Corte IDH

Corte IDH condena Peru por danos ao meio ambiente e à saúde de moradores de La Oroya

Tribunal ressalta violação ao direito a um meio ambiente saudável e menciona princípio de equidade geracional

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Crédito: Observatorio de Conflictos Mineros de América Latina

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Peru pela contaminação gerada por um complexo metalúrgico instalado em La Oroya, cidade andina localizada na região central do país. O Tribunal considerou o Estado peruano responsável por uma série de violações socioambientais, entre elas a violação do direito a um meio ambiente saudável, à saúde, à integridade pessoal, à vida digna, ao acesso à informação, à participação política pública, às garantias judiciais e à proteção judicial de 80 moradores da localidade. 

Em sentença divulgada na última sexta-feira (22/03), a Corte também concluiu que o Estado peruano é responsável pela violação dos direitos da infância de 57 vítimas, pela ausência de medidas adequadas de proteção, e pela violação do direito à vida de outras duas pessoas. 

No mesmo caso, o Peru foi declarado responsável pela violação da obrigação de desenvolvimento progressivo, conforme artigo 26 da Convenção Americana, pela adoção de medidas regressivas na proteção do meio ambiente. 

O caso se destaca pela relevância dada pelos juízes ao direito a um meio ambiente saudável e à responsabilidade dos Estados de cumpri-lo, em um tema que tem aparecido com mais frequência na atuação da Corte. No texto da sentença, o Tribunal observou que o direito a um ambiente saudável constitui um interesse universal e é um direito fundamental para a existência da humanidade. 

Os juízes analisaram os fatos ocorridos em La Oroya, localidade peruana de 33 mil habitantes afetada por mais de 100 anos pela poluição do ar, da água e do solo derivada da atividade do Complexo Metalúrgico de La Oroya (CMLO), instalado ali em 1922 e dedicado à fundição e refino de metais pesados como chumbo, cobre, cádmio, zinco e arsênico. 

Em 1974, o Complexo foi nacionalizado e passou a ser propriedade da empresa estatal Centromin, que operou o CMLO até 1997. O complexo foi depois adquirido pela empresa privada Doe Run Peru, controlada pelo grupo estadounidense Renco.

Análises das atividades do complexo mostram que o CMLO teve impacto significativo no meio ambiente local, contaminando o ar, a água e o solo. Em 2006, La Oroya chegou a ser apontada como uma das dez cidades mais poluídas do mundo devido à intensa atividade mineradora e metalúrgica.

Direito ao meio ambiente saudável

Para a Corte, o Estado peruano descumpriu com sua obrigação de desenvolvimento progressista em relação ao direito a um meio ambiente saudável ao ter permitido a modificação, em 2017, dos valores máximos permitidos de dióxido de enxofre no ar.

O Tribunal reforçou que a exposição ao chumbo, ao cádmio, ao arsénico e ao dióxido de enxofre constituía risco significativo para a saúde das vítimas, que não receberam atenção médica adequada por parte do Estado quando adoeceram. 

A exposição à poluição ambiental produziu graves alterações na qualidade de vida dos moradores de La Oroya, gerando também sofrimento físico e psicológico que afetou seu direito à vida digna e à integridade pessoal. 

O impacto foi ainda maior em meninos e meninas, mulheres e idosos. No caso de duas vítimas, de cinco e 14 anos, a Corte considerou o Estado peruano responsável pela violação do seu direito à vida.

O Tribunal entendeu ainda que o Peru violou o direito à proteção judiciária, pelo fato de mais de 17 anos depois não ter adotado medidas efetivas para cumprir uma decisão do Tribunal Constitucional emitida em 2006 em favor da proteção dos habitantes de La Oroya. 

O Estado tampouco levou a cabo as investigações relativas aos atos de hostilidade, ameaças e represálias denunciados por nove vítimas que realizaram atividades em defesa do meio ambiente e da saúde dos habitantes de La Oroya. 

