A troca de correspondências entre o Ministério da Defesa e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tendo como pano de fundo a segurança das urnas eletrônicas, é o fato político mais relevante do ano, além da consolidada polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL).
Isso porque, desde que transformou o questionamento ao sistema eleitoral como ideia-força de sua campanha, Bolsonaro tenta arrastar os militares para o seu lado, quase como uma “força moderadora” de eventuais desmandos do Judiciário, muito embora não exista guarida constitucional a essa tese.
As manobras para ampliar a influência do presidente nas Forças Armadas começaram em abril passado, quando ele substituiu o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, exatamente para promover uma extensa reformulação nos comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Na visão do chefe do Executivo, Azevedo não estaria acolhendo os seus clamores e vinha estimulando a “autonomia” dos comandantes, cada vez menos aderentes às orientações do Planalto.
Foi naquele momento que se apresentou o general Walter Braga Netto, então chefe da Casa Civil, como nome mais leal a Bolsonaro para implementar a “guinada ideológica” das Forças Armadas aos interesses do presidente.
Braga Netto assumiu a vaga de Azevedo, mas não conseguiu emplacar os nomes de confiança de Bolsonaro na chefia do Exército, a mais cobiçada pelo bolsonarismo. O recém-empossado ministro instalou os aliados Carlos Baptista Júnior na Aeronáutica e Almir Garnier na Marinha. Mas o nome que emergiu para as forças terrestres após um intrincado protocolo interno foi o de Paulo Sérgio Nogueira, egresso do RH do Exército, em Brasília.
Nogueira vinha se manifestando publicamente no sentido contrário ao de Bolsonaro, sobretudo nas questões que envolviam a pandemia. Liderou um processo amplo de lockdown nos quartéis, defendeu o isolamento social e a vacinação.
Ao assumir o Exército, manteve uma conduta de distanciamento estratégico das questões políticas e chegou a frustrar Bolsonaro em solenidades militares com seu discurso técnico e inerte aos apelos presidenciais por engajamento nas causas do governo.
Com a desincompatibilização de Braga Netto para postular a vaga de vice na chapa bolsonarista à reeleição, o presidente acertou com o ex-ministro a sucessão na pasta e foi convencido a promover Nogueira ao posto.
Na visão de interlocutores do governo, a medida serviria para transformá-lo num subordinado leal ao presidente, rompendo assim uma linha de independência e moderação que mantinha no cargo anterior, quando respondia pelas tropas.
O plano de Bolsonaro e Braga Netto deu certo até agora. Três meses depois de assumir o Ministério da Defesa, Nogueira já se transformou numa peça a serviço das demandas políticas de Bolsonaro e vem seguindo à risca o roteiro combinado com o chefe.
Questão de semântica
Em audiência na Câmara, na semana passada, o general leu o texto do sempre lembrado artigo 142 da Constituição para tratar do papel dos militares no processo eleitoral: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, afirmou. “É isso que as Forças Armadas vão estar sempre em condições de fazer”, completou.
O mesmo artigo é citado na carta assinada por ele e enviada ao presidente do TSE, Edson Fachin, na qual reclama da “falta de prestígio” das Forças Armadas na observância de medidas pleiteadas por elas para aperfeiçoar o sistema eleitoral.
“A todos nós não interessa concluir o pleito eleitoral sob a sombra da desconfiança dos eleitores. Eleições transparentes são questões de soberania nacional e de respeito aos eleitores”, finalizou o ministro da Defesa, sem explicar de onde vem a desconfiança e qual o motivo que leva o governo a levantar dúvidas sobre o processo.
Trata-se de uma retórica que encontra eco em boa parte dos apoiadores mais radicais de Bolsonaro, que desde 2019 evocam o mesmo artigo 142 para sustentar o que chamam de “intervenção militar a pretexto de restaurar a ordem”. Embora já contestados por juristas e pelo próprio entendimento do STF, os bolsonaristas da ala ideológica festejaram a manifestação de Nogueira como um “aceno” a esse grupo, que pretende organizar, a partir de julho, uma série de manifestações de escala nacional em favor do presidente, contra o Judiciário e pela “liberdade”, assim como ocorreu em setembro passado.
Impasse só no começo
E o que pode acontecer, daqui em diante?
Em primeiro lugar, mesmo que Fachin tente colocar panos quentes na crise e acolher parte das reivindicações de Nogueira, é altamente improvável que seja firmado um acordo que restabeleça a liturgia do processo de organização da eleição, que cabe exclusivamente aos civis, segundo a Constituição.
Primeiro porque Fachin não pode dar protagonismo a agentes do Exército no processo, como deseja o ministro da Defesa, sob pena de ser acusado de leniência com os espasmos golpistas que circulam em Brasília.
E segundo porque Nogueira está orientado a não ceder nos movimentos que coloquem dúvidas sobre o processo. Se for atendido em algum item da sua correspondência, certamente apresentará outras exigências em seguida, transformando a troca de cartas públicas em infindável polêmica, essa sim, de total interesse do Planalto.
Bolsonaro, é bom lembrar, já adotou vários ‘gatilhos’ nas suas críticas ao processo: primeiro foi a tentativa de adotar o voto impresso, depois a auditoria eletrônica, agora vem a apuração simultânea e assim será o percurso até outubro, repleto de ‘fatos novos’ a alimentar teorias conspiratórias contra o sistema.
E exatamente no final de agosto, provavelmente de forma simultânea com os novos protestos de rua bolsonaristas, assumirá o comando do TSE o ministro Alexandre de Moraes, hoje visto como principal antagonista do presidente na cúpula do Judiciário.
No âmbito da estratégia política, Bolsonaro tem trabalhado exaustivamente para deixar a dupla Fachin-Moraes sob suspeição para conduzir as eleições, o que ajuda a engajar sua militância e coordena uma narrativa de suposto favorecimento ao adversário Lula, que lidera as pesquisas na corrida presidencial até agora.