O presidente da Câmara, Arthur Lira, está conseguindo pautar o tema da reforma administrativa no governo, que levou o tema para discussão interna. A ação do parlamentar tem como um dos objetivos contrabalançar a pressão do governo por medidas de receita para zerar o déficit primário ano que vem e melhorar os resultados fiscais nos anos seguintes.
A iniciativa de Lira, porém, é muito mais um jogo político e retórico, mirando em grande medida os atores do mercado financeiro, do que uma ação que, mesmo que siga adiante, tenha impactos relevantes no curto e médio prazo no lado do gasto e, consequentemente, nas metas de primário.
Antes de adentrar o terreno fiscal, é preciso preliminarmente realçar a diferença de concepção entre o atual governo e o chefe da Câmara sobre o que significa uma reforma administrativa.
Enquanto Lira quer usar o tema para dar um sinal de ajuste também pela despesa, o time do presidente Lula entende que a máquina federal está abaixo do que seria o necessário para operar. Para o governo, eventual reforma seria um instrumento para ampliar a eficiência do setor público em um contexto de retomada de concursos e recomposição salarial.
Além disso, a ministra Esther Dweck, responsável pela gestão administrativa do governo, já deixou claro que entende que o tema não deveria ser tratado por PEC e, sim, discutido por temas em projetos de lei e outras normatizações, como a regulamentação da demissão de servidores.
Lira sabe disso. A despeito de sua força ainda ser dominante e capaz de aprovar uma PEC, o governo avança na construção de uma base no Parlamento e, nesse contexto, a discordância de concepção sobre o tema já reduz bastante a capacidade de avanço do assunto. Além disso, mesmo que Lira mais uma vez faça chover no plenário, certamente o impacto fiscal de eventual reforma deve ser limitado.
Essa é a deixa para discutir os números. É preciso entender que uma mudança nas regras do serviço público terá muito pouco impacto na gestão fiscal do próximo ano, aliás, do período inteiro do atual governo, e muito pouco deve afetar a necessidade enorme de se reforçar ganhos do lado da arrecadação — expresso na projeção de R$ 168 bilhões de impacto anual das medidas já adotadas e propostas pelo governo.
Para ilustrar, usemos uma hipótese heroica de que a reforma agora liderada por Arthur Lira consiga, por um desses mistérios da vida, gerar uma redução de 5% no gasto com pessoal já no ano que vem. Considerando os quase R$ 360 bilhões nessa rubrica nos últimos 12 meses, a economia seria da ordem de R$ 18 bilhões. O governo ainda teria que sair correndo atrás de R$ 150 bilhões em receitas. Lembrando que o mais provável é que uma reforma dessas tenha impacto só para os novos concursados, um universo bem menor de servidores, e não gere nenhuma redução do quadro federal atual.
Podemos tentar ir além. Supondo que o governo, além de miraculosos 5% de ganho no gasto com pessoal, ainda consiga outras melhorias relevantes em outras despesas da máquina e dobre a economia prevista, chegando a R$ 36 bilhões. Fernando Haddad ainda precisaria de R$ 130 bilhões para zerar o déficit primário de 2024, sem falar na necessidade de ampliar o esforço fiscal para os anos seguintes — superávits de 0,5% e 1% do PIB para 2025 e 2026, respectivamente.
Reiterando, os exercícios são meramente hipotéticos e visam apenas ilustrar que, mesmo em um cenário altamente improvável de impactos fortes no ano que vem, o esforço da reforma administrativa não mudaria a pressão do governo por mais receitas no Congresso. Ainda seria necessário para o governo avançar com PL das offshores, MP dos fundos exclusivos, nova regra para subvenção de ICMS e outras medidas que estão nas mãos dos parlamentares e que têm gerado reação dos contribuintes, em especial os de renda mais alta.
Ao defender a administrativa, Lira joga pressão para o Executivo e tenta reduzir os custos políticos da agenda de ajuste fiscal pelo lado da receita que está posta para o Congresso — e que, ressalte-se, em parte já foi entregue.
Além disso, coloca o governo em uma saia justa, uma vez que já está claro que há pouco espaço para se dar reajustes salariais nos próximos anos, bem como para novos concursos e outras medidas para reforçar a máquina.
Vale lembrar que a gestão de Jair Bolsonaro perdeu parte do apoio dos servidores públicos com a “reforma administrativa silenciosa” feita pelo ex-ministro Paulo Guedes ao longo de quatro anos. Nesse período, o gasto com pessoal caiu de 4,2% para 3,4% do PIB — em termos nominais, considerando ajuste pela inflação, o recuo foi de cerca de R$ 40 bilhões.
É claro que ainda há espaço para melhorias relevantes na administração pública, especialmente no gasto com pessoal. Mas a margem de ajuste nessa despesa hoje é bem menor depois do que aconteceu entre 2019 e 2022 e o potencial de ganhos fiscais também.
Uma reforma agora deve mirar muito mais a produtividade da máquina do que ganhos fiscais diretos, que, como já mostramos, provavelmente serão bem limitados. Lira sabe disso. Mas tem uma plateia para prestar contas e joga com o seu ainda grande poderio político para se manter relevante no xadrez e angariar compromissos para prazos mais longos.