No Brasil, aqueles que lutam por memória e justiça pelos crimes da ditadura militar de 1964-1985 bradam: “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!”. Na Argentina, o promotor Julio César Strassera usou o lema dos que clamavam “Nunca mais” ao finalizar sua denúncia contra os ditadores do país pelos crimes cometidos durante o regime de 1976-1983.
Nos lemas acima é possível encontrar o cerne da justiça de transição: garantir a apuração das violações do passado, para que não se repitam no futuro.
Este texto visa responder o seguinte questionamento: como a justiça de transição pode contribuir para lidar com os aspectos autoritários do governo Bolsonaro?
Para tanto, inicialmente, vamos discutir as práticas do governo Bolsonaro, que tem sido compreendido como uma nova forma de autoritarismo. Posteriormente, vamos entender do que se trata a justiça de transição. Por fim, vamos detalhar como seus mecanismos podem contribuir para a apuração dos fatos que ocorreram nos últimos quatro anos, para que eles não se repitam.
Governo Bolsonaro e autoritarismo
Já há algum tempo é dito que os governos autoritários não precisam mais de tanques de guerra nas ruas para serem instaurados.
Ainda que eleitos democraticamente, governos que desrespeitam as instituições democráticas, conspiram para o fechamento dos parlamentos e das cortes, levantam questionamentos quanto à licitude de eleições confiáveis, incentivam a violência contra minorias, se valem sistematicamente de fake news e desrespeitam a Constituição são considerados autoritários.
As medidas tomadas por esse tipo de governo podem variar, mas, de forma geral, envolvem o enfraquecimento das instituições democráticas (e.g., Parlamento, Judiciário, Promotoria) e a centralização do poder no chefe do Executivo. A Hungria, a Polônia, os Estados Unidos de Trump e o Brasil de Bolsonaro são representantes desse tipo de governo.
E quais exatamente seriam as práticas que permitem relacionar o governo Bolsonaro às novas formas de autoritarismo?
O flerte com a possibilidade de um golpe de Estado. Por diversas vezes, Bolsonaro sugeriu que caso não fosse vencedor das eleições de 2022 se recusaria a deixar o cargo e apoiou manifestações a favor do fechamento do Supremo Tribunal Federal. Nesses episódios fica evidente o desprezo pelo processo eleitoral ou por instituições constitucionalmente previstas como essenciais à democracia.
A falta de transparência e os sigilos impostos pelo governo. Impedir que a população tenha acesso a informações gerais relacionadas à administração pública, à dotação orçamentária e a demais atos do chefe do Executivo – como vem ocorrendo nos sigilos de 100 anos – não é compatível com o Estado democrático de Direito. O mesmo vale para o orçamento secreto, que viola frontalmente o princípio da transparência da administração pública.
Descaso com a população durante a pandemia de Covid-19. Negar a existência de uma pandemia internacionalmente reconhecida, fazer piada com as vítimas, bem como os fatos levantados na CPI da Covid – dentre os quais alegações de solicitação de propina para aquisição de vacinas e utilização de parte da população (notadamente a do Amazonas) como cobaia para a tese da imunidade de rebanho.
Esses são apenas alguns exemplos de ocasiões nas quais o governo Bolsonaro agiu em violação ao projeto constitucional de 1988. Contudo, além de constituirem violações em si, esses atos abrem espaço para o crescimento de novos atos e discursos autoritários no Brasil – como pode ser observado em manifestações golpistas do pós-eleição.
Além disso, é importante expor que novas formas de autoritarismo não eliminam completamente as instituições democráticas, mas, frequentemente, cooptam essas instituições. Assim, as ferramentas da justiça de transição representariam, além de uma resposta às violações de direitos perpetradas, uma forma de possibilitar a retomada do pleno funcionamento das instituições.
De tal forma, é necessário lidar com todas essas perspectivas de forma adequada, ainda que Bolsonaro não tenha sido reeleito. A justiça de transição oferece uma série de ferramentas capazes de lidar com esses atos autoritários, e seus vestígios.
Uma breve introdução à justiça de transição
Por um lado, o campo da justiça de transição é reconhecido como uma série de mecanismos práticos para lidar com os resquícios de um passado ditatorial ou de conflito. Por outro, é a matéria que estuda as estruturas implementadas pelos mecanismos referidos acima.
