Independência judicial

Corte IDH não considera Peru culpado por destituição de juiz

Mudrovitsch e Poisot consideraram que Corte deixou de explorar grau de motivação em processo administrativo aplicado a juízes

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Bandeira do Peru / Crédito: Freepik

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) absolveu o Peru pela destituição de um juiz após a instauração de um processo disciplinar ocorrido em 1996. Em sentença divulgada na última quinta-feira, o Tribunal considerou que o Estado peruano não é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais, ao princípio da legalidade e retroatividade, dos direitos políticos e do direito à proteção judicial, previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contra o juiz peruano Humberto Cajahuanca Vásquez. 

Em 21 de junho de 1995, Cajahuanca Vásquez, então presidente do Tribunal Superior de Justiça de Huánuco, convocou uma reunião para analisar o pedido de licença de outro juiz. A autorização foi concedida pelos magistrados, e um juiz da Quinta Vara Criminal foi indicado na reunião como suplente. No entanto, o juiz designado para o cargo acabou sendo outro, Héctor Fidel Cordero Bernal, da Quarta Vara Criminal. 

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Em 11 de julho de 1995, já nomeado, Héctor Fidel Cordero Bernal concedeu liberdade incondicional a duas pessoas que estavam sendo processadas por tráfico de drogas. O chamado Gabinete de Controle Judiciário então iniciou uma investigação, que revelou uma série de irregularidades na nomeação do novo juiz suplente. O órgão, então, propôs a destituição de Cajahuanca Vásquez.

O Conselho Executivo do Poder Judiciário aprovou a proposta e solicitou ao Conselho Judiciário Nacional a exoneração de Cajahuanca. Os recursos apresentados por ele não foram acolhidos, e Cajahuanca acabou destituído do cargo em 14 de agosto de 1996. 

Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a sanção aplicada a Cajahuanca Vásquez não apresentou motivação adequada. O órgão alegou violação do princípio de legalidade, ao considerar que a causa da destituição foi aberta e vaga.

Além disso, considerou que o Estado peruano violou os direitos de recorrer à decisão e o direito à proteção judicial, uma vez que não existia um recurso no âmbito administrativo ou judicial para que fosse realizada uma revisão integral do processo sancionatório por parte de uma autoridade hierárquica e porque os órgãos competentes não fizeram uma análise integral do fato nem do direito relativo à decisão de destituição de Cajahuanca Vásquez. 

Corte IDH entendeu de forma diferente

O caso coincide, em alguns aspectos, com o mesmo marco fático analisado na sentença do caso Cordero Bernal Vs Peru. Em fevereiro de 2021, a Corte decidiu que o Estado peruano não era responsável pela destituição do juiz Cordero Bernal, que fora designado por Cajahuanca Vásquez e que, assim como ele, acabara destituído do cargo. O processo disciplinar contra Cordero Bernal e Cajahuanca Vásquez tramitou de maneira conjunta à época. 

Na sentença anunciada na última semana, a Corte afirmou que a destituição do juiz Cajahuanca Vásquez foi resultado de um processo disciplinar por uma falta grave, conduzido por autoridades do Poder Judiciário e de acordo com procedimentos previstos na Constituição e na lei peruanas, com fundamento em uma causa legalmente estabelecida. 

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Para o Tribunal, a causa da destituição se referia a um caso grave que comprometia a dignidade do cargo, mas reconhece que a norma tem caráter aberto, o que poderia levar a um comprometimento do princípio de legalidade consagrado na Convenção Americana. 

Na visão da maioria dos julgadores, porém, o processo disciplinar instaurado contra Cajahuanca Vásquez abordou em detalhes as irregularidades nas quais ele teria incorrido, assim como os fundamentos jurídicos que basearam sua destituição – em particular, as razões que permitiriam afirmar que sua conduta afetou o exercício da função judicial e que indicariam uma infração disciplinar grave, para a qual se deveria aplicar a sanção mais severa. Para a Corte, a resolução pela qual Cajahuanca foi destituído foi devidamente motivada, a exemplo do ocorrido no caso Cordero Bernal Vs Peru. 

“Esta Corte já estabeleceu de forma reiterada que a precisão de uma norma sancionatória de natureza aberta pode ser diferente à requerida pelo princípio de legalidade em matéria penal, pela natureza dos conflitos que cada uma é destinada a resolver. Isso quer dizer que os problemas de indeterminação de um tipo disciplinar não podem ser examinados de forma abstrata, mas à luz da motivação do que se julga, no momento de sua aplicação. Assim, a aplicação de um tipo disciplinar aberto não constitui, a princípio, uma violação do princípio de legalidade ou do direito ao devido processo, sempre que sejam respeitados os parâmetros de jurisprudência definidos para tal efeito”, afirmaram a maioria dos magistrados no texto da sentença. 

