Sinal dos tempos: a Lei de Segurança Nacional (LSN), herança mal enterrada da ditadura, voltou a ser usada como instrumento de perseguição política. Uma legislação como essa não tem espaço em uma democracia e, por isso, precisa ser revogada imediatamente. Por isso, parece bom que a Câmara dos Deputados esteja ansiosa para votar, na terça-feira (04/05), o projeto de lei (PL) 6.764/2001, que a revoga. Contudo, o projeto que irá substituir a Lei de Segurança Nacional ainda deixa brechas para que continuem as interferências nas atividades jornalísticas, arbitrariedades e perseguição política. Inclusive, corre o risco de dar verniz de legitimidade democrática a alguns instrumentos reciclados de períodos autoritários.
O projeto de lei pretende inserir no Código Penal nada menos que 14 novos crimes, os chamados “crimes contra o Estado Democrático de Direito”. Essa proposta aborda temas delicados, que podem transformar em crimes atividades comuns de cidadãos brasileiros e organizações da sociedade civil, como encaminhar mensagens de grupos de WhatsApp.
Com relação ao exercício de liberdade na internet, o artigo mais preocupante de toda redação é o que prevê o crime de “comunicação enganosa em massa”. A começar, nenhuma das três palavras principais que compõem o título – “comunicação”, “enganosa” e “massa” – são definidas no restante do texto.
A premissa equivocada que embasa o artigo é a dicotomia verdade-mentira, sendo atribuído a “fatos que se sabe inverídicos” a capacidade de colocar em risco o processo eleitoral e as instituições. Entretanto, é perfeitamente possível atingir esses resultados a partir de informações verdadeiras descontextualizadas ou escândalos diversionistas.
Ainda sobre o uso da inverdade como baliza jurídica, quais são os parâmetros para determinar se algo é ou não inverídico? Paira enorme dúvida sobre como serão tratadas questões sobre discurso religioso e ideológico nessa régua que mede a distância entre verdade ou mentira. São comuns as mensagens na Internet que apoiam ou criticam atores políticos com base em elementos de fé.
A inserção de um único artigo, isolado, sem um contexto que envolve princípios específicos do campo do direito digital, em uma lei que visa exclusivamente à criminalização de condutas, é uma abertura perigosa contra a liberdade de expressão nas redes.
Ainda que não seja o objetivo final da proposta, são as lacunas na legislação que possibilitam traições às próprias intenções originais dos legisladores. E, apesar do nome que foi atribuído a esse grupo de novos crimes, seu resultado poderá ser sua instrumentalização para fins que prejudiquem a democracia, ao invés de protegê-la.
Tememos inclusive que a nova roupagem democrática empreste a legitimidade de se empregar esses artigos com maior frequência em casos judiciais.
O autoritarismo pode apenas ser combatido com um amplo debate democrático. Por isso, o artigo sobre comunicação enganosa em massa deveria ser excluído deste projeto de lei e deixado para as discussões eleitorais e setoriais específicas que já correm no Congresso. É preciso discutir mais amplamente esse texto, ouvindo pesquisadores, entidades e movimentos da sociedade civil para construirmos uma legislação que, de fato, proteja o Estado Democrático de Direito, sem correr o perigo de enxertar artigos reciclados de um instrumento autoritário e obsoleto.