O debate está na pauta do dia do mainstream econômico. Em janeiro desse ano a revista The Economist estampou a questão em sua capa e fez um especial sobre o tema. A secretária do Tesouro Americano Janet Yellen ancorou a sua palestra no tema ao fazer o fechamento do Forum de Davos de 2022. Mais recentemente, na semana passada, o MIT e a Harvard Kennedy School anunciaram que estão iniciando pesquisas sobre um novo modelo econômico. Instituições, fóruns e personagens inquestionavelmente respeitados, globais e capitalistas.
Durante a apresentação de especial da The Economist, disponível na página da revista no YouTube, o jornalista responsável confidenciou que muitos CEOs de empresas ocidentais entrevistados pediam uma visão de mais longo prazo dos seus governos e que citavam a China como exemplo. Especialmente nas questões de política industrial e investimentos em infraestrutura. A matéria publicada na edição de 15 de janeiro p.p elenca quatro fatores que estão impulsionando a visão: i) políticas industriais voltaram à tona; ii) preocupação da sociedade com a mudança climática e com o emprego interno; iii) apoio à quebra de monopólios, especialmente das big techs; e, iv) reversão da curva de queda dos impostos corporativos.
Uma análise em linha com a palestra da secretária Janet Yellen. Ela sustenta que, durante a pandemia, a estratégia do governo Biden foi Keynesiana e tem como base o estímulo à demanda. No entanto, alega que o plano de Biden de Reconstrução da América seria ancorado em uma versão moderna da supply-side economics.
Esse novo modelo apresentaria uma estratégia de desenvolvimento pelo lado do estímulo à oferta. Teria um plano de investimentos públicos em infraestrutura, regulação do estado para acelerar a transição energética e incentivo à oferta de emprego interno. O governo Biden, como reconhece Janet Yellen, afasta-se da supply-side economics tradicional que se ancora no binômio menos impostos e menos regulação, ao reconhecer que esse modelo falhou em produzir riquezas para todos.
No Brasil, essa receita levaria os economistas ortodoxos a acusar a secretária Janet Yellen de pertencer à ‘turma do Mantega’ A objeção ao debate logo viria seguida da afirmação de que o Brasil não emite moeda. Em reducionismo impreciso, pois não se trata apenas do debate sobre teto de gasto ou flexibilidade fiscal. Mas, sim, de revisitar o papel do estado no desenvolvimento econômico. Um debate que ainda hoje ilumina as políticas públicas, como nos relembra Nicholas Wapshott, em seu magistral Keynes vs Hayek – The Classh That Defined Modern Economics.
Aqui no Brasil esse debate está interditado. Parece ter sido contaminado por razões ideológicas, como a vacina. E o resultado pode ser igualmente desastroso.
De um lado, a maioria dos atores do mercado e os formuladores com viés econômico liberal insistem que o debate tenha o centro de gravidade na questão fiscal com pouco espaço para uma proatividade do estado na agenda de desenvolvimento econômico. Essa posição hermética tem implicações na capacidade de implementação de políticas públicas, mesmo as transformadoras. Acontece que a sociedade tem indicado, através das suas preferências eleitorais, que essa posição ortodoxa pode dificultar a satisfação de demandas reprimidas por educação, saúde e assistência social e por um novo modelo de crescimento sustentável puxado por uma economia verde e digital. Não é à toa que muitos analistas têm apontado que esse apego a um modelo ortodoxo impeditivo do endereçamento dessa agenda pode ser a causa da inviabilidade eleitoral de seus arautos. E aí esses arautos passam a culpar o eleitor, que não adere em maioria à tese ‘axiomática’.
De outro, a força política com mais chance de ganhar as eleições nacionais, o PT, pode sinalizar uma estratégia ancorada no incentivo ao consumo e ao investimento em setores estratégicos, com alguma flexibilidade fiscal. Que, para muitos, ainda seria insuficiente. Essa estratégia poderia ser transitória e evolutiva à medida em que a fase aguda da fraqueza de demanda ficasse para trás, como explicou a secretária americana. O problema é que a interdição a esse debate dificulta a avaliação sobre as soluções que poderiam ser adotadas pelo governo que vier a ser eleito em outubro. Ficamos sem maiores pistas sobre se um eventual governo do PT consideraria essa sofisticação do modelo.
O economista André Lara Resende, um dos formuladores do Plano Real, fez a seguinte análise dos motivos para a resistência ao debate de novos conceitos. Em entrevista à Revista da Unicamp, em 2019, no contexto do debate em torno da Teoria Moderna da Moeda: ‘Penso que tem uma combinação política, de interesses constituídos. Esses interesses políticos não me parecem ser conscientemente organizados. Isso é grave porque são interesses inconscientes. E existe também um fator psicológico, do ponto de vista dos economistas, que enxergam nisso uma perda de status e poder. Os economistas são percebidos como técnicos de alta competência, que falam uma linguagem matematizada, hermética. Quando alguém aponta que eles estão dizendo a coisa errada há muitos anos, eles resistem’. Um argumento que ele desenvolve em profundidade em seu último livro ‘Consenso e contrassenso – por uma economia não dogmática’.
Na moldura psicológica desenhada por André Lara Resende, o país vai interditando o debate sobre o tamanho e papel do Estado. Cria-se uma suposta impossibilidade de convergência, justamente no ano eleitoral, em que uma coalizão para soerguimento do país é imperiosa para garantir a governabilidade e afastar de vez o obscurantismo desses últimos quatro anos.
Não se pode deixar de reconhecer que existem convergências sobre a necessidade do combate à desigualdade e a importância de programas sociais. Mas isso não esgota a centralidade do tema do papel do Estado. São convergências superficiais e distrativas. Como observa André Lara Resende, o ego-envolvimento e as certezas parecem ser tão grandes, aliados ao medo da perda de poder, que bloqueiam qualquer abertura.
Entretanto, como é regra em gestão, existem coisas muito importantes para serem deixadas integralmente nas mãos de técnicos. Esse é claramente um dos casos. Trata-se de um tema óbvio e, ao mesmo tempo, muito relevante para a definição de rumos de que se ressente o nosso Brasil. Urge que esse debate seja enfrentado, inclusive por lideranças empresariais e da sociedade civil. Não se trata de concordar com Guido Mantega, mas de refletir sobre reflexões como a de Janet Yellen. Não dizemos isso como ofensa ao Ex-Ministro, mas como uma constatação do peso e da credibilidade acadêmica mundial de Janet Yellen e das instituições engajadas neste debate. Na referida edição, a insuspeita The Economist mantém-se cética quanto ao novo papel do estado adotado por países desenvolvidos e pela China. Preocupa-se com os riscos de ineficiência e de prevalência dos interesses estabelecidos. Mas não deixa de se alinhar favoravelmente a um modelo de estado que intervenha para melhorar o funcionamento dos mercados, através, por exemplo, da tributação das atividades emissoras de carbono para fomentar tecnologias ambientalmente sustentáveis. Que financie pesquisa e desenvolvimento (P&D). E que desenvolva programas de benefícios que protejam os trabalhadores e os pobres.
Essa pode não ser a tarefa que muitos dos possíveis personagens gostariam de capitanear. Mas, trata-se da imposição da realidade de um cenário eleitoral que se vai desenhando na direção das mudanças amplamente ansiadas pela sociedade brasileira. Se esse diálogo não for aberto, o país estará mais uma vez desperdiçando oportunidade para experimentar um modelo de crescimento econômico social e ambientalmente sustentável que não pode prescindir do papel de um estado ativo, eficiente e que não seja apropriado por interesses privados e corporativos.