade assume vestes de cálculo político pensado para alimentar uma massa de milicianos digitais, sem que 700 mil mortes importem para nada).
Os resultados da gestão da saúde na ambiência democrática pós-1988, do ponto de vista qualitativo, acarretaram em verdadeira mudança do conceito de saúde praticado pelo poder público: antes de 1988, saúde era o estado de não-doença; hoje, saúde compreende uma série de ações preventivas e o planejamento de políticas que melhorem a vida da população nessa seara (vacinação, vigilância sanitária etc.). Do ponto de vista quantitativo, os números são vistosos: em 1990, o Brasil ostentava a vergonhosa taxa de mortalidade infantil de 49,4 óbitos a cada 1000 nascidos com vida; os números de 2021 apontam para taxa de 12,4. Em 1982, cerca de 11 mil crianças morriam de sarampo; em 2000, a moléstia foi erradicada. Em 1988, a expectativa de vida ao nascer era de 65 anos; em 2020, 76 anos.
Na educação, as tarefas impostas pela Constituição também propiciaram grandes avanços para a população. Aqui, também graças à atuação dos poderes públicos, notadamente a sensibilidade do Congresso Nacional para instituir, a partir de emenda à Constituição, o FUNDEF (depois FUNDEB), que viabilizou financeiramente a universalização do ensino reclamada pelo texto constitucional. Os resultados mostram uma “vontade de Constituição”; evidenciam como nosso país, nesses 34 anos, levou a sério a implementação desse direito fundamental. Em 1988, 18,9% dos brasileiros acima de 15 anos eram analfabetos; em 2020, 6,6%. Tínhamos cerca de 2,4 milhões de crianças na pré-escola, quando da Constituinte; esse número, em 1995, já havia saltado para 4,4 milhões.
Faço referência à saúde e à educação, apenas para exemplificar de que modo o Constituinte pretendeu forjar uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, CF), objetivo que perpassa todo o texto constitucional. Mas não podemos, de modo algum, transigir quanto à necessidade de o Estado implementar esses objetivos.
A propósito, isso deveria estar muito claro também ao empresariado nacional. Interessa ao mercado nacional que a mão de obra possua alta taxa de escolarização. Interessa, igualmente, que uma rede de atenção primária à saúde exista, seja eficaz e possua perspectiva holística: cada dólar investido em água e saneamento economiza 4,3 dólares em custos de saúde (dados da OMS) (não preciso sublinhar o que isso representa em diminuição de abstenção no trabalho e em melhora qualitativa da saúde do trabalhador).
Claro. Podemos questionar se a ampliação do bem-estar social exige necessariamente aumento de gasto público. E se esse gasto deve necessariamente ser suportado pelo setor produtivo. O Poder Público pode investir numa atuação indireta, de fomento. Em setembro, estive no Recife e conheci o COMPAZ (Centros Comunitários da Paz), um laboratório de boas práticas urbanas, inspirado na prática bem-sucedida de Medellín, e que se fosse replicado Brasil a fora, poderia muito bem abrigar, por exemplo, centros de mediação, órgãos de assistência a mulheres vítimas de violência doméstica, qualificação profissional etc. Nesse modelo, o cidadão é protagonista, porque a sociedade civil participa da construção da política pública.
Pois bem. A essa altura, em que me encaminho para o encerramento de minha fala, registro que sou consciente de que o respeito à liberdade e à democracia, no Brasil, não envolve, tão apenas, olhar para os mandamentos da Constituição de 1988. É preciso ter os olhos postos ao futuro quando em jogo a construção de uma democracia forte. Para tanto, o nosso país precisa de uma agenda.
O Brasil foi um dos pioneiros entre economias emergentes a adotar uma Lei de Responsabilidade Fiscal, com inegável sucesso no objetivo de criar uma cultura de controle e transparência na atividade financeira do Estado. Choca que, até hoje, não tenhamos feito o mesmo no âmbito social. Coloco-me na fileira daqueles que estimam que precisamos urgentemente de uma Lei de Responsabilidade Social que, à semelhança da Lei de Responsabilidade Fiscal, estabeleça normas de organização administrativo-federativa voltada para a responsabilidade na elaboração, implementação, consolidação e expansão de políticas públicas sociais de todos os Entes Federativos.
Nessa ordem de ideias, “o fiscal” e “o social” se complementam. Não basta gastar bilhões de reais com obras indicadas por emendas parlamentares individuais que aumentem as disfunções da alocação de recursos orçamentários. Uma Lei de Responsabilidade Social pode, por exemplo, ser de grande valia para estabelecer critérios técnicos para a execução de obras e serviços públicos – e, por que não, reduzir o desperdício de recursos orçamentários.
É com esse olhar para o futuro que aqui encerro. Com a esperança de que nos próximos anos o Poder Público recupere a sua capacidade de implementar políticas públicas criativas, mediante valorização de sinergias com a sociedade civil organizada e com especial cuidado para não recair na saída fácil do aumento do gasto público (que não garante melhoria do nível geral de vida da população, embora acarrete na certeza do incremento do estoque da dívida).
Nosso futuro depende, e muito, de uma agenda que dialogue com os atingidos pelas ações do Estado (sejam políticas públicas, sejam atividades comezinhas, como uma fiscalização do trabalho ou ambiental). As lideranças nacionais precisam entender melhor essas mensagens que advêm das entranhas do país (às vezes vazadas em “pulsões de morte”, permitam-me o paralelo psicanalítico).
Muito obrigado.