Logo depois de abrir a sessão desta quarta-feira (22/6), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, rememorou que o ministro Gilmar Mendes tomou posse há 20 anos. Em seguida chamou o ministro Toffoli para saudá-lo em nome de todos os magistrados. Leia a seguir a homenagem completa e o discurso de Mendes.
Homenagem lida por Dias Toffoli
Boa tarde, senhor presidente, boa tarde às senhoras Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, senhores Ministros, a quem cumprimento em nome do Ministro do Gilmar Mendes.
Em primeiro lugar, devo pedir desculpas, em especial ao nosso decano, por não estar presencialmente fazendo essa oração em homenagem ao Ministro Gilmar Mendes.
No último dia 20 de junho, como Vossa Excelência acaba de afirmar, o Ministro Gilmar Mendes completou 20 anos, duas décadas de Supremo Tribunal Federal.
É uma alegria e uma honra, em nome da Corte e de todos os Ministros, prestar a devida homenagem a tão notável magistrado.
O Ministro Gilmar Mendes é jurista de predicados singulares. É certamente o mais notável constitucionalista brasileiro vivo.
É também a grande mente por trás da dimensão e da relevância assumidas pela jurisdição constitucional, em especial após a Constituição de 1988, da qual somos todos guardiões
Sob a influência determinante de suas teses, ainda de antes de ser magistrado, o Tribunal transitou do papel de última instância recursal, produtora de julgamentos individuais, para o de uma Corte Constitucional, defensora dos direitos fundamentais, e uma Corte que decide questões sociais e institucionais de alta relevância e de impacto em toda a sociedade.
O homenageado é, ainda, um humanista e um agente da concretização dos direitos humanos e fundamentais, escritos na Constituição de 1988. E digo concretização, porque para além do que está no papel, são ações humanas que fazem com que esses direitos prevaleçam.
Por isso, estamos celebrando hoje não somente a brilhante trajetória do Ministro Gilmar Mendes, mas tudo o que ele significa para o Supremo Tribunal Federal, para o Poder Judiciário e também para toda a sociedade brasileira. E também com repercussões mundo afora.
Gilmar Mendes nasceu em Diamantino, no Mato Grosso, mas foi em Brasília, a capital federal, a terra escolhida para trilhar o que se revelaria uma brilhante jornada e uma das carreiras nacionais mais importantes em nossa história.
Sua luminosa caminhada iniciou com a graduação em direito na Universidade de Brasília.
Na UnB, também obteve o título de mestre, sob a orientação do eminente e notável Ministro José Carlos Moreira Alves.
Obteve ainda um segundo mestrado e o doutorado, com o predicado Magna cum laudae, pela Universidade de Münster, na Alemanha.
Como produto dessas qualificações, Sua Excelência produziu textos seminais para o que viriam a ser as modernas doutrina e jurisprudência do controle de constitucionalidade no Brasil. Sem Sua Excelência, e a história de sua vida antes de ser Ministro da nossa Corte, não teríamos instrumentos para nossa atuação, que tem origem na mente brilhante de Gilmar Mendes.
Destaco a sua tese de doutorado “O Controle abstrato de normas perante a Corte Constitucional Alemã e perante o Supremo Tribunal Federal”, trata-se de obra magnânima de direito comparado.
Com base nesses estudos, ainda no final da década de 80 e depois, no início do século XXI, Gilmar Mendes sustentava teses visionárias em prol do fortalecimento da jurisdição constitucional e do seu papel na tutela dos direitos fundamentais.
Produziu uma extensa lista de obras basilares para o estudo do direito constitucional.
Duas de suas obras já foram contempladas, na categoria Direito, pelo mais tradicional prêmio literário do Brasil, o famoso Prêmio Jabuti:
– O seu clássico “Curso de Direito Constitucional”, obra escrita juntamente com o Procurador e Professor Paulo Gustavo Gonet Branco; e
– o livro “Comentários à Constituição do Brasil”, que se destacam entre tantas obras.
Gilmar Mendes segue exercendo intensa e contínua atividade docente e acadêmica, honrando o ensino e, sem dúvida nenhuma, aperfeiçoando a pesquisa jurídica no Brasil.
Na sua trajetória profissional, foi Procurador da República. Ocupou diversos cargos estratégicos na Administração Pública Federal, como Consultor-Jurídico da Secretaria-Geral da Presidência da República, Assessor Técnico do Ministério da Justiça, na gestão do também colega de sempre, Ministro Nelson Jobim, foi também Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil, por vários anos, e Advogado-Geral da União.
