Sergio Moro

Um recado de Baltasar Garzón para Sérgio Moro

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Capítulo 1

Pressões políticas e econômicas

Baltasar Garzón enfrentou, quando ainda era juiz na Espanha, pressões de grupos econômicos e políticos para não investigar casos de corrupção e de desvio de recursos públicos por partidos políticos. Afastado da magistratura, assiste agora o juiz Sérgio Moro investigar um dos maiores casos de corrupção da história do Brasil. E relaciona o que viveu com a realidade da Operação Lava Jato.

“É muito difícil investigar a criminalidade organizada. Você sempre irá se encontrar diante de mil dificuldades. Você enfrenta estruturas muito poderosas de poder econômico, de poder político e de poder de fato. Portanto, com as armas apenas da lei, tens que ter a consistência suficiente para que não derrubem essa investigação”, afirmou.

Como fazer isso? “A fórmula é cumprir com a legalidade, dar todas as garantias que podem haver, até mais do que as exigidas. Mas o que eu diria de mais fundamental é a necessidade de cumprir as normas. Acontece que as normas tem uma escala. Digamos que de 1 a 100. Aplicar a norma, de 1 a 100 é o que se deve fazer. Chegar ao 101, não! por que isso é o excesso.”

Garzón tornou-se mundialmente conhecido pelas investigações que abriu e pelas decisões que tomou, como a ordem de prisão do ditador chileno Augusto Pinochet. Atualmente, fora da magistratura, à frente da defesa do ciberativista australiano Julian Assange — exilado na embaixada do Equador em Londres.

Como advogado, ele avalia críticas contra decisões judiciais como as feitas de forma recorrente e contundente pelas defesas dos investigados na Operação Lava Jato:

“O direito de defesa não significa torpedear ou eliminar o juiz. Isso é armadilha, isso é jogo sujo. Significa dar argumentos, estabelecer argumentos para que o tribunal decida”.

O juiz só se dobra à pressões externas se estiver disposto a isso, pondera Garzón. Mas admite que o magistrado, em casos que envolvem grandes interesses, está sempre sob a mira de grupos políticos e econômicos. “Claro que, em algum momento, quando ele puderem, eles vão te eliminar. De muitas formas: fisicamente, juridicamente, com as melhores defesas, ou juridicamente também, te tirando fora”, afirma, dando o seu próprio exemplo — por ter sido afastado do cargo ao tentar investigar crimes cometidos pela ditadura do espanhol Francisco Franco (1938 – 1973)  — e de juízes italianos que morreram em ataques terroristas, após investigações contra a máfia que ficaram conhecidas como Mãos Limpas (Mani Pulite).

Guardadas as diferenças devidas entre o modelo espanhol e o brasileiro – lá existe a figura do juiz de instrução que atua na investigação, mas não julga o que foi investigado -, ouvir o depoimento de Garzón é útil para analisar o quadro atual da Operação Lava Jato.

“O País sempre vai sair reforçado. Se isso não acontecer, será um fracasso do Poder Judiciário e do próprio Estado”

Capítulo 2

Com a palavra, Baltasar Garzón

Lava Jato

Leia abaixo a conversa com Baltasar Garzón e os jornalistas do JOTA.

No Brasil, estamos em meio a uma operação de investigação de corrupção, talvez a maior da história do país. E alguns nos perguntaram como o senhor, quando fazia investigações na magistratura, protegia as investigações de grupos de interesse atingidos e que são muito fortes, tanto economicamente, quanto politicamente? Como proteger a investigação e como o senhor se protegia?

Realmente o mecanismo de proteção por parte de um funcionário público, que é um juiz, vem de cumprir a lei. A única coisa que ele tem que fazer é cumprir a lei. Cumprir a lei significa não filtrar informação, não facilitar informação fora dos locais estabelecidos legalmente, e proteger a informação judicial, pois podem danificar as investigações estabelecidas. O que acontece é que frente a esse interesse do funcionário judicial, que protege, como servidor público, a sociedade, para que essa investigação triunfe, haverá muitos interesses para que ela fracasse. Dos próprios investigados, os afetados, ou aqueles que, por outros interesses econômicos, políticos ou de qualquer outra natureza, querem que quem está cuidando dela não continue à frente, por que incomoda. Ai entra a integridade do próprio funcionário de estar disposto a cumprir seu trabalho de servidor público. Não há mais nada além disso. Eu sempre disse que o juiz que se deixa pressionar é porque quer. Ele tem que estar disposto a perder sua própria profissão e, a partir dai, gerar o espaço necessário para que ninguém o pressione. Quer dizer, é inútil a pressão. Se alguém pressiona o juiz e esse juiz se sente temeroso diante dessa pressão, diante de uma campanha da imprensa ou diante uma pressão do Executivo, já sabemos qual é o seu ponto fraco. E a partir dali, ele é vulnerável.

