No Brasil ainda existe este déficit de conhecimento da Corte Interamericana, de institucionalidade?
Há um grande déficit de conhecimento da Corte Interamericana e de Diretos Humanos, na verdade. Há uma razão histórica. Nós viemos de períodos autoritários em que a matéria de Direitos Humanos era absolutamente proibida nas faculdades de Direito. Viemos de gerações, inclusive a minha, que não teve a oportunidade de ter na faculdade sequer como disciplina optativa, Direitos Humanos. Isso também vale para a disciplina de Direito Internacional. Era algo superficial, era o Direito Internacional privado – para o comércio –, ou o Direito Internacional público superficial, para as organizações internacionais, mas nada que se dispusesse a aprofundar a declaração internacional de Direitos Humanos, a declaração americana sobre Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos – que afinal é de 1979. Nós saímos de várias gerações que não tiveram essa disciplina. Eu me recordo ainda, quando era conselheiro da OAB, que o ministro Paulo Vannuchi, de Direitos Humanos, me solicitou que buscasse uma reunião com o presidente da OAB para que as provas da Ordem passassem a ter questões sobre Direitos Humanos de modo a mover as universidades a disponibilizarem a disciplina de Direitos Humanos mesmo em época de redemocratização, de democratização plena. Esse desconhecimento não tem razão individual nos juízes, advogados, promotores, procuradores, defensores. Não. Isso vem de uma estrutura que antes era preparada para não se dar o conhecimento devido a Direitos Humanos. Essa realidade tem mudado muito.
A decisão da Corte Intermaricana no caso da Guerrilha do Araguaia vem sendo cumprida pelo Estado brasileiro – com indenizações, instalação da Comissão da Verdade, etc –, mas no Judiciário a responsabilização dos agentes de Estado responsáveis pelos crimes não anda. Existe uma resistência do Judiciário brasileiro a decisões da Corte Interamericana e, especialmente, do Supremo Tribunal Federal?
Isso tudo é consequência de estarmos há tanto tempo apartados de Direitos Humanos e Direito Internacional. No Brasil, sempre se disse que a última instância é o Supremo. Isso é absolutamente verdadeiro: a última instância é o Supremo Tribunal Federal. Porém, quando se trata de Direitos Humanos há a possibilidade, quando se trate de eventual violação a Direitos Humanos, de abertura de uma instância internacional. Não é uma quarta instância. É outro processo em que não são demandadas as partes do processo nacional, mas o próprio Estado. Isso vem de longe. Não é uma fotografia momentânea. Não há de se dizer que determinado tribunal não quer cumprir a decisão da CIDH. É uma jurisprudência que vinha do passado, uma análise sobre anistia em descompasso com a jurisprudência internacional, não apenas da Corte Interamericana, mas da Corte Europeia e dos órgãos da ONU e também do próprio estatuto de Roma (na criação do Tribunal Penal Internacional). Tudo isso anda em conjunto. No Direito Internacional, desde o pós-guerra, depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da declaração Americana de Direitos Humanos, em 1948, já houve decisão de criação de tribunais internacionais para analisarem os Direitos Humanos. Por quê? Em razão das atrocidades da guerra e da verificação de que a soberania dos países não resolvia com justiça determinados temas. Por isso, dedicou-se a instâncias internacionais distantes dos problemas políticos paroquiais ou nacionais a decisão sobre as questões mais importantes da pessoa, do ser humano, da humanidade. Essa decisão de criação dos tribunais internacionais é mais antiga. Então, nós vimos no andar da história.
E sobre a Lei de Anistia?
Importantes instituições diziam ter participado do acordo para o acordo pela Lei de Anistia, que naquele momento poderia parecer bom para alguns. Porém, sob a ótica do Direito Internacional dos Direitos Humanos, não pode haver acordo quanto a crimes de lesa humanidade. E mais: no caso brasileiro, os chamados crimes de sangue ou crimes que seriam contra direitos humanos perpetrados por guerrilheiros ou subversivos (como eram eram chamados) não foram anistiados. Todos cumpriram pena, aqueles que sobreviveram. O que não pode haver é anistia de agentes de Estado, que é autoanistia, e muito menos de crimes de lesa humanidade.
