Extrai-se dos termos da proposta, especialmente dos arts. 2ª e 9º, que o teste de integridade pode ser utilizado para três propósitos distintos: (a) como instrumento de aferição de um ilícito civil e administrativo – correspondente à inobservância, pelo funcionário público, dos princípios regentes da administração pública, especialmente os princípios da moralidade e da legalidade; (b) como instrumento de investigação de crimes ou atos de improbidade já praticados ou em execução; (c) como instrumento para a constatação de um crime a ser punido de modo independente de outros crimes sob investigação, anteriores ou em andamento. Nessas três hipóteses, os resultados do teste de integridade podem ser utilizados respectivamente para: (a) o sancionamento administrativo e cível, por ato de improbidade administrativa; (b) para instruir investigações sobre outros fatos; e (c) para o sancionamento criminal da própria conduta constatada no teste.
Por coerência, apenas uma destas situações poderia ser o campo de debates à luz da dogmática penal: o teste de integridade como instrumento para a constatação de um crime independente de outros crimes sob investigação – ou seja, o teste utilizado para o sancionamento criminal da própria conduta do funcionário público constatada na simulação. Aqui, de fato, há larga margem para debate, considerando o atual panorama jurisprudencial e doutrinário. No tópico seguinte serão tratadas cada uma dessas hipóteses.
As provas produzidas num teste de integridade regularmente aplicado pela administração podem ser posteriormente utilizadas para instruir processos cíveis, por improbidade administrativa ou criminais. Da mesma sorte, as provas produzidas em teste de integridade realizado mediante autorização judicial podem ser compartilhadas em outras esferas. A possibilidade de compartilhamento de provas entre as esferas administrativa e a esfera judicial, bem como entre as esferas cível e criminal, é assentada em nossa jurisprudência.
1. Instrumento de aferição da inobservância dos princípios da administração pública (sancionamento administrativo e civil)
O concurso público é o instrumento pelo qual são avaliados o conhecimento técnico dos candidatos a um cargo público e o preenchimento de outros requisitos legais, como aptidão física e mental. Para o serviço público da União, autarquias e fundações públicas federais, esses requisitos gerais estão no [simple_tooltip content=’Lei 8.112/90, art. 5º: São requisitos básicos para investidura em cargo público: I – a nacionalidade brasileira; II – o gozo dos direitos políticos; III – a quitação com as obrigações militares e eleitorais;IV – o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;V – a idade mínima de dezoito anos;VI – aptidão física e mental. § 1o As atribuições do cargo podem justificar a exigência de outros requisitos estabelecidos em lei.’]art. 5º da lei 8.112/90[/simple_tooltip]. Por melhores que sejam as provas aplicadas e por mais que os concursos públicos venham evoluindo, cobrando dos candidatos o conhecimento quando às suas obrigações e sobre ética no serviço público, pouco podem fazer para evitar que pessoas mal intencionadas ingressem no serviço público, dispostas a cometer crimes e atos de improbidade, atraídas pelo ganho rápido e fácil da corrupção. O candidato e o servidor público já empossado podem ser altamente qualificados, podem ser exímios conhecedores de seus deveres, e mesmo assim praticar ilícitos. O mesmo se pode dizer da experiência e da aprovação em avaliações de desempenho, às quais alguns servidores públicos ocasionalmente são submetidos. Para a posse em cargos em comissão, para os quais não há sequer aplicação de provas – muito menos de ética no serviço público –, a seleção é ainda mais permeável a pessoas desonestas.
Um caso emblemático: investigado no complexo de investigações e processos denominado “operação Lava Jato”, um graduado e experiente funcionário da Petrobras S.A. chegou a figurar na capa do [simple_tooltip content=’“Envolvido em esquema de corrupção já foi capa do código de ética da Petrobras”. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/extra-extra/envolvido-em-esquema-de-corrupcao-ja-foi-capa-do-codigo-de-etica-da-petrobras-15573111.html>; acesso em 27.01.2016′]Código de Ética da empresa[/simple_tooltip]. Enredado por diversas provas, o (ex)funcionário fechou com um Ministério Público Federal um acordo de colaboração premiada, pelo qual confessou sua participação nos crimes investigados e relatou fatos novos, além de devolver cerca de 100 milhões de dólares recebidos reconhecidamente como propina. O exemplo mostra claramente que qualificação técnica e experiência não têm nada a ver com probidade.
