Para bem entender o fenômeno que se desenrolou no país desde o processo de redemocratização, e que recrudesceu em 2013, culminando com a Lava Jato em 2014, precisamos ampliar um pouco o foco e sair do âmbito estrito dessa investigação.
Ao longo desses 30 anos de nova República, o sistema de representação política foi desgastando-se paulatinamente. Inapetência, corrupção, incapacidade de entender e veicular os verdadeiros anseios populares – tanto por parte da direita como da esquerda –, tudo isso (60 mil assassinatos por ano, presídios completamente fora de controle, sensação de insegurança, péssimos serviços públicos, entre outros tantos problemas que inviabilizam uma vida decente em nosso país) culminou com a eclosão dos movimentos desordenados, mas violentamente eloquentes de 2013.
O povo estava farto da sua classe política. Era preciso mudança. Muitos já divisavam o problema. Pouco antes de as ruas serem tomadas pelos protestos, estive com o então senador José Sarney em seu gabinete. Na oportunidade, integrando a equipe do Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, fomos recebidos pelo poderoso político maranhense para tratar da famigerada PEC 37. Lembro-me vividamente de suas palavras: há um claro processo de esgarçamento entre os eleitores e seus representantes políticos. E vaticinava Sarney, isso provocará uma convulsão social de proporções incalculáveis. Arrematava por fim: minha sorte é que estou velho, e provavelmente não mais estarei por aqui quando isso ocorrer. Menos de um mês após essa singela conversa, o país, de fato, convulsionou. Acertou, assim, o senador no prognóstico, errando apenas no quando.
Isso revela que a classe política entende exatamente o que se passa no país dos nossos dias, e, por isso mesmo, debate-se de forma tão intransigente contra as necessárias mudanças. Faz concessões pontuais e cede posição apenas para preservar seu poder e modus vivendi. Não foi por outra razão que, na esteira desses movimentos populares, ainda em junho de 2013, a PEC 37 foi derrotada, e o Senado aprovou a Lei 12.850/13 – Lei de Combate às Organizações Criminosas –, que trouxe nova e mais eficaz regulamentação para a colaboração premiada.
Em março de 2014, surge a Lava Jato, com sua até então mais vistosa medida investigativa. Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, sofria buscas e apreensão e era preso. Com robustas provas de sua participação em um grande esquema de pagamento de propinas, Paulo Roberto decidiu assinar com o Ministério Público Federal o primeiro acordo de colaboração premiada, já sob a égide da nova legislação editada para o combate mais vigoroso ao crime organizado.
O Brasil de então caminhava para a eleição presidencial com dois candidatos viáveis: Dilma Rousseff, que disputava a reeleição, e Aécio Neves, que tentava quebrar a sequência de mandatos do PT à frente da presidência da República.
Certamente, a eleição de 2014 deve entrar para a história do país como uma das mais disputadas. A briga renhida entre PT e PSDB levou a um racha entre os eleitores, recrudescendo uma polarização política ainda incipiente na sociedade brasileira.
Dilma, como se sabe, venceu o pleito por pequena margem. Ganhou, mas com seu partido no centro dos escândalos revelados pela Lava Jato, e enfrentando severos problemas econômicos, encontrou desde o início muitas dificuldades de governabilidade.
Embalada pelos casos de corrupção que vinham à tona com o trabalho da Lava Jato em Curitiba e em Brasília, parcela significativa da população voltou às ruas em 2015. Desta vez, o objetivo era claro: queriam o impeachment da presidente Dilma.
Com a economia em frangalhos, escândalos de corrupção que se revelavam em proporções impensáveis, baixa popularidade e sem apoio do Congresso, em agosto de 2016, a presidente sofre o impedimento, e assume seu vice, Michel Temer, do PMDB.