A Corte reforçou que Cajahuanca Vásquez não foi submetido a um processo disciplinar pelo conteúdo das suas resoluções, sentenças ou pareceres judiciais, mas sim por improbidade funcional no cumprimento das responsabilidades administrativas no cargo que ocupava. 

Voto dissidente 

Os juízes Rodrigo Mudrovitsch (Brasil) e Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México) apresentaram voto conjunto dissidente.

“Acreditamos que se perdeu a oportunidade de reafirmar a jurisprudência interamericana sobre independência judicial e de explorar detalhadamente o grau de motivação exigido em um processo administrativo sancionatório aplicado a juízes, no qual estão envolvidos tipos disciplinares abertos ou indeterminados”, afirmaram no texto de exposição do voto dissidente, ressaltando que, nestes casos, “a exigência de motivação é ainda maior do que em outros processos disciplinares”.

A discordância se centrou na conclusão adotada pela posição majoritária a respeito da não responsabilidade do Estado peruano pelas violações alegadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e por Cajahuanca Vásquez. 

Para Mudrovitsch e Ferrer Mac-Gregor Poisot, a Corte deveria ter considerado outra abordagem na análise da independência judicial e do princípio da legalidade, bem como do devido processo e da eficácia do recurso de proteção a Cajahuanca Vásquez.  

“Consideramos que o caso justificava a declaração de violação do direito ao acesso a cargos públicos em condições de igualdade e do direito ao trabalho, como fez a Corte Interamericana em casos anteriores quando se trata de destituição arbitrária de juízes”, afirmaram os juízes em seu voto dissidente. 

Lembraram ainda que, no processo penal, Cajahuanca Vásquez foi absolvido das acusações devido à ação de revisão da sentença decidida a seu favor pela Suprema Corte de Justiça, “apesar de terem sido os mesmos fatos que levaram à destituição do senhor Cajahuanca de seu cargo pela CNM no processo disciplinar”.

Para Mudrovitsch e Ferrer Mac-Gregor Poisot, a norma sancionatória peruana aplicada ao processo de Cajahuanca é vaga e não especifica o que poderia implicar “um fato grave” ou “uma conduta que poderia ser qualificada como grave”, tampouco o que implicaria “a dignidade do cargo” ou “desconsiderar o conceito de público”.

“Deve-se especificar que não foi indicado pelo Estado que tivessem sido desenvolvidos critérios objetivos normativos ou jurisprudenciais/interpretativos que permitissem esclarecer a imprecisão desses termos, cujo teor, especialmente aberto, implicava riscos para a independência do Poder Judiciário, especialmente quando são imputados possíveis atos de corrupção”, afirmaram os dois juízes da Corte.

Para eles, com a destituição arbitrária de Cajahuanca Vásquez, o Tribunal também deveria ter declarado violação ao direito do trabalho. Para isso citam precedentes recentes da Corte IDH, como o caso Aguinaga Aillón Vs. Equador, no qual se considerou que a destituição de um juiz também deve ser analisada pela perspectiva do direito ao trabalho, na dimensão de estabilidade trabalhista.

“Neste precedente, a Corte Interamericana reitera que também é necessário que os operadores de justiça tenham ‘estabilidade no emprego’ como garantia diferenciada e reforçada de independência judicial”, explicam Mudrovitsch e Ferrer Mac-Gregor Poisot.

Posição majoritária X voto dissidente

Para especialistas ouvidos pelo JOTA, a posição majoritária traz elementos importantes, mas também fragilidades que foram expostas no voto dissidente. 

“A sentença da Corte IDH reitera a impossibilidade de punição a juízes ou promotores por suas posições jurídicas. Essa posição reiterada da Corte IDH é importante para o Brasil, pois impede o cerceamento da independência funcional dos magistrados, bem como o efeito inibidor à adoção de posicionamentos jurídicos divergentes da adotada pelos integrantes dos órgãos correcionais”, afirma André de Carvalho Ramos, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP.

Ao mesmo tempo, ressalta, a posição dissidente também é relevante uma vez que foi pautada na necessidade de uma “motivação reforçada” nas sanções administrativas que levem à perda ou destituição de cargos de magistrados. 