De acordo com ao art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (lei n. 8.429/92), “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.
No serviço público federal, os deveres do funcionário estão previstos no art. 116 da lei n. 8.112/90. Dentre tais deveres destacam-se os de “ser leal às instituições a que servir” (inciso II) e “manter conduta compatível com a moralidade administrativa” (inciso IX).
O funcionário público que é flagrado num teste de integridade, por exemplo, solicitando ou aceitando propina em razão da sua função estará desrespeitando seu dever de manter conduta compatível com a moralidade administrativa e violando seus deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. Por essa conduta, poderá ser punido administrativamente com a perda do cargo, seja pela não confirmação em seu estágio probatório, seja pela condenação em regular processo administrativo, caso se trate de servidor estável. Pela mesma conduta, tenha sido o teste aplicado mediante autorização judicial ou pela própria administração, poderá ser processado por ato de improbidade administrativa, o que também o sujeita à perda da função pública, dentre outras possíveis sanções (art. 12, III, da lei n. 8.429/92).
Quanto à punição administrativa e cível decorrente da aplicação do teste de integridade, não há maiores restrições para sua admissão, considerando a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Sobre esse ponto, [simple_tooltip content=’OLIVEIRA, J. M. F. et al. Como combater a corrupção? Uma avaliação de impacto legislativo de propostas em discussão no Congresso Nacional. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Julho/2015 (Texto para Discussão nº 179), p. 19-020. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td179>; acesso em 29.01.2016′]estudo realizado pelo Senado a respeito da medida é bastante incisivo[/simple_tooltip]:
No direito comparado, Cortes judiciais têm aceitado a prática, como parte integrante do “contrato de trabalho”, da relação entre empregador e empregado. As decisões das Cortes que vêm aceitando a prática se baseiam no argumento de que o investigado não se exime por ter sido induzido por outrem. No Brasil, porém, essa defesa valeria, por se configurar flagrante preparado (STJ, Sexta Turma, HC nº 118.989/SP, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 08/3/2010).
É possível sustentar, porém, com maior nível de segurança, que o teste poderia ser usado, pelo menos, para suscitar punições administrativas. Nesse sentido já decidiu o próprio STF, no julgamento do Mandado de Segurança (MS) nº 22.373, Relatora Ministra Ellen Gracie. Nesse julgado, a Corte considerou que a proibição do flagrante preparado, constante da citada Súmula nº 145, não se aplica aos processos administrativos disciplinares.
A propósito, já no julgamento do HC nº 40.289/DF, Relator Ministro Gonçalves de Oliveira, DJ de 27/11/1963 – um dos precedentes que inspiraram a Súmula nº 145 – ficou consignado não ter havido crime, mas também se registrou ter ocorrido “fato realmente grave e que enseja processo administrativo para demissão do acusado” (voto do Relator, p. 4).
Assim, é razoável supor que o teste de integridade, se adotado, sofrerá grandes questionamentos quanto à constitucionalidade de sua aplicação na esfera penal; o mesmo não se pode dizer, contudo, da aplicação às searas administrativa e civil, em que a tendência seria a admissão.
Sendo assim, como instrumento para aferir a inobservância dos princípios da administração pública e ensejar o sancionamento administrativo e civil do funcionário público faltoso, o teste de integridade é claramente compatível com nosso ordenamento jurídico.
2. Instrumento de investigação de crimes ou atos de improbidade já praticados ou em execução (apuração de fatos distintos)
O teste de integridade pode se prestar a meio de colheita de elementos de convicção a respeito de crimes ou atos de improbidade já praticados ou em execução. Existindo uma investigação em curso, administrativa, policial ou do Ministério Público, que tenha por objeto crimes já perpetrados ou em andamento, teste de integridade pode ser útil para reunir várias informações relevantes, como a identificação de servidores e terceiros envolvidos e seu modus operandi.
A utilidade do teste de integridade, nessa hipótese, será a de instruir investigações sobre outros ilícitos que não a própria conduta constatada no teste de integridade.
