Desde o último dia 12 de agosto, o partido Rede Sustentabilidade tinha ajuizado a ADI 7228 questionando as alterações que a Lei 14.211/2021 tinha promovido no Código Eleitoral (CE), art. 109. De acordo com a principal novidade, passou-se a exigir que os partidos políticos tenham obtido pelo menos 80% do quociente eleitoral e os candidatos tenham votação nominal igual ou superior a 20% desse quociente para participar das “sobras eleitorais”.
Resumidamente, para a Rede, essa “regra 80-20” teria instituído na prática uma espécie de “cláusula de barreira” e estaria esvaziando por via oblíqua o sistema eleitoral proporcional previsto na Constituição, art. 45, o que, segundo sua visão, só poderia ser feito via emenda constitucional.
Argumenta, ainda, que a aplicação do art. 111 do CE, com a nova redação, teria instituído de forma implícita o sistema “distritão”, opção já rejeitada pelo Congresso Nacional, na medida em que foi retirada da PEC 125/2011, após a aprovação de destaque, por ocasião da deliberação da Câmara dos Deputados na sessão ocorrida no dia 11 de agosto de 2021.
Desde então, a discussão sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski estava parada, mas parece ter ganhado força agora com o endosso da ADI 7.263, apresentada no último dia 31 de outubro pelo Podemos e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) conjuntamente.
Essa segunda ADI basicamente endossa a argumentação da anterior, mas traz mais dados relacionados às eleições de 2022, com destaque para o seguinte: apenas 28 dos 513 deputados se elegeram com seus próprios votos ou atingiram o quociente eleitoral. Ou seja, 485 cadeiras serão distribuídas aos partidos políticos e federações conforme o art. 11 da Resolução TSE 23.677/2021.
Em síntese, o pedido das ADIs é para que os partidos possam concorrer à distribuição dos assentos remanescentes independentemente do atingimento da “regra 80-20” legitimamente aprovada pelo Congresso Nacional.
Em sendo acolhido o pedido, e eventualmente aplicado às eleições de 2022 já ocorridas, serão alterados os candidatos eleitos para deputado federal em quatro unidades da federação: Amapá, Distrito Federal, Rondônia e Tocantins.
Nem se vai gastar muita tinta insistindo em que uma mudança das regras a essa altura, quando já conhecidos os nomes dos beneficiados e prejudicados, violaria o princípio da impessoalidade, segurança jurídica, etc. Aqui, importa mais mostrar o quão benfazejo pode ser o exercício de recorrer às razões legislativas antes de declarar a inconstitucionalidade das leis aprovadas pelo Congresso Nacional, como já debatido em coluna passada.
A consulta à página de tramitação do PL 783/2021 (que originou a Lei 14.211/2021) revela uma clara justificativa dada para a proposição de autoria do senador Carlos Fávaro (PSD-MT) no sentido de que era necessário adequar a redação anterior do art. 109, § 2º, do CE (dada pela Lei nº 13.488/2017) à EC 97/2017, que criou uma “cláusula de desempenho” para os partidos políticos terem direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão.
Da leitura da justificação, extrai-se a intenção de diminuir os efeitos negativos da fragmentação partidária e do surgimento das chamadas “legendas de aluguel”. Aqui, não se vai comentar que um dos responsáveis pelo cenário foi precisamente o julgamento das ADIs 1.351 e 1.354, nas quais foi declarada inconstitucional a cláusula de barreira instituída na Lei 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos). O leitor da coluna conhece o caso.
A análise dos documentos legislativos do PL 783/2021 mostra, mais uma vez, que os parlamentares também acolhem os entendimentos jurisprudenciais do STF. Como indicado em coluna passada, por mais surpreendente que possa parecer, esse movimento vem se intensificando nos últimos tempos. O Parecer 156/2021-PLEN/SF, de autoria do relator, senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), faz clara menção ao julgado na ADI 5.420 para fundamentar sua análise em favor da proposição.
Na referida ADI 5.420, o STF declarou a constitucionalidade da modificação legislativa introduzida pela Lei 13.165/2015 no art. 108 do CE – que passou a exigir que, para que o candidato seja eleito a um cargo legislativo regido pela proporcionalidade, tenha obtido individualmente a votação igual ou superior a 10% do quociente eleitoral.
