SUPRA

Covid-19 e Marco Legal da Primeira Infância: novo palco para um velho dilema do STF

Para poder ser mais na defesa dos direitos dos presos e das presas, o Supremo precisa ser menos

Foto: César Ogata / SECOM/ Fotos Públicas

O alastramento perigoso da Covid-19 e a situação vulnerável de milhares de crianças no país em razão da persecução penal de suas mães trouxe a mais recente repetição do velho embate entre, de um lado, o que o Supremo Tribunal Federal e as partes que o acionam gostariam que os ministros pudessem fazer e, de outro, o que o Tribunal constitucionalmente de fato tem capacidade de decidir. O pano de fundo, dessa vez, é o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) e sua efetividade.

Duas decisões monocráticas nos últimos dias evidenciaram o contraste entre esse desejo e realidade.

A primeira foi na ADPF 3471, na qual o Supremo Tribunal Federal adotou pela primeira vez a polêmica tese do “estado de coisas inconstitucional”. Em 16 de março de 2020, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) pediu na mesma ação medidas imediatas do Supremo para frear a disseminação do COVID-19 entre a população carcerária.

O IDDD solicitou, conforme previsão do Marco Legal da Primeira Infância, a concessão de regime domiciliar às gestantes e lactantes encarceradas. O Marco alterou, dentre outros dispositivos, as possibilidades de substituição da pena preventiva pela domiciliar, previstas no artigo 318 do Código de Processo Penal. O relator da ação, ministro Marco Aurélio, negou seguimento ao pedido pois o IDDD não é parte na ação, apenas amicus curiae. Mas “conclamou” os juízos competentes a seguir várias orientações diante da pandemia que afeta o país, entre elas, o regime domiciliar para gestantes e lactantes.

No plenário, Marco Aurélio esclareceu que não ordenou ou decidiu pela soltura de quaisquer presos, mas apenas realizou conclamação aos magistrados para que seguissem as sugestões. Qual o efeito jurídico possível do clamor do ministro? Difícil dizer.

A maioria dos ministros rejeitou as recomendações aos juízos de execução, entendendo que na atual conjuntura o Judiciário deve seguir as orientações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e de portaria conjunta dos Ministérios da Saúde e da Justiça e Segurança Pública.

Citada várias vezes pelos ministros, a Recomendação nº 62 de 17 de março de 2020 do CNJ recomenda que tribunais e magistrados adotem medidas preventivas à propagação da infecção em estabelecimentos prisionais e socioeducativos. Devem reavaliar, por exemplo, as prisões provisórias, sobretudo nos casos de grupos mais vulneráveis, como as gestantes e lactantes, no espírito inclusive do Marco Legal da Primeira Infância, e de pessoas com deficiência, indígenas e idosos ou quando o estabelecimento estiver superlotado ou sem atendimento médico.

A decisão monocrática de Marco Aurélio foi mais direta do que o CNJ sobre como o juízo responsável ‘estaria conclamado a’ proceder. O pedido bem intencionado, porém processualmente inviável do IDDD e o caminho encontrado pelo ministro para acatar o pedido – a “conclamação” – encontraram freio na maioria do plenário, que sinalizou ser o CNJ a via adequada para alcançar não exatamente todos os objetivos do pleito, mas ao menos todos aqueles juridicamente viáveis.

A segunda decisão monocrática veio pouco depois, emitida pelo ministro Ricardo Lewandowski no HC 143641. Em 2018, o STF concedeu HC coletivo, com base no Marco Legal da Primeira Infância, determinando a substituição da prisão preventiva por domiciliar para mulheres presas gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou ainda de pessoas com deficiência em todo o Brasil. Lewandowski negou pedido para que os efeitos da decisão anterior, que abrangia apenas mulheres em prisão preventiva, fossem ampliados de forma genérica para presas provisórias ou definitivas. Defensoria Pública do Estado de São Paulo propôs o alvará coletivo de soltura também na condição de amicus e não parte. Assim como o plenário dias antes, Lewandowski apontou a impossibilidade processual do pedido e sinalizou a importância do papel do CNJ com sua Recomendação, afastando omissão normativa.

Lewandowski determinou que os órgãos estaduais penitenciários e socioeducativos, o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e outros responsáveis, informassem, em 48 horas, as medidas tomadas no âmbito de suas competências para conter a pandemia nas unidades prisionais; se existe suspeita de contaminação nesses espaços; e como os devidos cuidados serão tomados caso a resposta seja positiva. É medida salutar, mas possivelmente tão simbólica quanto a conclamação de Marco Aurélio.

O Supremo deve decidir sobre o assunto novamente, na ADPF 660, proposta recentemente pela Associação Nacional de Membros do Ministério Público, questionando dispositivos da Recomendação do CNJ. Os dispositivos ofenderiam o direito individual e coletivo à segurança, inclusive à segurança sanitária, o direito social à saúde e o princípio da legalidade, e permitirão soltura em massa.