Um exemplo: a corregedoria de um órgão policial com atribuição de polícia rodoviária investiga o pagamento de propina por caminhoneiros a equipes policiais suas. A investigação fora iniciada com base no depoimento de um caminhoneiro, preso por policiais civis no momento em que fazia a entrega de certa quantidade de mercadoria contrabandeada a um receptador, que estava sendo interceptado com autorização judicial. O caminhoneiro, entretanto, não consegue apontar com exatidão o local nem a equipe policial a que havia pago propina. Coincidentemente, no curso dessa investigação, a corregedoria desse órgão recebe uma notitia anônima dando conta de que uma de suas equipes policiais, responsável pela fiscalização de determinado trecho de uma estrada, está cobrando propina para a liberação de caminhões transportando carga ilegal. O relato anônimo informa o valor que costuma ser cobrado e e apresenta uma descrição preliminar dos policiais envolvidos. Com base no depoimento do caminhoneiro e nas informações da notitia, a corregedoria resolve realizar um teste de integridade. Para isso, um funcionário simula ser um motorista de caminhão fazendo o transporte de carga e passa pelo trecho da rodovia, quando é abordado e achacado pelos policiais, de forma semelhante ao relato do motorista que motivou a instauração das investigações. O teste, regularmente documentado, é usado para fundamentar a realização de uma diligência de reconhecimento pessoal, na qual o motorista do caminhão acaba por identificar os policiais a quem havia pago propina. Os elementos de convicção, nesse exemplo, podem ser usados para instruir as investigações ou processo criminal decorrente da prisão do caminheiro pelos policiais civis.
Outro exemplo: no curso de um inquérito civil, que tem por objeto apurar supostas fraudes em licitações em determinado ente público municipal, o Ministério Público tem diante de si diversos nomes de funcionários que assinaram os atos da licitação que se revelaram altamente prejudiciais ao patrimônio público. Estes funcionários se calaram sobre os fatos quando formalmente ouvidas, mas aparentavam estar bastante temerosos. Suspeita-se que o chefe da repartição, embora não assine nenhum ato do procedimento licitatório, seja o mentor das fraudes, considerando que, além de ter o poder de provocar demissão dos demais, é o único funcionário do setor com qualificação para realizar fraudes com a sofisticação identificada – os demais funcionários têm baixa instrução escolar e não aparentam ter auferido vantagem pecuniária. O Ministério Público resolve, então solicitar a realização de um teste de integridade, o que é deferido pelo juiz competente. A simulação é realizada: um agente público, passando-se por um empresário fornecedor de mercadorias usualmente adquiridas, procura o chefe do setor e simula o interesse em participar de licitações daquele órgão. No curso da reunião, gravada em vídeo com uma câmera escondida, o chefe do setor propõe fraudar as licitações em benefício da empresa, cobrando um determinado valor de propina. Nos diálogos, o chefe suspeito informa a conta na qual deve ser depositado o valor correspondente à vantagem indevida. As informações obtidas nesse teste de integridade são utilizadas para uma “quebra” de sigilo bancário, que resulta na identificação de um laranja e de muitos depósitos anteriores na conta informada pelo chefe do setor, inclusive depósitos feitos por pessoas relacionadas exatamente às empresas vencedoras de licitações anteriores que se suspeitava haviam sido fraudadas.
Nos exemplos citados, o teste de integridade guarda alguma semelhança com o instrumento da infiltração de agentes, ou infiltração policial, técnica especial de investigação prevista na Lei de Organizações Criminosas (lei n.º 12.850/13, arts. 10 a 14). A infiltração policial havia sido introduzida no ordenamento brasileiro com a alteração feita pela lei n.º 10.217/01 na Lei do Crime Organizado (art. 2º, II e V da lei n.º 9.034/95) e já era prevista também no art. 53, incisos I e II, da lei n.º 11.343/2006 (Lei de Drogas).
ARAS explica assim a [simple_tooltip content=’ARAS, Vladimir. O repórter infiltrado. Disponível em: <https://blogdovladimir.wordpress.com/2012/03/30/o-reporter-infiltrado/>, acesso em 02.02.2016.’]infiltração de agentes[/simple_tooltip]:
Na infiltração policial, a Polícia toma parte dos eventos criminosos, mediante dissimulação. O policial destacado para a missão faz um papel, assume uma personagem, faz-se passar por quem não é para obter provas de um crime. Obviamente, o sigilo é essencial, e o risco desse tipo de diligência é acentuado, pois o policial estará inserido no contexto criminoso; é um ator.