O combate à corrupção ainda estava em alta por essa época. A Lava Jato avançava e expandia-se com o apoio da mídia e da opinião pública. Todas as tentativas de frear as investigações pelos meios tradicionais (por nulidades de algibeira, manobras judiciais e políticas) esbarravam na qualidade técnica do trabalho desenvolvido pelo Ministério Público, pela Polícia Federal e pelo Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, mas principalmente no suporte massivo que a operação recebia publicamente.
No entanto, isso não duraria muito tempo. Em novembro desse mesmo ano, a Câmara dos Deputados infligiu uma derrota esmagadora aos esforços de combate à corrupção e à impunidade que marcará indelevelmente a sua história. Na madrugada da queda do avião do time da Chapecoense – fato de comoção nacional –, os deputados rejeitaram as 10 Medidas, distorcendo completamente o propósito dos projetos de lei daquele pacote contra a corrupção. Na prática, jogaram na lata do lixo mais dois milhões de assinaturas colhidas pelo esforço concentrado da sociedade brasileira.
Mas o verdadeiro ponto de inflexão na jornada da Lava Jato deu-se mesmo em 2017 com a colaboração dos irmãos Batista da JBS. Na posse de uma gravação comprometedora do Presidente da República e do senador Aécio Neves, de uma infinidade de provas de corrupção contra centenas de políticos e partidos de todos os matizes e contra um Procurador da República que assessorava o então Procurador-Geral Eleitoral, Joesley e Wesley Batista conseguiram do Ministério Público Federal uma cláusula de imunidade no acordo celebrado.
O país não estava, naquele momento, pronto para mais aquele passo. Um presidente recém-empossado, após um traumático processo de impeachment da antecessora, com apoio do parlamento, de parte da mídia e do setor econômico, não cairia tão facilmente: era preciso manter isso aí. Antes do caso JBS vir a público, presenciei, por mais de vez, o então PGR, Rodrigo Janot, expressar sua perplexidade diante do alcance da corrupção no país. Dizia ele entre taciturno e incrédulo: não sei se o país suportará tanta verdade sobre si mesmo.
As gravações e parte das provas apresentadas foram divulgadas na noite da quarta-feira (17.05.2017) pelo jornal “O Globo”. Na quinta (18.05), uma operação foi deflagrada com base nas informações colhidas com a colaboração da JBS. O ambiente ainda era turvo na sexta-feira (19.05), e a sorte do presidente incerta ainda. Foi então que, no sábado (20.05), o jornal Folha de São Paulo, em momento profundamente infeliz de sua história, publicou, com destaque, matéria sobre o resultado de uma “perícia” por ele contratada, que identificou, no áudio de conversas gravadas entre os colaboradores e o presidente da República, “mais de 50 edições”. Esse fato fortaleceu Michel Temer e seus apoiadores.
Poucos dias após a matéria da Folha, descobriu-se que o “perito” contratado era, para dizer o mínimo, profissional de baixíssima credibilidade, e que as supostas 50 edições da gravação do presidente eram, na verdade, pausas naturais do aparelho de gravação. O estrago, no entanto, estava irremediavelmente feito.
O Estado de São Paulo, por sua vez, foi mais explícito em sua luta para salvar o mandato do presidente Temer. Esse jornal publicou uma sequência de sete editoriais, entre os dias 18.05.2017 e 24.05.2017, dedicados exclusivamente a atacar e desqualificar a colaboração firmada com os irmãos Batista. No dia 24.05, o editorialista chegou a pedir o impeachment do PGR Rodrigo Janot: Como se vê, há mais do que indícios de que o sr. Janot já não sabe onde se situa o norte firme da lei e da Constituição. Se excessos ou omissões há de sua parte, a Constituição prevê caminhos para sua substituição. Afinal, numa República, sempre deve prevalecer a lei e a ela também se sujeita aquele que deve guardá-la.
A partir daí, o presidente gastaria todo o seu capital político para manter-se no poder, deixando em segundo plano reformas importantes e a própria gestão do governo. Michel Temer conseguiu, a um custo muito alto para o país, barrar duas consistentes denúncias contra si oferecidas pelo então Procurador-Geral da República.