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#FiqueemCasa: ciências comportamentais melhoram a comunicação dos órgãos públicos

O que é recomendado evitar na comunicação de órgãos públicos?

Crédito: Unsplash

A mensagem oficial em todo o mundo é clara: Fique em casa! Sabemos que a letalidade do coronavírus é elevada quando comparada à da gripe comum e que o vírus se espalha rapidamente. Mesmo na mais otimista das projeções, faltarão leitos para os casos graves da Covid-19 – e para todos os outros decorrentes de doenças que continuarão existindo. Uma tragédia anunciada.

Epidemiologistas dão-nos o diagnóstico e o prognóstico, e indicam o que fazer para diminuir as consequências negativas da crise. A ideia prevalente é que o máximo de pessoas fique em casa o tempo necessário para evitar o colapso da rede hospitalar. Ainda assim, a farta comunicação de fatos e dados não parece, nalguns casos, ser suficiente para mobilizar parte das pessoas, nem para evitar a proliferação de perspectivas diversas sobre o tema.

Quando informar não é suficiente, parece restar apenas a via da força. O convencimento e argumentação dão lugar à obediência[1]. Tem funcionado, mas o custo é alto. Ninguém gosta de se sentir obrigado a ficar em casa. Não fossem policiais aqui e ali, provavelmente teríamos praias, shoppings e bares cheios – como se todos tivessem antecipado férias. Foi assim na Itália, nos Estados Unidos e na Índia; e está sendo assim em vários lugares no Brasil.

Por que há tanta resistência das pessoas a medidas dessa natureza?

Muitos atribuem esta resistência observada às agruras do isolamento social. Sem dúvidas, a saúde mental das pessoas é posta à prova a cada novo dia de confinamento voluntário. Parece mais fácil falar do que fazer e muitos acabam por relativizar as recomendações.

O conteúdo duro das recomendações é parte importante da questão, mas não é tudo. É preciso ter atenção para que a forma de transmitir estas recomendações não contribua para o problema, causando ainda mais rejeição e dúvidas nas pessoas.

Por exemplo, vemos o #fiqueemcasa sendo compartilhado por Estados e Prefeituras por todo o Brasil. Esta é uma mensagem veiculada com as melhores das intenções, porém esconde uma série de riscos do ponto de vista comportamental. Pode acabar por atrapalhar mais do que ajudar.

Os desafios são muitos. Você provavelmente recebeu algum relato de pessoas do grupo de risco (ex.: idosos) tentando furar o “bloqueio” criado por familiares preocupados. Ou ainda ouviu histórias de pessoas que costumavam ficar muito em casa, mas que agora sentem uma vontade irresistível de sair. Alguns preferem nem saber das notícias ruins; já outros acham que estão a salvo porque utilizam máscaras sempre que saem de casa.

Neste artigo, apresentaremos três exemplos de como gestores públicos podem evitar algumas “armadilhas” comportamentais na hora de transmitir informações e instruções, como as realizadas no contexto do coronavírus. Com base nas Ciências Comportamentais, podemos criar mensagens mais eficazes e seguras para promover mudanças positivas de comportamento.

Nosso objetivo é demonstrar que adequar a mensagem à realidade cognitiva e comportamental das pessoas é tão importante quanto prover a informação correta e precisa. Como explicaremos, às vezes apenas adicionar, trocar ou retirar uma palavra de uma comunicação pode ser o suficiente para evitar efeitos colaterais negativos sobre o comportamento das pessoas.

A armadilha da reatância psicológica

Não cheque seu celular enquanto está lendo este artigo. É importante. Não toque nele até terminar a leitura. Você deve colocar toda sua atenção no que está lendo.