É interessante observar que a decisão do STF fundamentou seu entendimento no que chamou de “calibração entre o peso dado ao partido político e o peso dado à escolha do eleitor por determinado candidato no cálculo da distribuição das vagas do Poder Legislativo”, precisamente o mesmo tipo de decisão política que implica a Lei 14.211/2021 impugnada nas ADIs 7.228 e 7.263.
A rigor, ao instituir a “regra 80-20”, o Congresso Nacional simplesmente procedeu a uma revisão da política legislativa anterior sobre a matéria, com a mesma essência, combinando um desempenho mínimo dos partidos e a exigência de votação nominal mínima também para a distribuição das “sobras eleitorais”.
Para quem se propõe a analisar a argumentação legislativa, o exame do debate parlamentar – a partir das atas taquigráficas, em especial – é indispensável para compreender o “móvel legislativo”. No caso do PL 783/2021, as atas taquigráficas captaram com precisão a espontaneidade do autor do PL, que didaticamente explica:
O SR. CARLOS FÁVARO (PSD – MT. Pela ordem.) – Muito obrigado, Sr. Presidente.
Eu queria agradecer a todos os colegas Senadores e Senadoras e queria, basicamente, dizer aos colegas que o espírito do debate, primeiro que aconteceu. (…)
O que nós estamos fazendo, constatados alguns desajustes que, comprovadamente, ocorreram na eleição de 2020, quando se acabou com as coligações, são pequenos ajustes. (…)
Vejam: a essência desse projeto de minha autoria, tão bem relatado pelo dedicado Senador Vanderlan, o Senador Cid já compreendeu. Um exemplo clássico: a capital do meu Estado, Mato Grosso, tem 25 cadeiras na Câmara de Vereadores. Neste modelo, sem pequenos aperfeiçoamentos, 19 partidos elegeram representantes. Como é possível? Chega a ser… Olha, queria até controlar as palavras. Imaginem no encaminhamento da votação. O Presidente da sessão, o Presidente da Câmara de Vereadores diz assim: “Para encaminhar pelo partido tal… ” O líder da bancada fala por si mesmo. São 19 líderes que falam por si mesmos. Como administrar um sistema em que o Executivo tem 19 bancadas de um?
O que nós estamos querendo corrigir é que se tenha a participação de bancadas efetivas.
As transcrições acima mostram que os parlamentarem tinham perfeita clareza dos objetivos pretendidos e dos efeitos que as modificações legislativas acarretariam no mundo dos fatos. A pulverização dos partidos torna impossível manejar um sistema de coalizão dentro dos parlamentos. Só isso já basta para perceber que a pretensão das ADIs 7.228 e 7.263 vai na contramão do que almejaram os legisladores.
Por ocasião do julgamento da ADI 5.947, o ministro relator Marco Aurélio afirmou que a definição do sistema proporcional é matéria que impõe “prudência na análise de pedidos veiculados em sede objetiva e deferência às instâncias representativas, considerada a liberdade de conformação constitucionalmente franqueada ao legislador ordinário – o qual, cumpre reafirmar por dever de coerência, há que se ter em alta conta” (página 19).
Tal entendimento do relator foi adotado pela unanimidade do STF. E vale registrar que a referida ADI 5.947 tinha por objeto o mesmo art. 109, § 2º, do CE, mas na redação anterior dada pela Lei 13.488/2017. A causa de pedir da petição inicial apontava precisamente para as dificuldades que o texto normativo então vigente acarretava em termos de fragmentação partidária e perda da densidade representativa dos partidos políticos.
Na ADI 5.947, o STF julgou improcedente o pedido formulado. Inclusive, o acórdão chegou a sinalizar que a antinomia do texto legal com a EC 97/2017 deveria ser resolvida na própria arena parlamentar (página 21). Foi precisamente a esse comando do STF que atendeu o Congresso Nacional ao aprovar a Lei 14.211/2021 impugnada nas ADIs já referidas.
Como se vê, ainda existe proporcionalidade, esse é um assunto cuja definição está a cargo do Congresso Nacional e que goza de espaço de conformação legislativa. A mera discordância quanto às normas legais não as torna inconstitucionais.
Agora, caso o pedido das ADIs 7.228 e 7.263 seja acolhido pelo STF, aí sim a proporcionalidade vai acabar, porque uma decisão legislativa oriunda de um órgão representativo terá sido substituída, sem razão, por um órgão judicial. Não existe proporcionalidade sem parlamento ativo.