A Corte IDH também identificou que o Estado não cumpriu sua obrigação de fornecer informações completas e compreensíveis sobre a poluição ambiental à qual as vítimas foram expostas pelas atividades do CMLO, e sobre os riscos dessa contaminação à saúde, de acordo com o dever de transparência ativa. 

Tampouco criou espaços de participação efetiva das vítimas na tomada de decisões sobre questões ambientais. A ausência de informação foi obstáculo à participação política efetiva da população e uma violação do direito de acesso à informação.

A Corte determinou diversas medidas de reparação, entre elas a elaboração de um diagnóstico que determine o estado de contaminação do ar, da água e do solo em La Oroya, incluindo um plano de reparação de danos ambientais. 

Ordenou ainda que o Estado peruano ofereça assistência médica gratuita às vítimas e adeque a norma que define os padrões de qualidade de ar de maneira que os valores máximos permitidos para chumbo, dióxido de enxofre, cádmio, arsênico e mercúrio não excedam o máximo necessário para a proteção do meio ambiente e da saúde das pessoas.

As medidas de reparação incluem também a garantia de eficácia do sistema de estados de alerta em La Oroya e o desenvolvimento de um sistema de monitoramento da qualidade do ar, do solo e da água. O Estado peruano também deve pagar uma compensação financeira por danos materiais e imateriais estabelecida na sentença. 

Voto convergente

Os juízes Ricardo C. Pérez Manrique, Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e Rodrigo Mudrovitsch apresentaram voto convergente, no qual ressaltaram como o direito ao meio ambiente se faz cada vez mais latente no âmbito interamericano, especialmente desde a Opinião Consultiva 23/2017. 

“O reconhecimento do direito ao meio ambiente chegou tarde em todas as latitudes, como fez recentemente a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2022, mas o ritmo acelerado da sua projeção internacional torna necessário dar visibilidade à sua importância, tanto para as gerações atuais quanto às futuras”, escreveram os juízes. “No caso Habitantes de La Oroya Vs. Peru, a Corte Interamericana colocou no centro da gravidade da sentença o direito ao meio ambiente e sua ligação com outros direitos que considerou terem sido violados.”

Na decisão, ressaltaram, a Corte considerou provada a contaminação pelo complexo e que o Estado peruano tinha conhecimento da situação que constituía risco significativo para o meio ambiente e a saúde das pessoas.

“Este caso destaca e cristaliza claramente o impacto de não garantir direitos sociais – como o meio ambiente e a saúde – às pessoas, especialmente quando se trata de efeitos que se prolongam no tempo sem que medidas adequadas e eficazes (com base nas obrigações ambientais) sejam adotadas. Em particular, queremos destacar como a jurisprudência e as regulamentações interamericanas vêm se transformando, evoluindo e se expandindo, gradativamente, a ponto de identificar que o direito ao meio ambiente é um direito autônomo protegido pelo artigo 26 da Convenção Americana – em sua dimensão individual e coletiva-, e que nos últimos anos tem se colocado no centro da jurisprudência interamericana”, explicaram. 

No mesmo voto, os juízes fazem referência à importância do princípio de “equidade intergeracional” e afirmam que não se trata de uma menção isolada, uma vez que, ao contrário de muitos direitos humanos protegidos pela Convenção Americana, o conteúdo do direito ao meio ambiente não pode ser reduzido a medidas de reparação – ou políticas que são adotadas a partir dessa perspectiva – sob a lógica de que só terão impacto em um curto período de tempo (e, portanto, impactarão um grupo de pessoas em uma geração). 

Vinculado a isso, a Corte ressaltou a importância de a comunidade internacional reconhecer progressivamente a proibição de condutas que prejudiquem o meio ambiente como norma imperativa do direito internacional (jus cogens). 

Avanço na interpretação evolutiva

Para o advogado e consultor jurídico Ingo Sarlet, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), a sentença representa um importante marco e avanço na prática decisória da Corte. 

“Ela enrobustece a proteção jurídica do meio rambiente saudável e a correspondente responsabilidade dos Estados do espaço interamericano por violação de seus deveres de proteção”, afirma. “Outro aspecto importante é que a Corte sublinhou o dever do Estado de proteção de direitos humanos em face de violações por parte de terceiros, incluindo as empresas, enfatizando também o dever das empresas de respeitar os direitos humanos”. 

