Quatro enfáticas e conhecidas frases extraídas de distintos momentos de nossa vida política deixam claro por que o Brasil continua desmentindo a profecia de que é o país do futuro.
A primeira delas é atribuída ao então governador de São Paulo, Orestes Quércia, na década de 1990: “Quebrei o Banco do Estado de São Paulo, mas elegi meu sucessor”. Os fatos mostraram que seu afilhado era um político medíocre e que o estrago feito no maior banco estadual do país foi tão grande que ele sofreu intervenção do Banco Central no último dia de seu mandato.
A segunda frase – “gasto é vida” – foi dita pela então ministra Dilma Rousseff, quando se contrapôs ao programa de ajuste fiscal de longo prazo formulado pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Esse argumento de aparente inspiração keynesiana deu a ela a visibilidade de que precisava para, mais tarde, ascender ao poder, de onde caiu tempos depois em razão de um processo de impeachment, por não ter sabido atuar com base nas regras do jogo político.
As duas últimas frases são recentes. Foram pronunciadas após o presidente da República ter baixado um decreto conferindo mais poder ao chefe da Casa Civil – que é comandada por um senador do centrão – na execução do Orçamento, reduzindo com isso a autonomia do ministro da Economia. Enquanto o titular do primeiro ministério alegou que precisava de “mais liberdade para trabalhar”, o titular do segundo afirmou que agora haverá “menor pressão sobre a pasta”.
Em todos esses casos, o denominador comum está na opção por um populismo fiscal e orçamentário que, justificado com base no princípio de que os fins justificam os meios, costumam provocar consequências trágicas. O desprezo pela ideia de responsabilidade fiscal, por exemplo, tende a desorganizar a economia, prejudicando com isso os segmentos mais pobres da sociedade. O menosprezo pelo teto de gastos eleva as taxas de risco, aumenta preços e desarranja o câmbio, fragilizando ainda mais as contas públicas.
No plano político, esse tipo de populismo fiscal e orçamentário tende a aumentar ainda mais o processo de corrosão da democracia representativa do país. Entre outros motivos, porque a liberação indiscriminada de recursos públicos em um ano eleitoral favorece deputados e senadores que disputam a reeleição e inviabiliza a eleição de candidatos novos, que poderiam oxigenar, depurar e modernizar o Poder Legislativo. Também torna o Estado menos eficiente e mais disfuncional, uma vez que os reeleitos anseiam pela continuidade do loteamento – a palavra mais adequada seria privatização – de cargos e postos típicos da burocracia governamental entre seus apaniguados, em nome de uma aliança que viabilize a “governabilidade”.
Como esses cargos são de confiança e de livre nomeação e como os indicados pelos parlamentares do padrão do centrão em sua maioria não têm o preparo profissional para exercê-los, esse pacto afronta o artigo 37 da Constituição. Ele define o ethos da administração pública no âmbito de um “Estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, como afirma o extenso preâmbulo da Carta.
Segundo o artigo 37, a administração pública “obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade”.
Em outras palavras, esses princípios entreabrem tudo o que o decreto de Bolsonaro, ao deixar nas mãos do centrão a palavra final em matéria de execução orçamentária, anula na prática – a saber, eficiência, competência e profissionalismo no trato da coisa pública.
Em vários países desenvolvidos, como a Inglaterra e os Estados Unidos, o advento da modernidade – após a Revolução Inglesa de 1688 e a promulgação da Constituição americana em 1787 – levou à separação entre Estado e governo, entre Executivo e Legislativo. Já entre nós, como revelou Raymundo Faoro em “Os donos do poder”, livro que chegou à 4ª edição em 2021, a afirmação do ethos burocrático e a separação entre o público e o privado, mesmo constando de várias constituições, jamais teria ocorrido efetivamente nos últimos seis séculos. Nesse período, a comunidade política sempre tratou os negócios públicos como se fossem particulares.
Para Faoro, o poder político não foi exercido nem para atender aos interesses das classes agrárias nem àqueles das classes burguesas. Foi, isto sim, exercido em causa própria por um grupo social cuja característica era a de dominar a máquina política e administrativa do país, através da qual fazia derivar seus benefícios de poder, prestígio e riqueza. Sua tese é que, nos seis séculos entre o Estado português de d. João I e d. Manuel e o final da ditadura de Getúlio Vargas, houve uma “viagem redonda”.
Título do último capítulo de seu livro, essa não é apenas uma expressão engenhosa e sugestiva. Mais do que isso, é a confirmação de que em matéria política o Brasil pouco mudou. No passado do Brasil patrimonialista, afirma Faoro, “o chefe provê, tutela os interesses particulares, concede benefícios e incentivos, distribui mercês e cargos, dele se espera que faça justiça sem atenção às normas objetivas e impessoais”. Não é justamente isso o que o centrão vem fazendo no presente, ao controlar um governo que se elegeu acidentalmente defendendo uma “nova política” e que, após três de mandato, fez tudo o que desprezou como “velha política”?
Infelizmente, o decreto de Bolsonaro nada mais é do que uma forma de autorização legal para a apropriação da máquina administrativa por um grupo de partidos, como sempre ocorreu no país. E dá a medida, igualmente, do quanto o Brasil ainda está distante do ethos burocrático do Estado moderno.