Na administração pública, participou da elaboração de diversas propostas legislativas que resultaram na ampliação dos instrumentos do controle concentrado de constitucionalidade e no desenvolvimento processual de todos esses diversos e novos institutos.
Juntamente com o Professor Ives Gandra, foi autor do Projeto de Emenda Constitucional nº 130/92, que originou a Emenda Constitucional nº 3/1993, por meio da qual foi instituída a ação declaratória de constitucionalidade.
E aqui também, repito, não temos o tempo de uma sessão para detalhar todas as proposições que tiveram como origem sua mente e tampouco para sua gestão na Secretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil e na AGU.
Trouxe para todos esses cargos sua história, porque transitei em alguns cargos, e em todos eles, até hoje, todos que tiveram a alegria e a possibilidade de trabalharem, fazem a referência como alguém que mais marcou os lugares por onde passou.
Participou também da elaboração dos anteprojetos que deram origem às leis da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória, da ação por omissão e da arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Suas contribuições teóricas foram determinantes para a ampliação da participação social no processo decisório do STF, com a previsão legal das figuras do amicus curiae e das audiências públicas, as quais, hoje, concretizam o ideal de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.
E graças à sua atuação funcional e acadêmica destacada, Gilmar Ferreira Mendes, lá de Diamantino, foi indicado para o Supremo Tribunal Federal pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo tomado posse nessa egrégia Corte em 20 de junho de 2002.
Nesses 20 anos, o Ministro Gilmar Mendes proferiu o total de 195.434 decisões (entre colegiadas e monocráticas).
Em sua longa trajetória como juiz constitucional, o Ministro Gilmar Mendes tem sido aguerrido defensor dos direitos fundamentais, dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana.
Sempre demonstrando alta sensibilidade diante da realidade social brasileira e da situação dos grupos sociais em situação de vulnerabilidade.
São da lavra do eminente Ministro Gilmar Mendes decisões paradigmáticas em defesa da dignidade e das garantias processuais de réus e investigados. Dentre tantas, destaco:
– A afirmação de que a falta de estabelecimento penal compatível com a sentença não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso;
– Reconhecimento do direito à indenização por danos morais ao preso submetido a condições degradantes;
– Fixação de condicionantes à entrada forçada em domicílio sem autorização judicial;
– Inconstitucionalidade da condução coercitiva para a realização de interrogatório; e
– Possibilidade de conversão da prisão provisória em prisão domiciliar de pais e responsáveis por crianças menores ou por pais de pessoas com deficiência.
No contexto do enfrentamento da pandemia da Covid-19, Sua Excelência foi o relator da ADPF 811, em que foi reconhecida a possibilidade de restrições temporárias de atividades religiosas presenciais durante a pandemia.
O homenageado foi, ainda, o redator do julgamento pelo qual essa Suprema Corte determinou a instituição da renda básica de cidadania como meio de combate à pobreza e à extrema pobreza no Brasil.
Sua aguçada sensibilidade social também se manifestou no julgamento em que foi declarada a inconstitucionalidade do critério da renda per capita de 1/4 do salário mínimo para a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas com deficiência.
O Ministro foi o redator do acórdão em que foi reconhecido o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, a partir do que se assentou a impossibilidade de prisão civil do depositário infiel.
Essa decisão contribuiu decisivamente para o reconhecimento da força normativa dos tratados de direitos humanos na ordem jurídica interna.
Devemos, em grande medida, ao homenageado a construção de uma jurisprudência robusta voltada à densificação e à efetividade dos institutos da jurisdição constitucional previstos no nosso pacto fundante atual, a Constituição de 1988 e na legislação.
O Ministro Gilmar Mendes teve protagonismo na definição dos contornos de atuação do STF no controle de omissões inconstitucionais.
É da lavra de Vossa Excelência o paradigmático julgamento do Mandado de Injunção nº 708, relativo ao direito de greve de servidores públicos, em que foi reconhecida a omissão na regulação desse direito e determinada a aplicação analógica da Lei Geral sobre Direito de Greve.
Destaco, ainda, a elaboração jurisprudencial dos institutos da modulação dos efeitos da decisão, superando aquela ideia vetusta de que qualquer decisão de inconstitucionalidade gerasse total nulidade, do efeito vinculante, da interpretação conforme à Constituição, dos requisitos de cabimento da arguição de descumprimento fundamental, dentre outros.