[simple_tooltip content=’LIMA, Renato Brasileiro de. Manuela de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2 ed, 2014, 763-764.’]LIMA[/simple_tooltip] identifica as seguintes características do agente infiltrado: a) agente policial; (b) atuação de forma disfarçada, ocultando a verdadeira identidade; c) prévia autorização judicial; d) inserção, de forma estável, e não esporádica, nas organizações criminosas; e) fazer-se passar por criminoso para ganhar a confiança dos integrantes da organização; f) objetivo precípuo de identificar fontes de provas de crimes graves.
Em ambos instrumentos o que se tem é uma simulação. Na comparação entre o anteprojeto do teste de integridade e a Lei de Organizações Criminosas notam-se algumas diferenças, especialmente quanto aos requisitos para uma e outra medida. Entretanto, no que diz respeito a sua execução, a diferença essencial, a nosso ver, é que, diversamente do teste de integridade, na infiltração de agentes a simulação é prolongada: ainda que seja limitada no tempo, o que permite o sucesso da diligência é a relativa estabilidade do vínculo criado pelo policial disfarçado (undercover agent) e a organização criminosa investigada. No teste de integridade, a seu turno, tem-se uma simulação pontual, episódica, mesmo que seja desdobrada em mais de um ato e em mais de uma ocasião. Não há, no teste de integridade, a característica de permanência própria da técnica especial de infiltração de agentes.
Dir-se-á também que, na infiltração de agentes, o policial deve agir como um observador ou, no máximo, um partícipe de crimes de iniciativa alheia, jamais como um “agente provocador”, a instigar a prática da conduta ilícita. A linha é tênue num e noutro caso. Em resposta, pode-se dizer que o funcionário que aplicar o teste de integridade, assim como o agente infiltrado, não pode “fazer nascer” a ideia de praticar o crime. Sua função, assim como a do agente infiltrado, não é a de incutir no sujeito a vontade de praticar o ilícito; não é a de convencê-lo a uma conduta que não teria a intenção de praticar não fosse a insistência de quem aplica o teste.
A comparação com a técnica da infiltração policial revela que o teste de integridade não é uma novidade absolutamente estranha no ordenamento brasileiro. Tampouco deve inspirar maior resistência jurisprudencial ou acadêmica quando utilizada para investigar fatos pretéritos ou em execução.
3. Instrumento para a constatação de um crime e sua punição independentemente de outros crimes
A polêmica maior em relação à aceitação do teste de integridade no Brasil reside na possibilidade de sua utilização para punir criminalmente a própria conduta ilícita cometida no teste. É saber: comete crime o funcionário público que, num teste de integridade, é flagrado praticando ato de corrupção (em sentido amplo)? Ou isso será isso um “crime impossível”?
A doutrina brasileira assim conceitua o flagrante provocado, também sinônimo de flagrante preparado ou crime impossível por obra do agente provocador:
Trata-se do chamado flagrante provocado, erigido a crime impossível e, assim, não se poderá falar em flagrante. Para que haja o chamado flagrante provocado, a atuação do agente da autoridade deve ser tal que acabe transformando o ato delituoso em verdadeira peça teatral, sendo manipulada a vontade do agente, que passa a ser um mero ‘ator’ do fato criado, de molde que, sem a intervenção policial não se daria a [simple_tooltip content=’LIMA, Marcellus Polastri. Manual de Porcesso Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 5 ed. 2010, p. 616′]prática delituosa[/simple_tooltip].
Não há que se confundir flagrante provocado com o flagrante forjado, pelo qual alguém, policial ou não, “planta” uma prova, forjando um quadro de aparente flagrância de modo a incriminar outrem. Um exemplo é o do policial que deposita uma trouxinha de droga no bolso de alguém, sem que este perceba, e em seguida o prende em flagrante pelo crime de porte ou tráfico de substância entorpecente. Na verdade, tem-se aí crime – [simple_tooltip content=’Código Penal, art. 339: Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa. Além disso, esse exemplo de flagrante forjado pode caracterizar o crime de abuso de autoridade (arts. 3º e 4º da lei n.º 4.898/65). O auto de prisão em flagrante lavrado nessas circunstâncias também será ideologicamente falso (art. 299 do CP)’]de denunciação caluniosa, no mínimo[/simple_tooltip] (art. 339 do CP) –, praticado por quem forjou a situação de flagrância, não por quem foi vítima da encenação.
O entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o crime impossível por obra do agente provocador é sintetizado na súmula n. 145 do STF: “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.”
[simple_tooltip content=’ PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas. 18 ed., 2014, p. 535-538′]PACELLI, em lição luminar, revela o equívoco de tal entendimento[/simple_tooltip]:
A rejeição ao flagrante dito preparado ocorre geralmente por dupla fundamentação, a saber: a primeira, porque haveria, na hipótese, a intervenção decisiva de um terceiro a preparar ou a provocar a prática de ação criminosa e, assim, do próprio flagrante; a segunda, porque dessa preparação, por parte das autoridades e agentes policiais, resultaria uma situação de impossibilidade de consumação da infração de tal maneira que a hipótese se aproximaria do conhecido crime impossível.
(…)
De nossa parte, não vemos como acompanhar qualquer um dos dois argumentos.
O segundo deles, o da vontade viciada pela provocação à prática do delito, parece-nos, de longe, o mais inconsistente.
(…) na participação por determinação, (art. 31 do CP), a ideia do crime nem sequer existia na mente do autor, mas , por obra e graça da ação provocadora do partícipe, a vontade é gerada e o crime, praticado. Solução: punição do autor e do partícipe.
(…) não vemos como afastar a responsabilidade penal do autor que age por provocação de terceiro, pelo menos sob o argumento da influência no ânimo e contaminação da vontade do agente. Como vimos, na participação por determinação há, inegavelmente, a mencionada intervenção (influência no ânimo) e a presença de suas consequências (vício ou contaminação da vontade), revelando-se, porém, insuficientes para fastar a responsabilidade penal do autor.
Voltemos os olhos agora para o argumento da impossibilidade de consumação do crime.
Observa-se, primeiro, que não é inteiramente correto falar-se em crime impossível, porquanto, pelo menos em tese, será sempre possível a fuga. (…)
Mas a crítica mais contundente que se pode fazer em relação ao apontado argumento nem é essa.
(…)
No flagrante esperado, não há intervenção de terceiros na prática do crime, mas informação de sua existência. (…) Nesse caso, a ação policial sera de espera, não de provocação, donde a diferença de ser esse um flagrante válido, ao contrário daquel’outro.
Note-se, porém que ambas as situações podem estar tratando de uma única e mesma realidade: a ação policial suficiente a impedir a consumação do crime (ou seu exaurimento), tudo dependendo do caso concreto. Não nos parece possível, com efeito,fixar qualquer diferença entre a preparação e a espera do flagrante, no que se refere à impossibilidade de consumação do crime, fundada na ideia de eficiente atuação policial. Em ambos os casos, como visto, seria possível, em tese, tornar impossível, na mesma medida, a ação delituosa em curso. Por que então a validade de um (esperado) e invalidade de outro (o preparado)?
Mas que fique repetidamente registrado: jurisprudência e doutrina permanecem alheias a essas questões, reproduzindo o antigo entendimento.
A inconsistência da tese, em face de nossa realidade e do uso cada vez mais frequente de recursos materiais de alta tecnologia, vem sendo posta a descoberto em inúmeras reportagens televisivas (…).
Assim, de duas uma: ou se aceita ambas as hipóteses como de flagrante válido, como nos parece mais acertado, as duas devem ser igualmente recusadas, por coerência na respetiva fundamentação.
Tomando como base a lição de PACELLI, aquele que, num teste de integridade, “provoca” o funcionário público, não seria punido por incidir, para ele, a excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal (art. 23, III, do CP). Para o funcionário flagrado no teste, não se enquadrando a situação em nenhuma hipótese legal de impossibilidade absoluta de consumação nem em nenhuma outra excludente de punibilidade, ser-lhe-á aplicável a sanção pelo crime consumado ou tentado, conforme o caso.
Outros países não comungam do mesmo entendimento sufragado na súmula 145 do STF.