O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), autor da ADPF 347, em conjunto com as Defensorias Públicas do Estado do Rio de Janeiro e do Estado de São Paulo, a Conectas Direitos Humanos e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), ingressou com novo pedido cautelar na ação. Dentre os muitos requerimentos estão a revisão e substituição das prisões preventivas pelas medidas cautelares alternativas do art. 319 do CPP ou prisão domiciliar de gestantes, lactantes, mães ou responsáveis por pessoa menor de 12 anos ou com deficiência.

Nesse momento, no entanto, é importante avaliar o significado dessas duas decisões recentes do Supremo para a efetividade do Marco Legal da Primeira Infância. Existem vários elementos em comum entre elas.

Primeiro, ambas foram provocadas por pedidos (talvez sabidamente) impossíveis sob o ponto de vista processual. É plausível que organizações e grupos de interesse vejam valor em decisões primordialmente simbólicas e de difícil cumprimento produzidas pelo Supremo nos últimos anos.

Segundo, os dois pedidos foram feitos no bojo de processos que culminaram com decisões de enorme visibilidade e que foram festejadas como grandes vitórias dos direitos constitucionais. Mas em ambos os casos a decisão nunca foi totalmente cumprida. É possível que o IDDD e a Defensoria de SP tenham visto melhores chances em uma via processualmente impossível, porém em dois processos emblemáticos, apostando que justamente por essa razão o Supremo estaria diante de um grande ônus argumentativo para negar os pedidos. Ou talvez os amici presumissem o insucesso legal do pedido, mas estivessem mais interessados no potencial simbólico de usar como arena de debates esses processos.

Terceiro, tanto a ADPF quanto o HC, com seus pedidos originais e aqueles feitos nos últimos dias, parecem ensinar uma lição sobre os limites de possibilidade de decisões do Supremo, além de uma sobre a importância de não subestimar o que pode ser alcançado pelo CNJ. A efetividade prática das medidas para garantia dos direitos dos apenados e dos dispositivos do Marco Legal da Primeira Infância parece apontar o Conselho como o melhor caminho. A recomendação do CNJ traz hipóteses mais abrangentes de atuação para os magistrados diante da pandemia, as quais inclusive encontram fundamento de aplicação no próprio Marco.

O CNJ recomendou em várias passagens a aplicação preferencial das medidas alternativas à privação de liberdade das mães ou responsáveis por crianças de até 12 anos, reforçando a ideia de que presença dessas pessoas em um espaço de total vulnerabilidade tem impactos significativos para a saúde e o bem-estar tanto das mães quanto de seus filhos. Por outro lado, a recomendação do CNJ não tem caráter vinculante, o que torna sua aplicação dependente da discricionariedade de cada juiz.

Na última semana, alguns magistrados pelo país chegaram a aplicá-las, inclusive porque pedidos com base nelas e nas decisões citadas acima começaram a aparecer. As petições nº 15.386/2020, 15.387/2020, 15.425/2020, 15.759/2020 e 17.446/2020, que surgiram na própria ADPF 347 após a decisão do ministro Marco Aurélio, ilustram a situação.

No entanto, mesmo a efetividade simbólica que provavelmente também era buscada pelos amici curiae pode gradualmente ter mais potencial no CNJ e em outros órgãos de cúpula com competência específica e administrativa. Muitos já perceberam que o impacto que decisões do Supremo causavam na opinião pública há dez anos não necessariamente continua se repetindo, após anos de uso excessivo de decisões monocráticas e de tantas decisões do plenário cumulando discurso grandioso a pouca viabilidade de efeito prático.

O Brasil tem perdido a sensibilidade para decisões bombásticas do Supremo e os ministros, assim, têm cada vez menos a capacidade de mobilizar por meio do valor simbólico de suas decisões. As conclamações já não pesam como antes.

É intuitivo que os grupos de interesse busquem o palco do Supremo enquanto esse é visto como simbolicamente decisivo. Mas esse protagonismo é garantido principalmente por aqueles que escolhem levar seu pedido primeiro ou apenas ao Supremo. Se redirecionarem sua mira para as vias abertas no CNJ, no Superior Tribunal de Justiça, no Tribunal de Contas da União, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e assim por diante, esses atores contribuirão de forma decisiva para reposicionar o foco do protagonismo.

Aparentemente, a exploração de outras frentes de batalha simbólica alternativas ao Supremo seria contrária ao reconhecimento da importância do papel do Tribunal no país. Porém se a manutenção do protagonismo é mesmo o desejo dos ministros, é preciso que eles escolham de maneira mais seletiva o quê e o quanto decidem. Alguns membros da Corte já perceberam que quanto maior o foco, mais poder e mais prestígio o Supremo mantém. Na velha lição de Joaquim Falcão, para poder ser mais na defesa dos direitos dos presos e das presas, especialmente no contexto do Marco Legal da Primeira Infância, o Supremo precisa ser menos.

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1 A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), prevista no art. 102, par. 1º da Constituição e regulamentada pela Lei nº 9.882/99, é uma ação residual a ser apreciada pelo STF e destinada a evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público (União, Estados etc.).

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