A decisão da CIDH sobre o caso Araguaia é de 2010. Mas até agora o Supremo não se manifestou sobre isso. É razoável?
Dizer que o Supremo ou qualquer outro tribunal esteja atrasando… Cada país tem seu ritmo, cada judiciário tem seu ritmo. Talvez o ponto ótimo de decisão seja exatamente agora, quando há diálogo franco entre tribunais. O STF recebeu a Corte no final de 2013. Na posse do presidente Lewandowski, ele falou da importância de cumprir as decisões dos tribunais internacionais, especialmente da Corte Interamericana – e continua cumprindo vários princípios decorrentes da jurisprudência da Corte, vide como exemplo as audiências de custódia, que estão tendo importância tão grande no Brasil. As audiências de custódia vêm diretamente da jurisprudência da Corte na interpretação da Convenção Americana. Portanto, há um amadurecimento institucional do Judiciário brasileiro. E lembremos que o Brasil é um dos últimos a aderir à competência da Corte e ainda o trato com as decisões da CIDH é ainda baixo. Temos visto que mais e mais a jurisprudência da CIDH é analisada pelos tribunais superiores, por exemplo. Nos próximos anos, esperamos que seja julgado, finalmente, o caso que levará à nulidade da Lei de Anistia com base na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. [simple_tooltip content=’Em abril de 2010, o STF julgou a ADPF 153, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil. A ação contestava a anistia a agentes do Estado acusados de crimes de sangue durante a ditadura militar. O STF, por 7 votos a 2, manteve o entendimento de que a lei anistiou todos os crimes, inclusive os praticados por militares.’]Houve a análise da lei pelo Supremo[/simple_tooltip], tendo como base na Constituição, mas nós – CIDH – entendemos que a lei é nula de pleno direito, lastreados na Convenção Americana. Assim, esperamos que tenhamos essa parte do Judiciário cumprindo a decisão da CIDH.
O senhor espera isso para os próximos dois anos?
Sim, assim esperamos. Cremos que já está madura a questão para ser levada. Mas é sempre uma questão de agenda de cada País. Nós estabelecemos o diálogo. A questão já é de conhecimento amplo. E essa é realmente uma questão muito importante para o País e para o sistema internacional de Direitos Humanos.
O que não pode haver é anistia de agentes de Estado, que é auto anistia, e muito menos de crimes de lesa humanidade.
Casos econômicos e sociais estão chegando à Corte e as audiências desta semana demonstram isso. Essa é uma tendência?
Sua visão está absolutamente correta. Veja: é a primeira vez que alguém da área de direitos sociais chega à presidência do tribunal. Por sinal, foram poucos os juízes da área de direitos sociais que chegaram à Corte Interamericana. Agora há uma conjuminação interessante. Veja que coincide também que o presidente do tribunal europeu de direitos humanos também vem de ser consultor jurídico da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Dois dos três tribunais internacionais de direitos humanos têm presidentes da área.
Quais casos, com este mesmo escopo, o senhor poderia indicar?
Há casos de fertilização in vitro, direito à saúde, de mobilidade urbana, há um que está chegando do Brasil relativo ao trabalho escravo. São questões fundamentais e que dizem respeito a uma região onde reconhecidamente a disparidade entre oportunidades e renda é muito grande. Nesse sentido, a Corte terá uma agenda óbvia, até mirando o que tem acontecido em muitos tribunais nacionais. Isso é uma realidade: a judicialização de questões coletivas de caráter social.
Por que essa tendência a partir de agora?
