Museu

Projeto de Lei cria nova exceção aos direitos autorais

PL 4.007/20 altera a LDA para permitir o uso de imagens de obras por museus

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Os direitos autorais gozam de grande destaque no ordenamento jurídico nacional. Previsto no artigo 5º, incisos XXVII e XXVIII, da CRFB/88, o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de obras autorais tem status de direito fundamental. Por outro lado, também no artigo 5º, mas em seu inciso XXIII, a Constituição determina que a propriedade deve cumprir sua função social.

Sendo assim, como o sistema jurídico brasileiro é pautado na solidariedade política, econômica e social, em que a propriedade – ainda que intelectual – somente será protegida na medida em que seu exercício concreto desempenhe função merecedora de tutela[1], uma construção adequada do instituto exige a observância de sua função social.

A função social dos direitos autorais, conforme explica Sergio Branco[2], é promover o desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico. Nesse sentido, para que cumpra essa importante missão, a interpretação do instituto deve observar (i) as suas restrições intrínsecas, que dizem respeito ao objeto, à duração da proteção autoral, e às limitações estabelecidas em lei, (ii) bem como as restrições extrínsecas, relativas ao exercício do direito (como a teoria do abuso de direito).

É nesse contexto que o recente Projeto de Lei N° 4007, de 2020, de autoria do Senador Chico Rodrigues (DEM/RR), busca alterar a Lei de Direitos Autorais (LDA) para incluir no rol do artigo 46 mais uma restrição intrínseca aos direitos autorais.

Trata-se de uma proposta de permissão expressa para que não constitua infração de direitos autorais “a utilização, por museus, de imagens das obras protegidas por direitos autorais sob sua guarda, em todas as mídias e suportes existentes ou que venham a ser criados, em ações educativo-culturais, de difusão, de acessibilidade, de inclusão, e de sustentabilidade econômica, desenvolvidas no âmbito dos museus.”

Com razão, em sua justificativa, o projeto explica que “a crescente utilização dos meios digitais pela sociedade tem exigido dos museus adaptações na forma com que se relacionam com seus públicos. Embora essa tendência não seja nova, ela está sendo acelerada em função da disseminação de conhecimentos e experiências que o período de isolamento social proporcionou.”

Apesar de não parecer razoável o uso de um evento passageiro – a pandemia do COVID-19 – como justificação para alterar definitivamente a estrutura intrínseca dos direitos autorais, o PL é positivo por duas razões. A primeira é que a proposta promove a função social dos direitos autorais e dos museus; a segunda é que garante maior segurança jurídica.

Quanto ao primeiro ponto, é fundamental compreender que a Lei 11.904/09 estabelece que os museus têm como finalidade a preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.

A similaridade entre a função social dos direitos autorais e dos museus é descomunal. Por isso, os museus, sendo instituições cuja missão também é promover valores artísticos e científicos, devem ter suas atividades cada vez mais auxiliadas pelo instituto dos direitos autorais – não atrapalhadas por ele.

Em um mundo cada vez mais digitalizado, a antiquada legislação de direitos autorais precisa se adequar. O projeto de lei em debate tem grande êxito em viabilizar o cumprimento mais eficiente da função social dos museus, por meio das mídias digitais, de forma compatível com os direitos do autor.

Quanto ao segundo argumento, o projeto colabora em garantir maior segurança jurídica – tão escassa na regulação da propriedade intelectual brasileira.

Ocorre que uma das controvérsias mais importantes acerca de direitos autorais no Brasil é se as limitações e exceções previstas na legislação devem ser interpretadas como um rol taxativo ou exemplificativo. Ou seja, não há um consenso se certas utilizações de obras por terceiros, ainda que não previstas na lei, também podem ser consideradas lícitas, ou se só estaria permitida a utilização livre de obras nos limites que estão expressamente previstos na lei.

A Jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que as exceções legais são apenas explicativas[3]. Isso porque a ordem constitucional é fundada na promoção da cultura e da livre circulação de ideias e de mercado, de modo que o uso público deve ser considerado como regra, e os direitos de exclusividade como exceção.[4]

Assim, o uso de obras pertencentes ao acervo do museu já pode ser entendido como legal, mesmo que não previsto expressamente em lei. Afinal, como já visto anteriormente, tais atos estariam de acordo com a função social dos institutos.

Tal interpretação, contudo, poderia encontrar resistência no artigo 33, parágrafo 1º, da Lei 11.904/09, que determina que os museus podem produzir publicações sobre temas vinculados a seus bens culturais e peças publicitárias sobre seu acervo e suas atividades. Porém, sem prejuízo aos direitos de autor.

O dispositivo supracitado poderia frustrar as intenções dos museus, por exemplo, se combinado com o artigo 29, IX, da LDA, que estabelece que depende de autorização prévia e expressa do autor a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero.

Ou seja, o ordenamento jurídico posto não apresenta uma resposta clara para a hipótese positivada no projeto de lei. Os que assumem o posicionamento que as exceções legais aos direitos autorais são taxativas alegariam que os museus estariam agindo ilegalmente ao utilizar imagens de obras protegidas, mesmo que em ações educativo-culturais de difusão dos museus. Essa corrente ainda poderia encontrar amparo legal no artigo 33, parágrafo 1º, da Lei 11.904/09 e no artigo 29, IX, da LDA, por exemplo.

Por outro lado, aqueles que interpretam as restrições legais aos direitos autorais como exemplificativas, poderiam beber da fonte do direito civil-constitucional, presando pela primazia do cumprimento da função social do instituto e defendendo a legalidade dos atos dos museus.

 Fato é que não há precedentes vinculantes das cortes superiores nessa matéria específica. Ou seja, a defesa dos atos dos museus como excetuados extrinsecamente é argumentativa e insegura demais para pautar as atividades museológicas.

Por isso, ao menos em alguma medida, o projeto de lei colabora para a segurança dos museus, de modo que possam cumprir sua função social. Em outras palavras, trazer esse possível limite extrínseco para a esfera dos limites intrínsecos gera maior segurança jurídica e permite que os museus promovam com mais sucesso a sua função social.

Portanto, seja por promover a função social dos direitos autorais e dos museus, seja por colaborar com a segurança jurídica, o PL 4007, de 2020, é de grande valor para o ordenamento nacional. Não se trata de projeto complexo ou estruturalmente revolucionário. Mas, certamente, é útil e em acordo com o sistema jurídico civil-constitucional brasileiro.

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[1] TEPEDINO Gustavo. TEPEDINO Gustavo. A Função Social da Propriedade e o Meio Ambiente. Temas de Direito Civil – Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009; p. 187.

[2] BRANCO, Sergio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro – Uma obra em domínio público.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; p; 250. Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2017/01/O-Dominio-Publico-no-Direito-Autoral-Brasileiro.pdf

[3] VALENTE e FREITAS. Manual de direito autoral para museus, arquivos e bibliotecas. Rio de Janeiro: FGV DIREITO RIO Editora, 2017; p. 55. Disponível em:https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/19038/Manual%20de%20direito%20autoral%20para%20museus%2c%20arquivos%20e%20bibliotecas.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[4] BARBOSA, D. O Domínio Público. 20 11. P. 4 http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/dominio_do_publico.pdf

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