E como eram as atuações desses grupos de interesse quando o senhor era juiz e percebia que eles combatiam as investigações que o senhor promovia?

Eu realmente tenho que dizer que não chegaram a me pressionar porque eu impedi que me pressionassem. Estabeleci um limite muito claro de qual era o meu espaço jurisdicional e que qualquer pressão podia, ao fim, acabar comigo — como aconteceu anos depois — mas que não iriam me pressionar. As pressões também vinham das próprias organizações institucionais que estavam sendo investigadas. E eu tive que enfrentar investigações sobre corrupção que afetavam desde partidos políticos e entidades bancárias, a grande políticos nacionais e internacionais, ou o terrorismo e serviços de inteligência dos Estados. Tive que enfrentar pressões sobre mim, sobre minha família, sobre meu modo de vida, mas eu não me deixei afetar. E quando você transmite essa segurança, deixam de te incomodar. Claro que, em algum momento, quando ele puderem, eles vão te eliminar. De muitas formas: fisicamente, juridicamente, com as melhores defesas, ou juridicamente também, te tirando fora. Isso é um risco, mas você tem que assumi-lo. Ao final, no meu caso, aconteceu que em uma investigação de corrupção, na investigação de corrupção mais importante da democracia na Espanha, que afeta o Partido Popular e que agora mesmo está no governo, sim, conseguiram me afastar do caso. Mas, provavelmente, o exemplo do que desenvolvi e a força das investigações, fizeram com que elas continuassem. E isso me leva  a outro elemento fundamental para evitar as pressões, que é estar cientificamente muito bem preparado. Ou seja, conhecer o direito, conhecer os argumentos e poder enfrentar a quem vai tentar te colocar todas as travas possíveis.

O senhor tem conhecimento dessa operação que acontece no Brasil, a Operação Lava Jato?

Sim, sim.

Como o senhor analisa essa investigação e o que o País pode ganhar depois de uma investigação de um esquema de corrupção tão grande, como aqueles que o senhor também investigou?

O País sempre vai sair reforçado. Se isso não acontecer, será um fracasso do Poder Judiciário e do próprio Estado. A questão não está em determinar quem vai cair, mas em fazer investigações suficientemente consistentes e firmes para que cheguem ao final. Porque, se depois, por uma razão ou por outra, não prosperam, a frustração dos cidadãos é muito maior, porque o sistema não funcionou. Partindo daí, logicamente, trata-se de uma função muito importante a que tem o Poder Judicial, de desenvolver essas investigações de forma consistente com todas as garantias. Isso é fundamental, porque, se não, corre-se o risco de que a investigação caia e nessas garantias não focalizar somente em um aspecto. Quero dizer, se a corrupção se expande ou é transversal, tem que enfrentar-la em todos os aspectos. Não podem haver partes protegidas. Quer dizer, se afeta os serviços de inteligência, precisa-se investigar os serviços de inteligência; Se afeta os serviços policiais, eles precisam ser investigados; Se afeta o próprio poder judiciário, você precisará enfrentá-lo. Se afetar políticos, eles também precisam ser investigados. E sobretudo, focar naqueles que corrompem. Muitas vezes, o setor empresarial, o setor privado fica à margem, parece que os únicos que se corrompem são os servidores públicos — pois é mais grave, pois essa corrupção provoca diretamente um déficit na sociedade. Mas os corruptores são igualmente responsáveis.

O senhor percebe, olhando para trás,  algum erro cometido e que você usaria como exemplo do que não deve ser feito? Daria algum conselho ao juiz Sérgio Moro, para que ele evite erros?

Sempre existem erros ou formas diferentes de fazer as coisas. Para Sérgio Moro, o único que eu tenho a dizer é que cumpra sua função, como deve cumprir um bom juiz. Porque, vivemos em um mundo da comunicação e nosso trabalho se faz frente a todo mundo. O importante é que não só atue com convicção e com apego à legalidade, mas que sua ação seja sempre transparente. É muito difícil investigar a corrupção. É muito difícil investigar a criminalidade organizada. Você sempre irá se encontrar diante de mil dificuldades. Você enfrenta estruturas muito poderosas de poder econômico, de poder político e de poder de fato. Portanto, com as armas apenas da lei, ele tem que ter a consistência suficiente para que não derrubem essa investigação. A fórmula é cumprir com a legalidade, dar todas as garantias que podem haver, até mais do que as exigidas. Mas o que eu diria de mais fundamental é a necessidade de cumprir as normas. Acontece que as normas tem uma escala. Digamos que de 1 a 100. Aplicar a norma de 1 a 100 é o que se deve fazer. Chegar ao 101, não! por que isso é o excesso. Em todo o caso, eu desejo força, convicção, apego à legalidade e garantias. O que acontece é que existem exemplos que nos ensinam que em um momento determinado, se eu tivesse que fazer uma investigação sobre narcotráfico, não faria hoje como eu fazia nos anos 89 ou 90, porque tenho mais mecanismos ou porque a própria jurisprudência já afirma que apenas a delação de uma arrependido não é suficiente para, não havendo outras provas para se apoiar, não deve haver condenação. Naquele momento, a delação de um arrependido, por si só, como também o fez Giovanni Falcone, ou como os fizeram outros juízes italianos, como Antonio Di Pietro e outros do Mani Pulite, era um instrumento válido que podia ser usado. Então, o importante é ter uma visão integral e de conjunto. Eu, quando tomei decisões sobre a detenção do Pinochet ou em relação à ditadura argentina, o que fiz foi integrar uma interpretação da legislação espanhola, da legislação internacional, da jurisprudência nacional e internacional, e com base nesses princípios, tomei decisões. Isso que é importante.

