Administração federal

Governo quer revisar decreto da ditadura sobre máquina estatal

Debate será feito, em 2024, por grupo de trabalho com a participação da AGU e do Ministério da Gestão

Estatais, como a CEITEC, podem ser beneficiadas por mudanças legais

O governo se prepara para dar início a uma ampla discussão sobre o conjunto de normas que regem o funcionamento da administração federal e a sua relação com a sociedade. A ideia é mergulhar nos temas do Direito Administrativo, a partir do diagnóstico da carência de efetividade das ações da máquina pública.

Esse é um debate paralelo às negociações sobre mudanças nas carreiras e ao combate às distorções salariais no funcionalismo. No entanto, é considerado pelo Executivo como parte fundamental da chamada transformação do Estado.

Uma das tarefas mais simbólicas será a revisão do decreto-lei 200/67. Esse arcabouço conceitual, editado nos primeiros anos de ditadura, organiza o funcionamento do governo federal e dá as diretrizes sobre a atuação dos órgãos das administrações direta e indireta.

No entanto, na avaliação de especialistas, esse regramento não atende mais às demandas da sociedade e, muito menos, aos desafios impostos à administração pública pelo avanço tecnológico.

“Nós precisamos de um Estado que funcione. Um estado imprestável, é um Estado descartável. Nós temos que arrumar a casa, buscar soluções”, alertou o secretário de Transformação do Estado do Ministério da Gestão e da Inovação, Francisco Gaetani, durante evento promovido pela Enap, em setembro.

Dentre outras medidas, o plano é substituir o decreto 200/67 por um conjunto de projetos de lei, minutas de decreto e portarias. Esse debate será estruturado a partir de um grupo de trabalho, liderado pela Advocacia-Geral da União e pelo Ministério da Gestão e da Inovação, que será lançado no começo de 2024.

Um dos temas mais sensíveis diz respeito à chamada supervisão ministerial, que é a forma pela qual os servidores da administração direta controlam os atos praticados pelos colegas da indireta.

Na administração indireta, composta por autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas, será avaliado o estímulo às chamadas fundações estatais de direito privado.

O coordenador do Núcleo de Inovação da Função Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público, Conrado Tristão, explica que essas instituições têm mais autonomia e regras flexíveis, com a possibilidade de contratação de celetistas.

A introdução das fundações estatais de direito privado na administração federal indireta e mudanças nas regras relacionadas às estatais dependentes têm boa aceitação entre os principais interlocutores do governo ligados ao tema.

Nesse contexto, a própria ministra da Gestão, Esther Dweck, mencionou, em entrevista ao Valor, no começo de outubro, que existem “empresas estatais dependentes que precisam ser repensadas porque, como tal, elas têm muitas amarras”.

Como exemplo, a ministra citou o Ceitec, uma estatal vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, que produz semicondutores. Segundo Dweck, a empresa, que retomou as operações na semana passada, após quase ser liquidada, “deveria ser uma empresa de ponta, mas sempre foi dependente”.

As inspirações para as mudanças em análise

A revisão do decreto-lei 200/67 faz parte de uma visão de Estado na qual o conjunto de atos administrativos deve ser olhado a partir das consequências esperadas pela sociedade.

A alma dessas discussões, explica a secretária-geral de Consultoria da AGU, Clarice Calixto, segue a linha do aperfeiçoamento da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb), que, em 2018, passou a contemplar visões de consequencialismo, contextualismo e consensualidade.

“Há uma forte influência da Lindb em perceber que a decisão administrativa não é um ato isolado. Ela está dentro de um contexto de uma ação pública, de uma política pública, em que as consequências são muito importantes. Contexto, consequência e consensualidade são infinitamente mais adequados para solucionar os conflitos da sociedade. Então, é esse o desafio que queremos enfrentar”, disse Calixto, em entrevista à newsletter Por Dentro da Máquina.

Calixto conta que uma das mais importantes adaptações tem por objetivo garantir um sistema adequado de compras e contratações, especialmente na área de tecnologia da informação, que já é considerada estruturante também no serviço público.

A secretária-geral da Consultoria da AGU afirma que, nesse contexto, inovações implementadas em setores como o de ciência e tecnologia servem de referência para os estudos.

“Devemos usar os instrumentos da ciência e tecnologia para revolucionar o modo como o poder público compra, por exemplo. Lembrando: as compras públicas são 15% do PIB brasileiro”, afirma.

Além dos arranjos no campo da ciência e da tecnologia, as inovações no Direito Administrativo também devem beber na fonte de adaptações que já ocorrem no sistema da Cultura e no Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil.

O pesquisador Conrado Tristão, da SBDP, acrescenta que, no caso da atualização do decreto-lei 200, haverá condições para avanços nas contratações, no orçamento e na gestão de pessoas nos órgãos da administração indireta.

Ele salienta, no entanto, que toda essa mudança deverá suscitar difíceis e necessários debates com os órgãos de controle.

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