Corte IDH

Corte IDH condena Guatemala e Honduras a reconhecer território e indenizar indígenas

Em decisões inéditas, Corte IDH responsabilizou os países também por violação ao artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos

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Corte Interamericana de Direitos Humanos / Crédito: Divulgação Corte IDH

Em decisão inédita, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) considerou que a ausência de consulta prévia, livre e informada viola também o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. O entendimento foi usado para fundamentar duas decisões deste ano que reconhecem os Estados da Guatemala e de Honduras como responsáveis pela violação dos direitos à propriedade, à participação nos assuntos públicos e ao acesso à informação pública. As sentenças relacionadas às comunidades indígenas Maya Q’eqchi’, da Guatemala, e Garífuna, de Honduras, determinam ainda que as consultas prévias sejam convertidas em resultados concretos.

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No caso Comunidad Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente vs. Guatemala, o povo indígena de origem Maia pediu à Corte o reconhecimento do direito às terras que ocupam historicamente. Os Q’eqchi’ solicitaram também a responsabilização internacional da Guatemala pela falta de leis que garantam a preservação do território onde eles preservam cultura, língua própria e trabalho, além de proteção e autonomia para decidir sobre a exploração dos recursos naturais presentes na comunidade.

Segundo a comunidade, o Estado concedeu licença para a instalação de um projeto de mineração à beira da comunidade, sem o direito à consulta prévia garantido na constituição do país. Quando foi realizada audiência na Corte IDH, a Guatemala alegou questão processual e afirmou que títulos coletivos não estão previstos na lei do país.

A Corte IDH, por sua vez, reconheceu os pleitos da comunidade indígena. Na sentença, responsabiliza a Guatemala e determina reparação concreta. Estabelece, entre outros, o prazo de seis meses para início do processo de concessão à comunidade de um título comunitário ou coletivo, a realização de uma consulta prévia adequada, a criação de um fundo de desenvolvimento comunitário, além do pagamento de indenização por dano imaterial e o reembolso de custas e despesas.

No caso Comunidad Garífuna de San Juan y sus Miembros vs. Honduras, a comunidade indígena pedia a restituição de suas terras ancestrais. O povo garífuna alega que, embora tenha título que reconhece uma parte do território, o Estado não titulou a área total e, em vez disso, outorgou títulos a pessoas de fora da comunidade para a construção de hotéis, casas particulares e um parque nacional.

De acordo com os garífunas, as construções de projetos turísticos dentro da área ancestral foram feitas sem consulta prévia, o que violou o direito à propriedade coletiva. Além de pedir a responsabilização de Honduras, a comunidade solicitou que o povo seja indenizado pelos danos materiais e morais consequentes da impossibilidade de gozar de seu território e pelas mortes relacionadas ao confronto territorial. O Estado hondurenho, porém, argumentou em audiência pública que não há provas técnicas sobre o tamanho do território alegado pelo povo.

A Corte IDH, no entanto, declarou que o “Estado é responsável pela violação dos direitos à propriedade, à participação nos assuntos públicos e ao acesso à informação pública, conforme estabelecido nos artigos 21, 23 e 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo da Comunidade Garífuna de San Juan, nos termos dos parágrafos 88 a 137”. Responsabilizou o Estado também pelas violações dos direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial.

Determinou ainda que seja concedido o título de propriedade coletiva à comunidade pelas terras ou que, como alternativa, seja feito o pagamento de indenização. Além disso, o Estado deverá pagar indenizações por danos materiais e imateriais, constituir um fundo de desenvolvimento e arcar com o reembolso de custas e despesas. Ficou previsto o prazo de um ano para o Estado apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para cumprir a decisão.

Em voto fundamentado sobre esse caso, os juízes Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (do México) e Rodrigo Mudrovitsch (do Brasil) destacam que “os direitos sobre territórios, terras e recursos naturais constituem o ‘núcleo duro’ dos direitos dos povos indígenas”.

“Nesse sentido, a jurisprudência deste Tribunal tem sido caracterizada por um dinamismo interpretativo para garantir tais direitos. Portanto, é necessário encontrar soluções práticas para cada caso específico, ao mesmo tempo em que delineia as obrigações dos Estados de acordo com as interpretações provenientes da Convenção Americana e da própria jurisprudência. Nessa evolução interpretativa, consideramos que deve sempre prevalecer a interpretação mais favorável para os grupos historicamente menos favorecidos, como é o caso dos povos originários”, afirmam no documento.

Artigo 13

Os dois magistrados também assinam voto concorrente em relação ao caso dos povos Q’Eqchi, da Guatemala. Nesse voto, Mac-Gregor e Mudrovitsch explicam que discussões sobre o direito de acesso à informação, consagrado no artigo 13 da Convenção, sempre estiveram presentes nos litígios interamericanos envolvendo processos de consulta, mas ressaltam que a “Corte IDH houve por bem adotar, até o presente caso, a posição de reconhecer a importância do fornecimento e da disponibilidade de informação culturalmente acessível que permita embasar os procedimentos de consulta”.