Para o especialista, o voto convergente destaca que a Corte, no caso La Oroya, colocou o centro de gravidade da decisão no direito ao meio ambiente e na sua vinculação com outros direitos humanos tidos como violados, como é o caso da saúde, da vida, de uma vida digna, entre outros. 

“Tal interdependência, o fato de o direito ao meio ambiente ser um direito autônomo e que tal direito tem uma dimensão tanto individual quanto coletiva, foi igualmente ressaltado e desenvolvido, em especial tomando como referência a opinião consultiva 23/2017 da própria Corte, de tal sorte que o direito a um meio ambiente saudável passou a ocupar lugar central na sua jurisprudência”, diz Sarlet. “Dentre muitos outros pontos dignos de nota, o voto destaca o caráter de jus cogens, portanto, imperativo, da proteção do ambiente no plano internacional, ademais de ressaltar e desenvolver o princípio da equidade intergeracional”, destaca.  

Sarlet diz ser difícil aferir o impacto que essa posição pode ter em outros casos semelhantes na região, uma vez que dependerá, entre outros fatores, do quanto juízes e tribunais dos Estados que integram a comunidade interamericana levarem em conta a decisão da Corte e os argumentos desenvolvidos no voto em questão.

“O que se pode afirmar é que, se tais diretrizes forem levadas a sério, a proteção do meio ambiente e de uma série de outros direitos humanos poderá vir a ter níveis mais altos de efetividade”, afirma. 

André de Carvalho Ramos, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP, endossa a declaração de que a sentença no caso La Oroya é um passo importante da Corte no reconhecimento da proteção do direito ao meio ambiente com base no artigo 26 (sobre desenvolvimento progressivo) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

“Esse artigo não foi redigido pelos Estados com essa intenção no passado. Ao contrário, em 1969, os Estados desejavam reduzir ao máximo sua responsabilização em relação aos direitos sociais. A Convenção sequer mencionava o direito ao meio ambiente. Então, do ponto de vista interno, apesar de algumas vozes dissonantes, a decisão mostra que a Corte tem avançado em sua interpretação evolutiva, adaptando os novos tempos, que ficam evidentes com a emergência climática. Seria incoerente não proteger o direito ao meio ambiente de forma autônoma, cada vez mais potente, uma vez que o espírito da Convenção é o direito à vida digna”, afirma o especialista. 

Em paralelo ao avanço nesse direito, criou-se mais um ponto de tensionamento entre os Estados e a Corte, acrescenta André de Carvalho Ramos. 

“Ao reconhecer a natureza imperativa das normas ambientais e do direito ao meio ambiente, a Corte impõe aos Estados o dever não só de preservar o meio ambiente, mas também de tomar todas as medidas para reparação e superar qualquer tipo de alegação dos Estados. A Corte faz um trabalho adequado e evita apenas a retórica do direito ao meio ambiente”, explica. 

Outro ponto de destaque, opina, foi a menção ao princípio da equidade intergeracional: “Foi interessante essa conscientização de que é necessário um diálogo intergeracional em nome de um bem coletivo. Os votos convergentes chegam a mencionar os direitos das crianças que chegam e das que ainda vão chegar”, ressalta o especialista. “Há uma preocupação também em detalhar e identificar termos importantes, como mostrar como essas questões ambientais levaram La Oroya a ser um exemplo de ‘zona de sacrifício’, devido à contaminação irreversível causada aos moradores pela atividade do complexo metalúrgico”. 

Por fim, afirma, há um impacto importante em relação à atuação das empresas. Tradicionalmente, desde a construção da Convenção de 1969, atribui-se a responsabilidade internacional do Estado com base na omissão, no dever de reprimir ou reparar danos causados por particulares. Neste caso, diz o especialista, a Corte sinaliza que há, também, responsabilidade e compromisso das empresas com as agendas sociais, e que os Estados devem zelar por isso. 

