função pública

Inteligência artificial no serviço público federal

O estado da arte da organização administrativa

direito administrativo
Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Crédito: Pedro França/Agência Senado

De tempos em tempos, certos temas se tornam protagonistas nas pautas de notícias, pesquisas e projetos. A discussão em torno da inteligência artificial (IA) assume tal papel no contexto brasileiro do momento. Fala-se no desenvolvimento de uma IA consultora financeira a ser desenvolvida pelos bancos; na automação que pode impactar profissões; ou mesmo como o ensino ganhará novos contornos em virtude das ferramentas como chatbots. Dentre discursos mais ou menos apocalípticos e mais ou menos otimistas, é necessário compreender os desafios que o gestor enfrentará nos próximos anos, na incorporação de soluções de IA no poder público e nos avanços do governo digital.

No que diz respeito às políticas públicas com foco em inovações e governo digital, o avanço do Brasil é notável e isso se reflete em indicadores globais[1]. Os bons resultados não dizem, entretanto, que a casa esteja organizada nos marcos regulatórios do tema. Há uma Estratégia Nacional de Governo Digital, prevista pela Lei 14.129/2021 – que vem a ser a Lei do Governo Digital; um programa de Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital), instituída pelo Decreto 9.319/2018; um Plano de Transformação Digital; e outros planos, programas e afins, lastreados ou não em norma. Fora as iniciativas legislativas em curso, que certamente terão impacto no ecossistema da inovação e da IA.

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Até 2023, no âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), no que se refere a projetos de pesquisa de desenvolvimento de tecnologias e inovações, o tema da IA foi elencado como prioritário, por meio da Portaria 1.122/2020. A partir disso, foi criada a Estratégia Brasileira de IA (EBIA), em 2021, para desenvolvimento de soluções “bem como, seu uso consciente, ético e em prol de um futuro melhor”.

Em evento no último 7 de março, no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), o presidente da República citou a necessidade de se criar um “plano de Inteligência Artificial genuinamente nacional e que atenda às necessidades da população”. Foi também mencionado pela ministra do MCTIC que a EBIA está em atualização.

Diante desse cenário, é inevitável pensar, do ponto de vista de gestão, se a calibragem da quantidade de normas e programas que tratam de temas atrelados ao digital e às novas tecnologias está adequada. Olhando uma fotografia atual da organização federal, há muitas iniciativas, entidades e grupos de trabalho engajados em elaborar novos instrumentos. No entanto, falta compreender em que medida tais ações consideram o que já existe e como as medidas em curso se relacionam entre si.

Do ponto de vista de boas práticas regulatórias, o eixo da gestão de estoque é muito relevante para garantir o bom funcionamento do sistema normativo. A existência de muitas normas que tangenciam a mesma temática gera não só um risco de sobreposição, mas do famoso “todo mundo faz tudo, mas ninguém faz nada”.

Pelo que existe hoje, há uma falta de cuidado com a vertente da implementação. Há informações disponíveis sobre iniciativas que estão sendo realizadas em torno da IA, porém, não quanto (i) à interação destas com o grande conjunto de normas vigentes sobre o tema do governo digital e afins; (ii) ao volume de investimento que está sendo dedicado ao tema; (iii) a quem está efetivamente engajado nos estudos – quais são os comitês, grupos de trabalhos, conselhos e outros que estão ativos; e (iv) em como se dará a interlocução executiva-legislativo[2].

Sob a ótica da força de trabalho e capacitação do RH do Estado, mesmo esse sendo um eixo da Estratégia Brasileira de IA desde 2021 (eixo 5), pouco se tem de dados consolidados acerca do andamento das ações estratégicas. Aliás, uma crítica relevante quanto à política é que tais ações descritas são dissociadas de resultados esperados. Isso impacta não apenas a compreensão da efetividade, mas também torna o planejamento mais difícil. Falar em “instituir programas de formação tecnológica para professores e educadores” – que é uma das ações do eixo – sem ao menos apontar um prazo, meta específica ou resultado esperado leva tal previsão para um grau de generalidade que pouco contribui ao monitoramento. Em que pese o importante papel que a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) vem assumindo em questões ligadas à IA no âmbito federal, os desafios não se esgotam nas suas iniciativas.

O tema da IA é complexo, interdisciplinar e transversal por entre órgãos e entidades do poder público. O reflexo do estado da arte da organização é no sentido que, embora haja movimentação em torno do tema, há uma aparente descoordenação, em muito derivada da falta de dados sobre a implementação de ações passadas. O timing para criar um ambiente regulatório propício à inovação é essencial e o fato de haver movimentação do governo demonstra a relevância do assunto. Contudo, deve-se ter um compromisso em enxergar e corrigir ou mitigar disfunções atuais que têm o potencial de prejudicar boas medidas futuras.


[1] No ranking da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO), denominado Global Innovation Index 2023, o Brasil avançou posições e atualmente é o 49º dentre 132 países.

[2] Em especial porque há projetos de lei em tramitação sobre o tema. Dentre eles, o PL nº 2.338/2023 (dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial), atualmente em tramitação no Senado.

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