“Para tanto, o Tribunal valia-se tão somente dos artigos 21 e 23, tidos como suficientes, naquele momento, para abrigar as obrigações estatais nessa matéria. Com base nessas premissas, o Tribunal fazia com que não tivesse lugar um exame de mérito sobre eventual violação ao artigo 13 da Convenção, a exemplo dos casos Kichwa de Sarayaku vs. Equador, Kaliña y Lokoño vs. Suriname e Lhaka Honhat vs. Argentina”, explicam.

Para os magistrados, “houve importante avanço promovido pela Corte IDH ao identificar no processo de consulta prévia a necessidade de garantia, como parte de seu conteúdo, do pleno acesso à informação como elemento diferenciador e com conteúdo autônomo a partir do artigo 13 da Convenção, aos grupos cujos territórios se veem afetados pela intervenção de terceiros ou então por projetos de desenvolvimento, como no presente caso”.

A professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos, Carolina Cyrillo, explica que “até então a Corte reconhecia que existia um direito à consulta prévia, que derivava das obrigações de garantir o direito à propriedade coletiva (art. 21) e o direito à participação política (art. 23)”. Com as novas decisões, de acordo com ela, agora, “a Corte também declarou que esse direito envolve obrigações específicas de garantir às comunidades afetadas o acesso adequado à informação sobre os projetos que atingem seus territórios, nos termos do art. 13.1 da Convenção”.

Decisão inédita

Um dos autores do livro Povos Indígenas na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o professor de Direito Constitucional da UFRJ, Siddharta Legale reforça que “em nenhum caso anterior, em matéria de consulta prévia, a Corte havia se manifestado sobre a violação do artigo 13, que trata justamente do direito à liberdade de expressão”.

“Quando ela reconhece esse direito à informação da comunidade com base na Convenção Americana, isso torna a proteção da consulta um direito autônomo decorrente da necessidade de gerar informações confiáveis, estudos de impacto ambiental, ver quais são os benefícios mútuos entre a comunidade e o Estado Nacional, para que aquele projeto seja possível. Até aqui, quando se falava em consulta, a mobilização era da Convenção 69 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Agora, ainda que o Estado, por exemplo, não tenha assinado e ratificado a Convenção 69, se os povos indígenas têm direito à informação, há um direito autônomo com base na Convenção Americana, no artigo 13, à consulta prévia, livre e informada”, pontua.

O advogado que atua perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Flávio Bastos, chama atenção para a importância dessas decisões em âmbito internacional. “Quando a gente fala de direitos indígenas, há sempre interferência de fatores políticos e econômicos, especialmente, na exploração das terras. Note que, nesses dois casos, havia empreendimentos hoteleiros em ambos e de mineração em um deles. É muito importante que as instituições políticas dos países sejam efetivamente democráticas, observem e cumpram as decisões da Corte, para que a região como um todo possa ter reconhecido um padrão de direitos humanos adequado.”

Histórico

Essas duas decisões resultam de um entendimento que vem sendo formado há 22 anos. Coordenador do grupo de pesquisa Observatório dos Direitos dos Originários, na Universidade Candido Mendes, o professor Adriano Corrêa de Sousa conta que o primeiro precedente que começou a abordar essa temática foi o caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua, de 2001.

“A partir desse caso, somado a outros precedentes, como Saramaka vs. Suriname de 2007, Xákmok Kásek vs. Paraguai de 2010, Kichwa de Sarayaku vs. Equador de 2012, foi construindo um tijolo por tijolo a ideia de que a consulta prévia livre e informada significa que é prévia, significa que a consulta deve ser realizada antes de o Estado interferir em um direito fundamental da comunidade indígena, que é o direito à propriedade, previsto no artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos”, explica.

Ele esclarece que prévia significa que o Estado precisa consultar os povos ancestrais antes de qualquer medida ser adotada. Livre determina que a consulta deve ser realizada de maneira sem haver coerção. E informada, prevê que a consulta deve ser realizada de uma forma que os povos indígenas tenham acesso a todas as informações relevantes sobre a medida em questão. “A consulta deve ainda ser adequada e eficaz. Ou seja, deve atender às necessidades e preocupações dos povos indígenas e levar a resultados concretos”, conclui.

Participaram do julgamento dos dois casos os juízes Ricardo C. Pérez Manrique (do Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (da Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (do México), Nancy Hernández López (da Costa Rica), Verónica Gómez (da Argentina), Patricia Pérez Goldberg (do Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (do Brasil).

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