Voto divergente

Os juízes Humberto Sierra Porto e Patricia Pérez Goldberg emitiram voto parcialmente dissidente, no qual afirmaram concordar que o direito a um meio ambiente saudável é um direito em si mesmo e deve ser protegido, porém discordaram de que se trate de um direito cuja justiciabilidade se desprenda do estabelecido no artigo 26 da Convenção Americana. 

Os dois juízes também divergiram em relação à declaração de responsabilidade do Estado peruano pela violação do direito à saúde, com base no disposto no mesmo artigo da Convenção. 

“Se a questão colocada for observada com atenção, é possível perceber que não se explica como os efeitos na saúde são violações diferentes e separadas dos efeitos à integridade pessoal das vítimas. Isto acontece justamente porque não se faz o que é devido, ou seja, avaliar as afetações ao direito à saúde em conexão com e no âmbito da análise do direito à integridade pessoal. Esta forma de proceder, como explicado, além de incorreta, prejudica a interpretação do direito à integridade pessoal, que, como resultado desta prática, é irremediavelmente despojada de conteúdo”, escreveram os dois juízes. 

Humberto Sierra Porto e Patricia Pérez Goldberg destacaram ainda que o caso oferecia uma via alternativa de análise dos impactos à saúde e ao meio ambiente “sem que a Corte atuasse fora de sua competência material”. 

“O Tribunal Constitucional (peruano) emitiu uma decisão em 12 de maio de 2006, na qual determinou uma série de medidas para a proteção da saúde e do meio ambiente saudável diante da poluição produzida pela indústria metalúrgica de La Oroya. O cumprimento dessas ordens era um mecanismo idôneo para a proteção constitucional dos habitantes de La Oroya, e o Estado, ao não cumprir estas ordens, descumpriu com sua obrigação de garantir um recurso judicial eficaz para a proteção dos direitos humanos das vítimas nos termos do artigo 25.2.c da Convenção Americana”, alegaram. 

Para André de Carvalho Ramos, o centro da divergência é de como deve ser feito o relacionamento entre os Estados e a Corte e o poder do Tribunal de avançar na interpretação da Convenção, adequando-a a um novo contexto, com base no princípio maior que os Estados reconhecem do direito à vida digna. 

“Além de não ser unânime essa interpretação cada vez mais potente que busque adequar a Corte aos novos anseios para uma vida digna, o voto divergente defende, de alguma maneira, que a Corte pode estimular a atuação dos órgãos internos. No caso em questão, o Tribunal Constitucional peruano já tinha adotado em 2006 uma série de medidas para a proteção da saúde e do meio ambiente, com base na atividade do complexo metalúrgico. Como o Estado não cumpriu, violou o direito à proteção judicial previsto no artigo 25, que é bastante tradicional e presente desde os primeiros casos”, explica. 

O voto, acrescenta, mostra um contexto mais amplo de certa discordância sobre o papel da Corte e o alcance da interpretação evolutiva.

“Há um desejo da divergência de dar mais destaque às decisões locais, e a Corte condenaria o Peru neste caso não por violar o direito ao meio ambiente, mas por não ter cumprido uma decisão local”, diz. 

Luta de 20 anos

A Associação Pró Direitos Humanos do Peru (Aprodeh) comemorou a divulgação da sentença, classificada por ela como resultado de mais de 20 anos de luta e fonte de reconhecimento do direito das vítimas à justiça e à reparação. 

“A poluição do ar e da água em La Oroya tem sido um problema persistente que afeta a qualidade de vida de seus habitantes, e esta sentença marca um passo crucial em direção à proteção dos direitos humanos e do meio ambiente na região e no mundo. Ainda há muito trabalho a ser feito, mas esta decisão é um avanço importante na busca por justiça para La Oroya e seus moradores.”, afirmou a organização em nota publicada no Instagram.

Participaram da elaboração da sentença deste caso os juízes Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Humberto Sierra Porto (Colômbia), Nancy Hernández López (Costa Rica, presidente), Verónica Gómez (Argentina), Patrícia Perez Goldberg (Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil, vice-presidente). 

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