O Ministro Gilmar Mendes também se destacou por sua gestão primorosa como Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, durante o biênio 2008-2010.
Na qualidade de Presidente do STF, Sua Excelência assinou o Segundo Pacto Republicano, pelo qual os Poderes Públicos se comprometeram a promover um sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, para além de permitir as legislações de transparência e combate à corrupção, previstas nesse pacto republicano.
Um dos principais resultados desses esforços foi o fortalecimento da Defensoria Pública, o Ministro Gilmar Mendes trabalhou incansavelmente nesse sentido, dando concretude ao postulado do acesso universal à Justiça.
Ainda em sua gestão, diversos expedientes de racionalização da prestação jurisdicional foram adotados, a exemplo de medidas para tornar efetivos os institutos da Repercussão Geral e também da Súmula Vinculante.
Hoje, todos nós, e a sociedade como um todo, colhemos os frutos desse impulso dado pelo Ministro Gilmar Mendes, evidenciados pela redução significativa do acervo do Tribunal.
Sua Excelência foi o terceiro presidente do Conselho Nacional de Justiça, tendo contribuído decisivamente para a ampliação das atribuições do órgão, o qual se elevou à qualidade de coordenador das políticas judiciárias nacionais.
À frente do CNJ, o perfil humanista e sua sensibilidade vieram ainda mais à tona, com uma série de projetos de promoção dos direitos humanos e da cidadania.
Por meio dos Mutirões Carcerários, foram deferidos mais de 20 mil alvarás de soltura a pessoas que estavam presas indevidamente.
Em sua gestão foi firmado o projeto Começar de Novo, que destina vagas de trabalho em entidades públicas e privadas a egressos do sistema penitenciário. E aqui também posso dar um depoimento pessoal, há algum tempo, almoçando em São Paulo, um garçom veio comentar comigo que era um egresso do sistema penitenciário e que só pôde voltar ao mercado do trabalho por causa do projeto Começar de Novo.
Prestigiando o projeto que fundou, o Ministro Gilmar Mendes emprega em seu gabinete, em serviços de apoio, diversas pessoas beneficiadas pelo projeto.
Senhoras e senhores,
Um traço característico do Ministro Gilmar Mendes é, sem dúvida, a veemência com a qual sustenta suas posições teóricas e suas interpretações legais e constitucionais.
Sou um admirador da sua coragem e da sua resiliência, com as quais sustenta entendimentos muitas vezes contrários às expectativas de grandes parcelas da sociedade, mas que são sempre fundamentados em sólida interpretação do fenômeno jurídico e social.
Mas, também, apesar da sua veemência e coragem na defesa de suas opiniões, o Ministro Gilmar Mendes é também exímio ouvinte e observador. Escuta, e sabe que é importante escutar.
É analítico, dono de um raciocínio jurídico aguçado e está sempre atento às peculiaridades de cada caso e às repercussões eventuais das decisões.
Graças a essas qualidades, costuma formular soluções engenhosas para os casos que aprecia, aptas a efetivamente pacificar os conflitos, preservando a segurança jurídica e a higidez da ordem constitucional.
Penso que a função do magistrado é, acima de tudo, promover a pacificação. E o Ministro Gilmar Mendes cumpre muito bem esse papel.
Com a aposentadoria do Ministro Marco Aurélio, em junho de 2021, o Ministro Gilmar Mendes passou a ser decano do Supremo Tribunal Federal, figura que, sabemos nós, é tão importante institucionalmente na promoção do diálogo e da harmonia.
Ministro Gilmar Mendes, é uma honra ter vossa excelência como referência de ministro mais experiente da Corte, nosso decano, a nos iluminar nessa árdua e desafiante missão de prestar uma jurisdição constitucional efetiva e adequada.
Senhoras e senhores,
Como podemos verificar, o homenageado é magistrado incansável e apaixonado pelo ofício da jurisdição constitucional, ao qual se dedica de corpo e alma, em qualquer segundo de sua vida.
Seja da sua tribuna, seja lecionando em sala de aula ou orientando novos pesquisadores, e formando os novos juristas, o Ministro Gilmar Mendes segue formando gerações de cidadãos e de operadores do direito na arte de zelar pela Constituição e pelos direitos fundamentais.
Sob a influência e inspiração do homenageado, inúmeros alunos e ex-alunos seus assumiram cargos prestigiosos e, em seus ofícios, têm levado adiante as lições aprendidas com esse professor de todos nós, que é o Ministro Gilmar Mendes.