No Brasil, os advogados fazem críticas de que alguns magistrados conduziriam investigações para necessariamente chegar ao resultado da condenação.

Os advogados sempre vão colocar dificuldades. Eu, agora como advogado, coloco todas as dificuldades possíveis também, porque esse é o exercício do direito de defesa. Mas, veja, o direito de defesa não significa torpedear ou eliminar o juiz. Isso é armadilha, isso é jogo sujo. Significar dar argumentos, estabelecer argumentos para que o tribunal decida. O Ministério Público e depois o juiz, o que eles tem que fazer, insisto, é atuar com a lei em suas mãos, interpretando quais são as condutas e acomodando-as aos fatos e às normas nacionais e internacionais — neste caso, ao sistema nacional e interamericano. Com esses elementos, acredito que a investigação chega ao fim. O que ocorre é que um processo, nunca se sabe como ele vai terminar. Preparar o processo é a obrigação do juiz e do Ministério Público, validar as provas e condenar ou absolver é a obrigação do tribunal. Mas não se pode responsabilizar o juiz se não há a condenação. O que se tem que evitar é reverter uma condenação por falhas na investigação. É isso que o juiz precisa evitar.

O senhor usa em seus argumentos a teoria jurisdição universal. O senhor avalia que, no caso da Lava Jato, aqui no Brasil, ela poderia ser aplicada como?

Em casos de corrupção, cada vez mais, os fatos não são locais. São internacionais. É muito difícil que um caso de corrupção não tenha ramificações internacionais. Seja na movimentação dos recursos, na utilização de paraísos fiscais, nos investimentos que se fazem  fora do país para protejer os benefícios obtidos. Na corrupção que envolve empresas multinacionais. É um complexo de fatores que transcendem ao próprio território e existem países, como a Espanha, que diante de delitos relacionados à corrupção, por exemplo, eles são colocados entre os delitos de persecução universal. Como também estabelece a convenção contra a corrupção de 2006, que expressamente diz isso. Portanto, o que está transmitindo essa norma convencional, e que nossos países ratificaram, assim como convenções sobre lavagem de dinheiro, é o seguinte: não pode haver impunidade e que os mecanismos de um Estado, se não são suficientes, precisam ser complementados com os mecanismos internacionais. E ai entra a cooperação. E ai entra a colaboração. Não só policial, mas judicial também. Ativar essa cooperação, olhar para o exterior, buscar os elementos de apoio nessas normas de apoio que podem haver internacionalmente é fundamental. Para mim foi fundamental em 99% das investigações que eu fiz. O importante é ir até o núcleo, até a causa geradora do fenômeno. Por que se você fica apenas nos galhos, o tronco da árvore segue crescendo.

Para terminar, uma curiosidade: Quando o senhor investigou Pinochet, não pensou em investigar os crimes da ditadura militar no Brasil? Até hoje o Brasil continua sem punições para os crimes cometidos por agentes de Estados.

Bom, o Brasil não atuou penalmente, mas ao menos criou uma Comissão de Anistia e uma Comissão da Verdade. Existem outros países muito piores, especialmente dois. Um é a Turquia como genocídio armênio, que acabou de completar 100 anos. E o outro é a Espanha, em relação aos crimes da Guerra Civil e da Ditadura Franquista, que depois de quase 80 anos, seguem impunes. Nem Comissão da Verdade, nem investigação penal. E a única investigação penal que tentou-se fazer, que eu tentei fazer, acabou com minha suspensão e que me levou à julgamento, mas que depois fui absolvido. Ou seja, Brasil está mal, mas não é o pior exemplo. O importante é potencializar os mecanismos de reparação e, mais cedo ou mais tarde, vai haver investigação penal ou civil dos atos cometidos na ditadura que já foram catalogados como crimes de lesa humanidade, portanto crimes imprescritíveis.

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