[simple_tooltip content=’ARAS, Vladimir. Técnicas especiais de investigação. In Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, 2. ed., p. 543′]ARAS[/simple_tooltip], assentado em lição de [simple_tooltip content=’PÉREZ, Tereza Molina. Técnicas especiales de investigación del delito: el agente provocador, el agente infiltrado e figuras afines. Disponível em <http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2916235.pdf>; acesso em 12.02.2016′]PÉREZ[/simple_tooltip], tratando da técnica de infiltração de agentes e, especificamente, da figura do entrapment, discorre:
(…) o Tribunal Supremo espanhol abandonou entendimento semelhante ao adotado pelo STF. Atualmente a Corte espanhola entende que o delito provocado só ocorre quando a Polícia faz surgir na mente do suspeito a intenção de cometer o crime, que de outra forma não seria cometido. Na verdade, não há entrapment quando o suspeito está predisposto à aprática do crime e a autoridade policial simplesmente cria a oportunidade para sua consumação, sem o provocar, incitar ou instigar.
Para legitimar uma operação desse tipo, a cogitação de cometer o ilícito e a iniciativa de fazê-lo devem partir do suspeito, ao passo que a intervenção da Polícia deve ser passiva. Atendidos esses critérios subjetivos e objetivos, não há flagrante preparado nem entrapment. O TEDH admite que na infiltração o agente não desempenhe um papel exclusivamente passivo (Caso Lüdi), mas não tolera a provocação (caso Teixeira de Castro). Há provocação quando a conduta do infiltrado ou do agente encoberto é decisiva para a consumação do crime. Não há provocação quando o dolo (cogitatio) é latente e antecede o induzimento policial, não havendo ardil ou persuasão dos investigadores para viciar a vontade do suspeito ou fazer surgir a intenção criminosa.
Na provocação, o agente faz surgir a ideação ou deliberação e leva o suspeito a percorrer todo o iter criminis até a execução. A atuação do agente provocador é a verdadeira causa do crime, pois no sujeito provocado não existia qualquer vontade primária de praticar o ilícito.(…)
Fato é que, no Brasil, doutrina e jurisprudência atuais ao menos aparentemente preponderantes não admitem a participação do agente público numa simulação para caracterizar um crime. O acusado, nessas circunstâncias, deveria ser absolvido.
O anteprojeto, entretanto, caso se transforme em lei, pode alterar esse quadro. E essa alteração, a nosso ver, nada teria de inconstitucional.
Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que a Súmula n. 145 do STF foi aprovada em 1963 e os precedentes referidos como leading cases para sua edição remontam aos anos de 1940 (RHC 27.566), 1951 (RHC 12.531), 1961 (HC 38.758) e 1963 (HC 40.289). A realidade constitucional e social, portanto, era completamente distinta. O panorama da dogmática penal era também completamente diferente: macrocriminalidade e crimes do colarinho branco não eram o foco da doutrina nem dos tribunais, que ainda se ocupavam da criminalidade “tradicional”.
Para que seja utilizado como instrumento para a constatação de um novo crime – ou, noutras palavras, um crime que pode ser objeto de sancionamento penal independente de crimes anteriores –, devem existir fundadas suspeitas da prática de crimes pretéritos, crimes que são precisamente o motivo da instauração da investigação. Somente essa fundada suspeita, que deve ser concretamente demonstrada pelo Ministério Público, pode levar o poder judiciário a autorizar a realização de um teste de integridade. Naturalmente, a fundada suspeita ocorrerá no curso de uma investigação de crimes já praticados: não se inicia nenhuma investigação sem que haja a suspeita de prática de um crime. A questão, aqui, está apenas em se considerar a conduta praticada pelo agente público flagrada num teste de integridade como um ilícito autônomo e passível de sancionamento penal, independente dos crimes anteriores por ele praticados, e não somente (as provas colhidas nessa simulação) como meios para provar crimes pretéritos.
Há desvalor na conduta do agente flagrado num teste de integridade? É possível o sancionamento penal dessa conduta?
Note-se que, de acordo com o Código Penal, só existem duas hipóteses de crime impossível: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime” (art. 17 do CP). A palavra absoluta, usada para qualificar tanto a impropriedade do objeto quanto a consumação do crime, não é vã. Para que a tentativa não seja punida a consumação do crime deve ser absolutamente impossível. Não basta que seja relativamente impossível. Num quadro no qual alguém oferece propina a um funcionário público para fraudar uma licitação e dividir o butim, é absolutamente impossível que o resultado se consume? É absolutamente impossível que o agente que ofereceu propina mude de ideia e dê seguimento à “simulação”, concorrendo para a prática de um crime . Pode-se afirmar: um funcionário aplicando um teste de integridade em outro “jamais faria isso!”, “jamais daria continuidade ao crime!” Incorreto: pode ser até altamente improvável; absolutamente impossível, não. Fato é que, no sentido do art. 17 do Código Penal, houve uma tentativa, e não era absolutamente impossível que essa tentativa se consumasse.