Eu diria que a redemocratização na região levou à busca por direitos em geral. Veja que em vários países houve movimentos por uma melhor distribuição de renda, acesso à transporte, mobilidade urbana, liberdade expressão de diversos matizes. E os judiciários mostram uma certa direção. Há em vários países requerimentos ao poder judiciário de direitos coletivos, ou seja, uma coletividade busca acesso a direitos. E acesso a direitos é um tema que há muito a Corte Interamericana busca realizar por intermédio de determinação aos estados. Recentemente tivemos casos de saúde chegando a nós – de uma senhora que foi mal atendida num hospital público, foi enviada para um hospital privado supostamente para ter uma cirurgia mais rápida, foi vítima de mal prática. Tivemos caso de fertilização in vitro. Questões relativas a trabalho. Direito à educação. Então, posso dizer que aqueles casos referentes a períodos autoritários já estão – digamos – numa linha descendente. Requerimentos sobre tortura, de excesso de força no combate a guerrilhas ou de o estado prender ou deter, violentar e violar direitos a partir da atividade policial estão em declínio. E novos direitos vêm sendo discutidos. Chegam questões sobre liberdade de expressão, sobre a condição das pessoas, sobre a opção sexual. Vamos ter agora, por exemplo, um caso de uma pessoa supostamente homossexual nas Forças Armadas. Então são questões variadas. Antigamente se chamavam esses direitos coletivos, direitos sociais, direitos sindicais, de meio ambiente, como direitos de terceira geração. E se tinha dúvida sobre se era factível entrar em juízo para obter esses direitos. Essas questões que têm chegado mais à CIDH e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Em casos como estes, o senhor considera que pode haver manifestações ou pressões de grupos organizados, do poder econômico sobre a CIDH?
A tradição da Corte é a participação ampla da sociedade. Isso é possível via amicus curiae, que na Corte Interamericana é amplamente franqueado. É possível sim que grupos de interesse diversos se manifestem, e isso é muito importante para se chegar a uma definição em cada processo. A possibilidade de estabelecer o contraditório em tudo contribui com a missão de julgar da Corte, de julgar bem.
E o que tem chegado do Brasil mais especificamente?
Nós temos recebido casos de presídios. Mas não são processos contenciosos clássicos. São medidas cautelares em que se pede à Corte para tomar medidas mais urgentes. Esses são casos que têm chegado ultimamente. A Corte sempre observa a relevância e a urgência do caso. Então, a CIDH concede muitas vezes medidas cautelares. Varia caso a caso.
É uma composição bastante robusta do ponto de vista jurídico, o que para mim é uma honra e um grande desafio.
Que temas dentro do sistema americano o senhor apontaria como principais desafios para os próximos anos?
Programas sociais, questões ambientais, acesso à terra, temos visto chegar também temas de mobilidade urbana. Outro tema importante é de liberdade de expressão, a defesa dos defensores de direitos humanos, violência contra jornalistas, pluralismo de mídia.
Eu gostaria que o senhor descrevesse, por fim, a composição que o senhor vai presidir nos próximos dois anos.
É uma composição de pessoas bastante experimentadas. Começando pelo ex-presidente, que acabou de deixar o posto, mas permanece como juiz da CIDH, que é colombiano Humberto Serra Porto. Ele foi juiz e presidente da Corte Constitucional da Colômbia. O meu colega mexicano, Eduardo Ferrer Mac-Gregor, um jurista de renome internacional, um dos grandes juristas de Direito Constitucional e de Direitos Humanos. O juiz chileno, que foi reeleito para seu segundo mandato, Eduardo Vio Grossi, também um conhecido constitucionalista. E os três novos na Corte. Em primeiro lugar, o equatoriano Patricio Pazmiño, que era presidente da Corte Constitucional do Equador nos últimos nove anos. É alguém que teve sua inserção na área de direitos sociais. O juiz Raul Zaffaroni, da Argentina, que vem do Supremo Tribunal de Justiça argentino. Zaffaroni é certamente dos juristas mais conhecidos no mundo na área penal. E a juíza Eliabeth Odio, da Costa Rica. É também uma jurista com trajetória invejável. Foi vice-presidente da República da Costa Rica, foi ministra da Justiça, ministra da Educação, foi juíza do tribunal penal para a antiga Iugoslávia, foi juíza do Tribunal Penal Internacional. É uma juíza da maior experiência. É uma composição bastante robusta do ponto de vista jurídico, o que para mim é uma honra e um grande desafio.