Por onde passa, e também aqui entre nós, Gilmar segue sendo um professor e mestre, a nos guiar pelos fascinantes e muitas vezes difíceis e tortuosos caminhos rumo à concretização, na realidade social, dos comandos da Constituição de 1988.
Ao lado da paixão pelo direito, tem lugar no coração de Gilmar Mendes o amor por Guiomar, sua esposa, e pelos filhos Laura Schertel Mendes e Francisco Schertel Mendes, e também pelos seus enteados. E também é um grande amigo, um amigo para valer.
O direito está tão intensamente cravado no seio dessa família, que todos ali, em alguma medida, a ele se dedicam: Guiomar é renomada advogada brasileira e Laura e Francisco têm se destacado como notáveis acadêmicos na área.
O direito, sobretudo o direito constitucional, é lar para Gilmar Mendes. É edifício que ele próprio tem ajudado a construir e zelar, com o carinho e a dedicação de quem zela por sua própria casa, dessa forma zela pela jurisdição constitucional.
Ministro Gilmar Mendes, registro minha admiração e também minha enorme gratidão a vossa excelência.
Em todos os meus quase 13 (treze) anos de Supremo Tribunal Federal, ombreando com vossa excelência no Plenário, pude contar com sua escuta atenta e sua abertura ao diálogo.
Tenha certeza de que vossa excelência honra e orgulha o Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário e principalmente a democracia brasileira e a esse país que Vossa Excelência ama.
Receba meu reconhecimento e minha gratidão, e meus votos de sucesso. Obrigado!
Discurso do ministro Gilmar Mendes
Senhor Presidente,
Senhoras Ministras,
Senhores Ministros,
Senhor Procurador-Geral da República,
Senhoras e Senhores,
Penhoradamente agradeço as palavras utilizadas por Vossas
Excelências em razão dos vinte anos de exercício de minha magistratura
constitucional.
Efemérides como esta suscitam certa angústia nos homenageados,
porquanto evidenciam o outono dos tempos. Quanto a mim, procuro cultivar o
lado positivo: a alternativa é não estar vivo.
Celebro, por isso, a vida, o convívio com Vossas Excelências. Celebro, sobretudo, ter a oportunidade ímpar de ser membro do Supremo Tribunal Federal em um dos mais produtivos (e desafiadores) períodos de sua existência. Uma honra sem tamanho.
Sei também que as falas proferidas por homenageados tendem a levar os ouvintes ao enfado. De antemão tranquilizo meus pares. Sêneca não me deixa esquecer que: “Fazer publicidade da nossa virtude significa que nos preocupamos com a fama, e não com a virtude em si”. Estou imbuído de um propósito estoico, portanto, e de mim nada ou pouco mencionarei: o protagonista da minha fala é o Supremo Tribunal Federal.
Supremo Tribunal Federal que enfrenta um desafio dos mais inusitados, na quadra que atravessamos: o desafio de precisar enfrentar a irracionalidade, o desafio de ter, muitas vezes, que lutar pelo óbvio.
Se é assim, comecemos por uma premissa absolutamente fundamental: a jurisdição constitucional brasileira possui uma relação intrínseca com o ambiente constitucional democrático e republicano.
A democracia e a república foram os dois vetores que orientaram o desenvolvimento da jurisdição constitucional no Brasil. Isso se vê tão logo em
seu início, quando influências do estilo norte-americano foram decisivas para a
adoção inicial de um sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade das
leis e dos atos normativos em geral.
Foi um batismo de fogo. Rui Barbosa vislumbrou na ação de habeas corpus um meio célere para combater atos de exceção conduzidos por Floriano Peixoto. A exemplo da Constituição norte-americana, a Constituição brasileira de 1891 não previa explicitamente que aos juízes era próprio examinar a validade das leis. Rui pontificou que esse silêncio não inviabiliza o exercício do controle de constitucionalidade, que nada mais seria do que “resultado natural e óbvio de toda Constituição escrita”, “corolário imperioso das formas limitadas de governo”; um poder decorrente da atividade jurisdicional e, nessa condição, ”um poder de hermenêutica, e não um poder de legislação”.
Essa diferença entre o ofício judicante e a atividade política é basilar para explicar porque um Tribunal Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei sem que isso signifique uma usurpação de competência do Congresso Nacional. Como bem pontuado por Dieter Grimm, a matéria do controle de constitucionalidade é evidentemente política; mas os métodos e procedimentos, são judiciais.