Imagine-se a situação em que o agente público, acreditando estar diante do representante de uma empresa de construção civil (na verdade, um policial disfarçado), solicita dinheiro para fraudar uma licitação em benefício dessa empresa. A negociação quanto ao valor a ser pago e os atos a serem praticados ocorrem numa reunião presencial, gravada, e a solicitação de propina é feita verbalmente pelo funcionário público. Voltemos ao Código Penal e indaguemos: a solicitação verbal de dinheiro feita pelo funcionário em razão de sua função é meio absolutamente ineficaz para que se caracterize o crime de corrupção passiva? O processo licitatório a ser fraudado é objeto absolutamente impróprio? O art. 17 do CP determina que a tentativa não seja punida apenas quando houver ineficácia absoluta do meio ou absoluta impropriedade do objeto – a palavra absoluta, repetida, não é sem razão. É a ineficácia absoluta do meio ou a impropriedade absoluta do objeto que tornam impossível a consumação do crime.
[simple_tooltip content=’FISCHER, Douglas, e PACELLI, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Atlas, 7. ed., 2015, p. 634′]Sobre flagrante preparado e impossibilidade absoluta de consumação, PACELLI e FISCHER acentuam[/simple_tooltip]:
Pensamos que, exclusivamente sob tal fundamentação (intervenção do agente), não se pode invalidar o flagrante,. E, menos ainda, sob o argumento da impossibilidade de consumação, já que, por definição, o crime impossível exige a impossibilidade absoluta do meio. Pode-se até aceitar a invalidade; no entanto, ela deverá se estender também ao flagrante esperado, quando igualmente impossível a respectiva consumação.
Em resumo: ou bem se invalida ambos ou se aceita a respectiva validade, sem prejuízo de eventual excludente de culpabilidade do agente (do crime) e de atipicidade do provocador, por ausência de dolo (quanto ao resultado da ação).
Perceba-se que o teste de integridade, no que toca ao aspecto da suposta impossibilidade de consumação, também será muito semelhante a um flagrante esperado. No flagrante esperado, a polícia ou terceiro, informado da possível e futura prática de um crime, cerca-se de cuidados para impedir sua consumação. Um exemplo de flagrante esperado é o de uma informação recebida pelo serviço de disque-denúncia, dando conta de que quatro indivíduos planejam cometer um roubo numa determinada agência bancária na manhã seguinte. A polícia, então, aloca quarenta homens fortemente armados nas cercanias da agência. Quando os quatro indivíduos saem da agência carregando malotes de dinheiro que acabam de subtrair, são surpreendidos e presos em flagrante pelos quarenta policiais. A doutrina é assente: nesse caso, não se trata de crime impossível; há, no mínimo, tentativa. A explicação corriqueira é a de que não houve, por parte dos policiais, uma provocação; os policiais limitaram-se a aguardar a ação dos criminosos. Não se costuma adentrar o mérito da ineficácia do meio nem da impropriedade do objeto, a que se refere o art. 17 do CP. E, afinal, realmente não há, no exemplo do flagrante esperado, ineficácia do meio nem impropriedade do objeto – da mesma forma que não há ineficácia do meio nem impropriedade do objeto no crime cometido quando da aplicação de um teste de integridade.
A lei penal não exige, para todos os crimes, um resultado naturalístico para que se caracterize a ilicitude nem para que esta seja sancionada. Não é necessário adentrar a polêmica dos crimes formais e crimes de mera conduta. Está-se tratando aqui da tentativa: na tentativa, pode não haver nenhum resultado – senão o desvalor da conduta e o risco ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. No teste de integridade, é, no mínimo, o desvalor da conduta que fundamentará a sanção criminal, por um crime tentado – eis que, em alguns casos, inciada a execução, o crime somente não se terá consumado “por circunstâncias alheias à vontade do agente” (art. 14, II, do CP). Não se pune o agente por sua intenção de cometer o crime, mas pela prática concreta de uma conduta descrita abstratamente como crime, um ação dolosa que apenas não alcançou o resultado desejado por circunstâncias alheias a sua vontade.