Deixe-nos adivinhar. Passados alguns poucos segundos, você está com uma vontade enorme de pegar seu celular. Ainda que você resista por um tempo, a vontade parece ir crescendo. Até o ponto em que você não resiste. “Só para checar mesmo, como sempre faço. Não teve nada a ver com o que li antes no texto”, você pode pensar. Provavelmente teve sim e isso tem enorme relevância para a eficácia de recomendações oficiais, como a de #fiqueemcasa.

Costumamos não gostar que os outros nos digam o que fazer. Pior, se percebermos nossa autonomia violada, uma parte de nós sente compelida a fazer justamente o oposto do que foi recomendado – ainda que seja algo para o nosso benefício.

Este é um fenômeno bem conhecido entre cientistas comportamentais – a reatância psicológica. Como explica Jack Brehm, este estado mental de resistência a um pedido ou recomendação ocorre quando percebemos que nossa autonomia foi reduzida ou está sendo ameaçada de redução. Neste caso, nos sentimos provocados a resistir, muitas vezes de forma inconsciente, ao que foi pedido de forma a manter ou recuperar nossa autonomia.

Por isso é tão importante que recomendações pareçam e sejam escritas como recomendações. É preciso ter cuidado para que não pareça uma ordem ou uma imposição, sob o risco de que uma recomendação relevante seja recebida com resistência.

Por exemplo, a recomendação #fiqueemcasa pode ser percebida inconscientemente como uma ordem, uma imposição. Algo que ameaça a autonomia das pessoas. Por esta razão, esta comunicação que está sendo compartilhada com a melhor das intenções pode ser um tiro pela culatra pela perspectiva comportamental. Para muitos, neste caso, não ficar em casa é, inconscientemente, uma forma de reafirmação da autonomia.

O que pode ser feito para evitar a reatância? De forma geral, devemos tentar evitar a linguagem imperativa. Porém, há algumas estratégias mais específicas que podem ser de grande ajuda.

Primeiro, podemos apostar na via da auto-persuasão. Voltemos ao exemplo do #fiqueemcasa. Neste caso, a ideia é que, em vez de “ordená-las” a ficar em casa, elas mesmas concluam que o melhor a fazer é ficar em casa. Isto é, que cada um se persuada por seus próprios argumentos, sejam eles quais forem.

Após alguma reflexão, um pode achar que é  por um dever patriótico; outro por uma questão de empatia com o sofrimento alheio[2]. Por isso, é importante permitir a reflexão e dar algum espaço para perguntas abertas na comunicação oficial: por que é importante que fiquemos todos em casa nos próximos dias?

Além disso, dar opções de escolha – uma alternativa já faz muita diferença – facilita a percepção das pessoas de que têm autonomia sobre sua decisão. Ainda que esta alternativa seja de não seguir a recomendação. Pode parecer curioso, mas relembrar as pessoas que elas podem dizer “não” aumenta as chances de elas dizerem “sim” para uma recomendação. Não à toa, uma estratégia eficaz é adicionar uma frase ao fim de uma recomendação: “mas você é livre para dizer não” (“but you are free”).

Temos de ter atenção ao utilizar a linguagem imperativa nas recomendações oficiais. Porém, isto não é tudo. Se quisermos aumentar as chances de que as pessoas sigam recomendações importantes – e que não seja sempre preciso acabar recorrendo à força e à sanção – precisamos também ter atenção aos processos de auto-licenciamento (self-licensing) e fazer o possível  para evitar que as pessoas se furtem a buscar as informações relevantes (active information avoidance).

A armadilha do auto-licenciamento

De vez em quando, podemos nos presentear com um “passe-livre” para fazer atos que entendemos errados ou imorais. Este passe-livre, entretanto, tem um preço: é preciso ter algum crédito, isto é, ter feito algo que entendemos como acertado ou moral. Este é o fenômeno cognitivo conhecido como auto-licenciamento (self-licensing).

Depois de fazer algo percebido como positivo, podemos nos permitir cometer alguns desvios. É como se tivéssemos uma conta mental interna que vai computando nossos acertos do passado,  bem como os acertos que achamos que vamos realizar no futuro. A ideia é que cada ação correta crie um crédito que pode ser “gasto” com a realização de uma ação questionável.