E o Estado Constitucional é exatamente isso: os tribunais permitem que questões de poder sejam tratadas como questões de direitos fundamentais.
1) Quando o STF determina a adoção de medidas – inclusive de ordem orçamentária – para que seja realizado o censo demográfico, não há falar em tolhimento da discricionariedade do Poder Executivo: apenas se leva a sério a importância que o recenseamento possui para a condução e formulação de políticas públicas, bem como para a manutenção do federalismo (autonomia financeira dos entes federados, dado o impacto no rateio de impostos pela via dos Fundos de Participação, constitucionalmente previstos).
2) Quando este Tribunal declara que a Constituição confere também aos Estados e Municípios a competência de adotar providências para o combate à pandemia de Covid-19, não se mostra possível ver nisso uma subtração de parcela do poder da União: o direito à vida e à saúde não tem um proprietário, sendo antes dever do poder público como um todo.
Com o benefício da distância histórica, nesses vinte anos de magistratura constitucional tenho observado um uso cada vez mais corriqueiro a um lugar-comum: descrever tais atuações do Supremo Tribunal Federal sob o rótulo de um “ativismo judicial”. O que essa postura intelectual indolente não consegue captar é que o conhecimento de temas de fundo político não é fruto de um capricho do Supremo Tribunal Federal, mas dos termos da própria Constituição de 1988, que permite que praticamente todas as controvérsias constitucionais relevantes possam ser submetidas ao Supremo Tribunal Federal – como questões de direitos, repito.
A amplitude do direito de propositura de ação direta de inconstitucionalidade permite que pretensões diversas de segmentos sociais expressivos (entidades de classe) ou de grupos políticos (partidos políticos com representação em uma das Casas do Congresso Nacional), que dispõem de legitimidade ativa, sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle abstrato de normas. A presteza e a celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, constituem elemento explicativo de tal tendência.
O desenho adotado pelo Constituinte de 1987-1988 investiu inequivocamente no controle de constitucionalidade como mecanismo de estabilização institucional do país. Missão que foi desempenhada com muita altivez e responsabilidade pelo Supremo Tribunal Federal. Inclusive em chave cooperativa com os demais Poderes da República.
1) Tome-se o exemplo do acordo firmado entre a União e os Estados no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 25, pela qual este Tribunal prestou inequívoca contribuição para que as unidades da federação equacionassem um longo impasse que perdurava quanto à compensação
financeira prevista em decorrência do fim da incidência do ICMS nas exportações.
2) Nesse mesmo espírito de cooperação testemunham várias decisões lavradas no contexto da crise fiscal dos Estados (2015- 2019).
Digo isso para sublinhar que embora receba mais atenção a jurisprudência produzida no âmbito dos direitos e liberdades (questões relacionadas à liberdade de imprensa, autonomia universitária, ao racismo, ao anti-semitismo, à progressão de regime prisional, à fidelidade partidária, e ao direito da minoria de requerer a instalação de comissões parlamentares de inquéritos, pesquisas com células-tronco), também deve ser motivo de orgulho os inúmeros julgados deste Supremo Tribunal Federal que somaram esforços para o aperfeiçoamento da governança administrativa e da governabilidade política do país.
Tenho absoluta convicção de que, nos próximos anos, a pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal continuará concentrada em temas relevantes. Um mundo cada vez mais diverso e plural demandará da jurisdição constitucional a reafirmação da normatividade de direitos fundamentais frente a maiorias eventuais. Não é difícil, também, vaticinar que o Tribunal será instado a se manifestar sobre o impacto da tecnologia da informação em face dos direitos fundamentais à privacidade e ao livre desenvolvimento da personalidade, especificamente no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelo Estado brasileiro. A questão ambiental inevitavelmente continuará nos visitando, considerada a crescente exigência internacional por desenvolvimento sustentável: um desenvolvimento comprometido com as gerações futuras. Não por último, a preservação da estabilidade democrática e das instituições políticas brasileiras, bem como a manutenção de um bom ambiente de negócios habitarão as ordens do dia.
Nem poderia ser diferente: questões afetas a direitos fundamentais e ao bom funcionamento dos Poderes compõem o Leitmotiv de todo e qualquer Tribunal que se ocupa, precipuamente, da guarda da Constituição. Faço votos para que o Brasil continue nessa trilha proposta por Rui Barbosa, na década de 1890. E que aos Ministros do Supremo Tribunal Federal não falte a coragem e determinação necessárias para assentar o óbvio: no Estado Constitucional, o soberano é a Constituição.
Muito obrigado!