Tendo em conta a possibilidade de punição pelo menos por crime tentado, considerando que não se cuidará, a rigor, de um crime impossível, resta enfraquecido argumento da violação ao princípio da lesividade – princípio implícito, garantista, correspondente a um direito fundamental e corretamente extraído de nossa Constituição e de nossa legislação penal.
Todavia, é importante notar que, caso o teste de integridade flagre uma conduta que se amolda ao tipo da corrupção passiva (art. 317 do CP) nas modalidades solicitar ou aceitar promessa de vantagem indevida, estar-se-á diante de um crime formal. Para que o crime se consume, bastará, nesses casos, a solicitação ou a aceitação, pelo funcionário público, da promessa de vantagem indevida (em razão de sua função). Praticar ou deixar de praticar o ato de ofício são elementares somente para o tipo da corrupção passiva qualificada (art. 317, §1º). A punição, na corrupção passiva simples, assim como em outros crimes formais, não será pela tentativa, mas pelo crime consumado. O mesmo se diga da concussão (art. 316 CP): o funcionário flagrado num teste de integridade a exigir vantagem indevida em razão de sua função poderá ser punido pelo crime consumado. Essas situações inclusive devem ser as mais comuns no teste de integridade, tendo em conta que seu propósito é precisamente o de prevenir a prática de corrupção em sentido amplo.
O anteprojeto de lei tem como propósito inovar no ordenamento jurídico brasileiro. A alteração legislativa terá o condão de modificar a realidade normativa, como tradução de uma verdadeira política criminal do Estado, provocada por iniciativa popular (como é o caso do pacote de dez medidas contra a corrupção). Se essa política criminal é correta ou não, se ela deve ser implementada ou não, caberá ao legislador decidir. Mas caso implementada, não será inconstitucional. Toda a doutrina acerca da definição do crime impossível gira em torno da legislação penal infraconstitucional. Não há nenhum dispositivo constitucional, nem qualquer princípio expresso ou implícito, com o qual o teste de integridade seja incompatível.
Noutras palavras: o instituto não é inconstitucional. Eventualmente, a sua realização é que pode ofender algum princípio ou norma legal ou constitucional. Assim como o instituto da prisão cautelar não é inconstitucional, uma prisão cautelar concretamente analisada pode envolver a violação de algum princípio ou norma legal ou constitucional – por ausência de fundamentação, por alongar-se em demasia, por ser decretada por autoridade incompetente etc.
[simple_tooltip content=’ZANELLATO, Vilvana Damiani. Teste de integridade: 1ª medida contra a corrupção. Disponível em <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/teste-de-integridade-1a-medida-contra-a-corrupcao/>, acesso em 27.01.2016′]ZANELLATO, destacando que a medida estará alicerçada em lei, chega a conclusão semelhante[/simple_tooltip]:
Não obstante a atual jurisprudência entenda pela invalidade do flagrante preparado, há que se atentar que o conceito de situação de flagrância encontra-se definido apenas no Código de Processo Penal (art. 302) e, existindo, lei (se aprovada nesses termos) que permita referido proceder em casos específicos, não haveria porque se contestar a validade do ato.
(…)
Não se está aqui chancelando a prática desmedida do flagrante preparado. Não! A prática desautorizada, em qualquer seara, não merece validade e quem o realiza deve sofrer as represálias legais e adequadas.
No entanto, nada impede – a título do que já ocorre com a interceptação telefônica e outros tipos de investigações – que, havendo norma que permita em determinados casos atividade que aparentemente possa a vir a configurar situação de flagrante considerado pela doutrina e/ou pela jurisprudência como preparado, o ato seja válido para fins de prevenção da perpetração de comportamentos ímprobos e corruptos.
De qualquer modo, no que diz respeito estritamente ao sancionamento penal em razão da conduta constatada no teste de integridade, admita-se a polêmica. Para outros propósitos que não a aplicação de uma sanção criminal em razão do crime praticado num teste de integridade, não há, como visto, os mesmos motivos para rejeitar a proposta.