Por exemplo, mais provável que quebremos a dieta depois de ter feito a matrícula na academia; ou que possamos estar mais propensos a sonegar impostos hoje caso tenhamos prometido doar para a caridade na semana que vem. Trata-se de uma troca: uma ação positiva por uma ação negativa.

Exemplos interessantes não faltam na literatura científica. Será que fazer compras em uma loja eco-friendly pode criar um “crédito moral” suficiente para que as pessoas tornem-se um pouquinho mais desonestas em um jogo que vale dinheiro? Este estudo traz evidências de que sim.

Ou ainda, este outro estudo realizado na China indica que tomar multivitamínicos pode dar uma sensação ilusória de invulnerabilidade nas pessoas, o que as libera de terem um cuidado mais rigoroso com a saúde.

O auto-licenciamento não é um uma problema muito relevante para questões do dia-a-dia. Afinal, é sempre possível que as pessoas percebam seus erros e os evitem. Não terá grande problema se você, por exemplo, pedir batata frita extra depois de pedir refrigerante zero.

Contudo, em alguns situações extraordinárias, um pequeno erro pode fazer toda a diferença. Por exemplo, se consideramos as precauções em relação ao coronavírus, basta um dia de desatenção às regras para que ocorra a contaminação.

Por isso, de pouco servem as precauções se as pessoas se concederem um passe-livre durante a quarentena. Na circunstância das precauções com o coronavírus, a atenção de comunicadores aos processo de auto-licenciamento precisa ser redobrada.

O que pode ser feito?

O ponto aqui é atacar a raiz do problema. Sabemos que as pessoas tenderão a fazer estas trocas e se concederem um passe-livre de vez em quando, especialmente diante da dificuldade do confinamento. Vão surgir momentos quase irresistíveis em que as pessoas vão querer, por exemplo, abraçar seus avós.

Neste caso, o mais importante é identificar as situações de auto-licenciamento mais prováveis – ou as identificadas como mais recorrentes –  e deixar claro o que pode ou não ser negociado.

Por exemplo, é importante deixar claro que utilizar máscaras não licencia as pessoas lavarem as mãos. Está não é uma troca adequada, embora seja possível que muitas pessoas venham a pensar que tomar medidas de proteção em uma área signifique maior licença para correr riscos em outra. O contrário, este sim, pode ser interessante: não é preciso utilizar máscaras se você lava bem e sempre suas mãos – e não é um profissional da saúde.

A armadilha do evitamento (avoidance)

Se tivesse que escolher, o que gostaria mais de saber: o número de colegas de trabalho que te acham incompetente ou o número de colegas que te acham competente? Teria interesse em saber se tem uma doença grave e incurável? E que tal saber que está acontecendo uma epidemia sem precedentes e que teremos meses desafiadores pela frente?

Em geral, as pessoas preferem não saber daquilo que pode fazer com que se sintam mal. Ainda que se trate de informação gratuita, precisa e útil – como informações sobre precauções em relação ao Coronavírus. O importante é perceber que os ganhos emocionais são relevantes na decisão sobre buscar ou evitar informações.

As estratégias que as pessoas adotam para evitar informações são variadas e vão além do evitamento em sentido estrito, como no caso de investidores que se abstêm  de olhar para suas carteiras de investimento quando o mercado de ações está em baixa – o chamado “efeito avestruz“.

Há também formas mais sutis de se evitar informações incômodas. As pessoas podem, de forma inconsciente, não ter a atenção devida ao que estão lendo. Neste caso, acabam por ter acesso à informação, mas não são capazes de assimilar ou lembrar do que foi lido. Entendem que há alguma doença nova, mas não sabem – e inconscientemente nem querem saber – muito bem do que se trata.