“Quando há conceitos indeterminados, como por exemplo “violar o decoro”, não é suficiente apenas descrever os fatos e indicar a norma aplicada. É necessário que existam critérios objetivos pré-estabelecidos que auxiliem o órgão sancionador a concluir objetivamente que o comportamento se enquadra na norma. Além disso, é exigida uma motivação reforçada para eliminar qualquer dúvida de arbitrariedade”, explica. 

A posição dissidente, completa o professor da USP, aponta a necessidade de acesso amplo à revisão judicial e o respeito ao direito ao trabalho. 

“Em importante ponto de reflexão para o Brasil, a proteção da independência judicial requer que a destituição de juízes seja considerada como último recurso em matéria disciplinar judicial”, destaca.

Para o doutor em Direito Público Ademar Borges, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), a posição majoritária da Corte desconsidera que a imprecisão da norma vigente no Peru à época sobre o que configuraria fato grave que comprometesse a dignidade no cargo não fora compensada pela existência de jurisprudência clara sobre o tema.

“A posição majoritária afirma que normas administrativas não precisam ter a mesma precisão de normas penais. Mas também não diz a que grau de determinação essas normas devem estar submetidas, de modo que uma norma absolutamente aberta possa levar à destituição de juízes. Nesse caso isso fica ainda mais acentuado porque a decisão que destituiu o juiz não demonstrou existência de jurisprudência que suprisse a imprecisão da norma sancionadora”, afirma Ademar Borges. 

Quanto mais aberta uma norma, explica, maior deve ser a determinação do seu conteúdo pela jurisprudência para garantir que os destinatários dessa norma conheçam seu conteúdo previamente à instauração dos processos. 

“Essa é uma dimensão importante do Estado de Direito. As normas devem ser prévias e seu sentido deve poder ser captado antes da instauração dos processos. Não se pode permitir que o conteúdo da norma de destituição do magistrado seja construído no caso concreto”, diz.

Para Ademar Borges, no caso de juízes devem ser aplicados critérios ainda mais rigorosos dos pontos de vista legislativo e jurisprudencial em função da potencial afetação da independência do Poder Judiciário. 

“Se de maneira geral as normas sancionadoras já devem ter preocupação com um maior grau de determinação e precisão, em relação aos juízes essa preocupação deve ser ainda mais intensa”, afirma. “Isso porque a possibilidade de destituição de juízes com base em normas cujo sentido mal se conhece com antecipação pode dar ensejo a retaliações a juízes e a instrumentos acionados para amedrontá-los.” 

O professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e juiz substituto de segundo grau no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC) Alexandre Morais da Rosa reforça que a comprovação de má conduta pode ser passível de punições penais ou administrativas, mas que este não pode ser um conceito abstrato. É preciso haver densidade fática. E no caso Cajahuanca Vásquez, afirma, há uma lacuna no que se refere à tipicidade. 

Além disso, diz, o voto dissidente traz argumentos importantes que não foram devidamente debatidos na posição majoritária. 

“Quando um novo argumento é apresentado, deveria ocorrer uma reanálise dos argumentos anteriores. O voto dissidente traz argumentos relevantes que deveriam ter sido enfrentados de maneira mais direta pelo voto vencedor, especificamente no que se refere ao direito ao trabalho, acesso à magistratura e também à devida proteção do artigo 25, ou seja, à devida diligência em relação aos direitos e garantias individuais do autor”, afirma. 

O artigo 25 da Convenção Americana prevê a obrigação de os Estados membros garantirem, a todas as pessoas sob sua jurisdição, um recurso judicial simples, rápido e eficaz contra atos que violem seus direitos fundamentais. 

No voto dissidente, os juízes afirmam que embora Cajahuanca Vásquez tenha tido acesso ao recurso de amparo, este não constituiu um recurso judicial eficaz que lhe permitisse expor, perante um juiz ou tribunal competente, possíveis atos que violassem direitos fundamentais. 

“O artigo 25 fala da devida proteção judicial: não basta ter previsão formal dos recursos. Cajahuanca apresenta recursos que são negados não pelo mérito, mas por aspectos formais que impediram a devida proteção judicial em um Estado de Direito e a vitaliciedade do cargo. É um aspecto formal grave, relacionado a uma postura omissa dos órgãos de revisão”, explica Morais da Rosa. 

Participaram do julgamento do caso os juízes Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Nancy Hernández López (Costa Rica); Verónica Gómez (Argentina); Patricia Pérez Goldberg (Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil).

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