
Por meio de boletins de jurisprudência, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulga decisões que receberam indicação de relevância sob o prisma jurisprudencial. Todos que lidam com direito público os leem. Em um dos últimos, as seguintes palavras foram escolhidas pela diretoria de jurisprudência do Tribunal para sintetizar o que fora decidido no Acórdão 1374/2021-P: tomada de contas especial, responsabilidade, entidade de direito privado, princípio da boa-fé, débito, recolhimento, prazo e renovação.
Após o anúncio da constituição de débito em procedimento de cunho punitivo, houve o destaque: “Por não gerirem recursos públicos, a boa-fé desses agentes [pessoas jurídicas contratadas] pode ser presumida, desde que não haja elementos nos autos que a descaracterizem”. A contrario sensu, portanto, a boa-fé dos gestores públicos não se presumiria. O recado parece claro: cuidado!
O leitor que acessa a íntegra do acórdão, contudo, é tomado por boa surpresa.
De fato, o TCU apurou irregularidades na execução de contrato de obra e constituiu débito a ser quitado por consórcio contratado. Mas ao contrário do que se poderia imaginar, o Tribunal, apoiado nos arts. 22 e 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, decidiu isentar os agentes públicos de responsabilidade pessoal.
Nos termos do voto do relator, o ministro Jorge Oliveira, o TCU teve o cuidado de individualizar condutas e aferir, com base nas defesas apresentadas e no material probatório coligido pela unidade técnica, se as irregularidades teriam sido, ou não, produto de dolo ou erro grosseiro — e, por conseguinte, se haveria elementos para responsabilização pessoal nos termos do art. 28 da LINDB.
Por exemplo, o responsável técnico pelo gerenciamento e fiscalização das obras — que celebrou aditivo contratual, aprovou planilhas e boletins de medição etc. — não deveria, na avaliação do TCU, ser pessoalmente responsabilizado. É que as circunstâncias concretas (magnitude do empreendimento e complexidade da obra), a boa-fé do gestor (aferida a partir da adoção de conjunto de condutas diligentes) e a ausência de erro grosseiro (culpa grave) o isentariam de punição.
O reconhecimento de erro escusável pelo TCU revela uso adequado da LINDB e postura que, na prática, procura afastar o receio de responsabilização por culpa leve, aumentando a segurança jurídica na interpretação e aplicação do direito público, em consonância com o art. 30 da LINDB.
A pergunta é: por que a diretoria de jurisprudência do TCU optou por sintetizar o acórdão com frase do relator dita em obiter dictum? Por que destacar, justamente no boletim que todos leem, frase solta que inspira medo no gestor, sendo que a decisão pretendeu obter sua confiança?
De duas, uma: ou o TCU se comunica mal com a sociedade, ou, como sugeriu André Braga, o Tribunal tende a privilegiar “a divulgação de informações sobre decisões que identificam ou punem irregularidades na condução de licitações ou execução de contratos administrativos”. Se o TCU quer se dissociar do tal “apagão das canetas”, essa não parece ser boa estratégia.