Ou, ainda, podem ler com atenção, mas acabar por interpretar o que foi lido de forma enviesada, assimilando as informações de uma maneira a tornar as informações mais agradáveis. Por exemplo, entendem que existe uma doença nova, mas que não é algo sério.

O que comunicadores podem fazer para evitar que as pessoas evitem informações relevantes?

A receita é simples: na medida do possível, trocar palavras ou frases que podem gerar desconforto psicológico – como agitação, estresse, desespero, ansiedade, medo ou tristeza – por outras. Isto é, suavizar a comunicação para aumentar sua eficácia.

Melhor evitar expressões como: “momento de emergência” ou “quarentena”, “alerta” etc. O momento é de emergência, sem dúvidas, mas falar desta forma vai acabar fazer com que as pessoas evitem a informação.

A ideia é que as mensagens sejam capazes de conciliar três valores: os valores hedônico (elicitar emoções positivas), instrumental (informações úteis para ação) e cognitivo (melhor a compreensão do problema). Os três são igualmente importantes.

Assim, no lugar de falar em “alerta ou emergência”, mais vale ressaltar que aquelas mensagens servem para que a pessoa possa se aliviar da ansiedade e das dúvidas. Com aquelas recomendações, é possível saber o que precisa ser feito para não ter com o que se preocupar. Por isso, quanto mais simples e práticos a recomendação e os exemplos, melhor.

Um enquadramento que ressalte  ganhos também pode ajudar na compreensão da necessidade e segurança de algumas medidas incômodas, porém necessárias. Por exemplo, será que faz diferença comunicar que uma medida (ex.: isolamento social) será “capaz de salvar X milhares de vidas em algumas semanas” ou que, “ainda que se adote a medida, X milhares de pessoas morrerão”?

As pessoas tendem a associar estímulos que geram respostas emocionais positivas – salvar vidas – como sendo mais benéficos e com menores riscos. Não à toa, participantes deste estudo tiveram percepções diferentes sobre a eficácia de um mesmo medicamento a depender de como ele foi apresentado. Os participantes consideraram mais eficaz  um medicamento que salvou 200 vidas (de 600) do que um medicamento – o mesmo – quando este foi apresentando como tendo deixado 400 pessoas (de 600) morrerem. Por isso, na medida do possível, melhor ressaltar as vidas que serão salvas.

Além disso, em momentos de incerteza, é sempre positivo ressaltar que as ações requeridas não são difíceis e que todos conseguem fazer – promover a percepção de autoeficácia das pessoas. Bem como que se trata de um problema superável, que cada contribuição individual faz diferença e que poderá ser resolvido com a ajuda de todos – a percepção de autoeficácia coletiva.

Conclusão

Neste artigo, buscamos alertar comunicadores de órgãos públicos sobre algumas “armadilhas” comportamentais. Afirmamos que, para que as pessoas busquem conhecer e assimilar recomendações relevantes, não basta que estas sejam informativas e úteis. É importante também evitar palavras e expressões imperativas, ambíguas e negativas.

Nosso foco foi tratar sobre o que é recomendado evitar na comunicação de órgãos públicos. No próximo artigo, faremos diferente e trataremos o que é recomendado incorporar para tornar mensagens e recomendações oficiais mais persuasivas.

 


Referências

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MAZAR, Nina; ZHONG, Chen-Bo. Do Green Products Make Us Better People? Psychological Science, v. 21, n. 4, p. 494–498, 2010.

[1] Costumamos esquecer, particularmente em momentos de crise, que o direito pode influenciar comportamentos não apenas pelo que faz (ex.: ameaças), mas também pelo que fala – a chamada função expressiva do direito. Há uma importante dimensão do direito de orientar e coordenar as pessoas em períodos de mudança, bem como de premiar e encorajar comportamentos positivos.

[2] Para mais informações sobre, ver a teoria das fundações morais de Jonathan Haidt.

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