Com o passar do tempo e o desenvolvimento das ferramentas implementadas pelo campo, estabeleceu-se que este seria composto por alguns pilares fundamentais: reparação, memória e verdade, reformas institucionais, e responsabilização (ou justiça).
Além disso, foi possível concluir que, visando uma transição efetiva, os mecanismos deveriam ser implementados de forma holística – ou da forma mais ampla e variada possível. Assim, visando a efetiva implementação do método, o mais adequado é utilizar o maior número possível de ferramentas, de forma integrada.
De tal forma, passamos a uma breve descrição dos pilares centrais do campo.
Inicialmente, a reparação. As medidas desse pilar tem como objetivo fornecer reparações às vítimas e aos parentes daqueles que sofreram com os atos cometidos pelo regime. As reparações podem ser materiais, psicológicas ou mesmo simbólicas – como monumentos e memoriais.
Iniciativas relacionadas ao pilar da memória e verdade, por sua vez, visam expor os fatos ocorridos, reconhecer os abusos cometidos e apurar a responsabilidade dos perpetradores. Consistem em iniciativas como a criação de memoriais ou museus, o desenvolvimento de comissões de investigação, dentre outras ações em sentido similar.
Já as reformas institucionais visam reestruturar as instituições cooptadas pelo regime anterior, de forma que essas se adequem ao paradigma do Estado democrático de Direito. Nesse sentido, medidas como programas de aperfeiçoamento, depuração e processos administrativos podem ser implementados visando a adequação das instituições envolvidas com ações autoritárias.
Por fim, responsabilização diz respeito ao julgamento – cível e criminal – de perpetradores de violações de direitos. Esse pilar tem como objetivo, por um lado, coibir a prática futura dos crimes perpetrados e, por outro, garantir às vítimas a retribuição por suas perdas.
A partir da descrição dos pilares – seus mecanismos e objetivos – é possível compreender como poderiam ser utilizados no contexto do novo autoritarismo no qual se insere o governo Bolsonaro. Visando expor de forma mais clara a adequação dos mecanismos transicionais, passamos a trabalhar abaixo exemplos de sua aplicação naquelas instâncias expostas acima.
Utilizando o aprendizado da justiça de transição
Resta evidente que as demandas necessárias para garantir que as violações do passado não se repitam continuam presentes. Os governos democráticos não podem ignorar as ações e os efeitos danosos daqueles de teor autoritário que os antecederam.
De tal forma, ante as novas formas de autoritarismo, também é necessário repensar como as ferramentas desenvolvidas pela justiça de transição podem ser adaptadas aos novos desafios que se apresentam.
Por exemplo, seria possível discutir a necessidade de reformas institucionais quando retomamos os constantes flertes de Bolsonaro com a possibilidade de um golpe. Como desenvolver as instituições democráticas brasileiras de modo que esse tipo de argumento não seja mais considerado como possível?
Algumas medidas de reparação já foram iniciadas. Memoriais e outras homenagens às vítimas da Covid-19 têm sido erguidos, no sentido de reparações simbólicas. É possível debater também outras reparações materiais e psicológicas às vítimas que ainda sofrem com a doença e aos parentes daqueles que morreram.
Em relação ao pilar da memória e verdade, um ponto de partida relevante seria a revogação dos sigilos de 100 anos impostos pela Presidência da República e outros órgãos e a implementação efetiva da transparência prevista pela Constituição de 1988. Além disso, a retomada de iniciativas como o Memorial de Anistia em Belo Horizonte e o citado desenvolvimento de memoriais para vítimas da Covid-19.
Reformas institucionais também se fazem necessárias. Instituições que foram recentemente instrumentalizadas – como o caso recente das alegadas ações movidas pela PRF durante as eleições – deveriam passar por revisões e aprimoramentos necessários.
Por fim, a responsabilização também foi outra medida que já teve início, com a conclusão da CPI da Covid e o envio do relatório para os órgãos responsáveis. Resta claro que a responsabilização dos atores que participaram diretamente dessas e outras violações perpetradas pelo governo Bolsonaro se faz necessária.
Através dos exemplos acima, resta possível observar a adequação de mecanismos transicionais para apuração e responsabilização de atos autoritários e seus vestígios pós-transição “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
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A base teórica do texto pode ser encontrada no artigo “Justiça de transição e o governo Bolsonaro: uma transição inacabada como porta para o autoritarismo”, apresentado pelos autores no II Congresso Latino-Americano sobre Direito, Memória, Democracia e crimes de lesa-humanidade.